A esquerda de amanhã: como será?

“Futurologia” não é minha área (de fato, não deveria ser a de ninguém), mas o futuro é algo que sempre tentou o Homem, pois é uma realidade não-existente e, ao mesmo tempo, obrigatória, ainda que em potência. Como toda potencialidade, o futuro possui um ato no presente e no passado desse presente, isto é, as circunstâncias dadas no momento que o antecede. A explosão de uma bomba, por exemplo, estava em potência antes de existir em ato, mas, igualmente, eram necessários certos cenários para que a explosão ocorresse – algo ou alguém necessitaria detonar o explosivo, os componentes químicos precisavam estar arranjados em quantidades predeterminadas, etc.

Dada esta realidade, sabemos que o presente é determinante no futuro, porém, por ser apenas potencial, o posterior é, por natureza, incerto. Claro, se esfriou e o céu está nublado, se a humidade aumentou, podemos prever com segurança que irá chover. Assim como a bomba, se todas as peças estiverem posicionadas, algo ocorrerá em ato, no entanto, também sabemos que previsões não são realidades, mas probabilidades do real. O provável não é o fato existente, mas sim a alta possibilidade de algo factual existir. Tudo pode indicar que a bomba irá detonar e que logo choverá, todavia, a certeza absoluta (com todo o peso desse termo) para esses eventos não pode ser garantida.

Postas as características do presente e do futuro, fica a questão: e o futuro da esquerda? Sabemos pelo histórico desta que, com muita frequência, ela muda. Um esquerdista da última década do século passado não é o mesmo de agora – pautas indenitárias provavelmente pareceriam loucas e ofensivas para uma esquerda nem tão velha assim. Resquícios da admiração e dos modelos propostos pelo legado da URSS ainda se faziam sentir; a New Left, claro, existia e crescia, mas mesmo as propostas mais amadas pela esquerda atual, como a questão dos transexuais poderem usar o banheiro público que quisessem, não existia. Falava-se de cultura, diversificava-se a classe, já se mirava em minorias para alcançar novos objetivos políticos… contudo, a militância LGBT e feminista era bem mais branda do que a atual.

O curioso é: para um esquerdista de hoje, em geral, essa brandura significa um emaranhado de relações dentro de um sistema opressor, ou seja: a falta de consideração e defesa dessas minorias oprimidas é, ao mesmo tempo, a denúncia de que o mundo do passado era intolerante, mesmo dentro da esquerda. Os antigos defensores do progresso social, sob os olhos do progressista contemporâneo, não passariam de um tipo de opressores mais moles.

Essa característica não é nova. Dependendo da situação, antigos inimigos poderiam virar aliados. George Orwell, em seu aclamado 1984, já denunciava a pouca consideração que a esquerda dava à Verdade, quando chegava ao poder. O ministério da tortura se chamava Amor, o da mentira, Verdade, etc. – essa característica fictícia da obra de Orwell não vinha do nada, mas sim da experiência que este teve em sua luta (do lado dos comunistas) na Guerra Civil Espanhola. Em um momento, o inimigo era a essência da maldade, do atraso, a opressão em si que engolia o mundo em seu sistema; em outro momento, caso assim fosse conveniente ao movimento comunista, esse inimigo poderia até mesmo se transformar em aliado: toda crítica que fazia do adversário ser o próprio Satã, enfim, poderia transforma-lo em um santo súbito – e os antigos canonizados, com tanta facilidade quanto, também poderiam ser transformados em diabos desalmados.

Não se trata apenas de uma inimizade e uma aliança tática. No histórico da esquerda, percebemos que ela enxerga as mazelas do mundo como evidências de uma tradição e de um sistema essencialmente ruins e dominadores. O grupo A quer necessariamente domar o grupo B, o coibindo ou o controlando de alguma forma, negando sua expressão por regras ou preconceitos gerais; por esquemas sociais e ordens econômicas que limitam e concentram alguma classe oprimida nas mãos dos opressores, ou seja: o mal total, a causa das desgraças sociais, dos distúrbios e das faltas para inúmeros grupos explorados – e é este demônio que pode, do dia para noite, virar um aliado de moralidade indubitável.

Ainda no século XX, percebemos essa mudança da água para o vinho de forma evidente na aliança que a Alemanha Nazista obteve com a União Soviética – união esta que levou a derrota da Polônia e ao extermínio das minorias judaicas deste país, fora as perdas que a própria população inocente teve, durante o processo da guerra –, onde , em um primeiro momento, toda a esquerda global que estava sob a égide de Moscou (quase toda, ao menos até o aparecimento da New Left) comemorou o fato e trataram os nazistas como verdadeiros promotores e digníssimos aliados a causa comunista o que, como bem sabemos, virou de cabeça para baixo quando Hitler quebrou o pacto de não-agressão e invadiu a União Soviética.

O próprio Stálin pode ser um exemplo de como a esquerda, historicamente, age com uma dialética que quebra todo parâmetro coeso e sério de uma Verdade imutável. Durante sua ascensão ao poder, o ditador vermelho foi conhecido por endurecer mais ainda o totalitarismo de Lenin; ao promover o genocídio em uma escala nunca antes vista, ao caçar inimigos políticos e taxa-los como inimigos da Revolução, além de perseguir a própria população e comandar a URSS com mãos de ferro, após sua morte o tirano que era o ícone da união comunista global, o líder de uma Revolução que deveria tomar o mundo, foi taxado de monstro e extremista, pelos ditadores seguintes. O que Orwell chamava de “duplipensar” era o que os comunistas aplicavam na prática, mas não pensemos que essas características desonestas estavam apenas na esquerda do passado.

Mesmo após (grosso modo) a esquerda se desvencilhar da União Soviética na década de 80, preferindo beber de outras fontes, tais quais os marxistas culturais e a Escola de Frankfurt, o espírito revolucionário não morreu. A dialética está francamente presente do esquema revolucionário de Herbert Marcuse e Antonio Gramisci e em suas metas políticas. Para o primeiro, a Revolução Sexual iria curar as mazelas das sociedades, pois o sistema burguês e seu puritanismo cria uma tensão sexual que levaria a humanidade a extravasar através da violência e da coação; o segundo defendia a perversão ideológica dentro das ciências humanas, da religião e até mesmo dos contos de fadas e das lendas populares, para uma mudança cultural gradual que levaria, enfim, a Revolução.

Não interpretemos, no entanto, os dois pensadores citados acima como os pais totais das pautas esquerdistas mais atuais. O progresso social para os pais da Revolução Sexual e da infiltração crítica da esquerda na cultura, simplesmente não corresponde ao que o progressismo mais atual defende. A roda do tempo girou e seus princípios foram conforme o movimento. O norte, ao menos atualmente, ainda é o domínio e o caos naquilo que está tradicionalmente estabelecido, mas como qualquer Revolução, a atual, preocupada com pautas indenitárias e voltada para as minorias, devorou o que a precedia.

 


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Se ainda mantém bibliográfica e simbolicamente os grandes nomes da História das ideias esquerdistas, só o fazem por referencial. Ponha Antonio Gramisci, um homem da década de 40, em uma parada LGBT e veremos um homem da década de 40 tendo ânsia de vômito; peguemos os seguidores da revolução marcousiana, muitos ricos, empresários, de classe média, fãs de séries +18 da Netflix, ainda não perceberam o quanto a indústria da liberdade sexual influencia o Ocidente e quanto dinheiro esta movimenta – de fato, ideias que nos são apresentadas em filmes e séries com alto conteúdo sexual alimentam toda uma indústria, são espelhadas em todo um sistema de poder político que, diga-se, é eleito por conta de tais pautas –, o que não apenas não diminuiu a violência na sociedade, como também não acabou com as guerras, e, infelizmente, não inibiu em nada a influência de Marcouse.

O fato é que os tempos, com todas as suas mudanças, deixaram marcas na esquerda. O esquerdista de hoje olharia com raiva par ao de ontem, pois este estava na isenção de luta por pautas indenitárias, em sua maioria. Ainda defendiam com paixão e ardor, no segundo quarto do século passado, a imagem do trabalhador; o sindicalismo ainda pulsava ferozmente, a estrutura familiar tradicional não era apenas tolerada, mas defendida como normal. A família do trabalhador, afinal, não tinha dois pais ou duas mães – algo que não pode ser visto pelo progressista contemporâneo senão como uma manutenção de um sistema patriarcal e heteronormativo por omissão e descaso.

Essa incompreensão e essa raiva do esquerdista atual revelam uma de suas facetas: ele tentará fulminar todo o passado que não se apresenta nos conformes progressistas atuais. Uma piada de mais e dez anos atrás no Twitter, ou um filme de comédia dos anos 90 e 2000, antes amados e altamente recomendados, hoje fazem parte de um crime. O próprio esquerdista cai nessa navalha.

Como dito nos dois primeiros parágrafos, o futuro é apenas em potência, mas todas as peças, ou seja, o histórico da esquerda aponta para outra canibalização da mesma. O que será da esquerda de amanhã, se esta continuar nesse ritmo?

O que sobrará desse moderno progressismo quando este já não for tão efetivo? E quando as lideranças esquerdistas, em peso, finalmente perceberem que lutar por pautas minoritárias, muitas vezes defendendo valores alienígenas e grosseiros contra o povo, não os ajudará a ganhar mais eleições (já que, como é óbvio, democracias não são decididas por minorias)?

Alguns dos grandes caciques da esquerda, no estrangeiro, já notaram essa deficiência nas narrativas da esquerda. Mark Lilla, por exemplo, apontou que a agenda em prol de políticas de identidade precisa perder seu foco; Berne Sanders também não é um que põe muito peso às pautas mais progressistas, preferindo uma aparência mais tradicional, no campo esquerdista. Lilla, mais realista, busca inclusive se fixar nos grandes legados estadunidenses e absorver uma simbologia conservadora para ter uma nova esquerda. Quando essa “New Left da New Left” surgir, o que sobrará da antiga?

Se o espólio da esquerda é assassinar seus próprios progenitores, ainda que se conserve as imagens de alguns, não posso imaginar nenhum bom futuro para o nosso progressismo cor-de-rosa. Uma vez que, ainda que durante o lento passar de poucas décadas, pautas de identidade sejam vistas como um mal, um retrocesso, vão virar seus dentes e garras para as maiores forças da esquerda atual. Todo simbolismo progressista que conhecemos pode estar perto de ruir.

Não creio e nem posso visualizar como um movimento tão perdido e violento tal qual o feminista, ou o LGBT, possam criar terreno com suas desconstruções em massa; não creio que nenhuma onda “anticolonialista” possa construir nada em cima dos escombros que criarão, dizimando os frutos de um passado que acreditam ser opressor, mesmo no século XXI. Eles irão desmoronar e isso é apenas uma questão de tempo. Eleições futuras virão, o povo estará mais conscientizado e mais apto para responder ao progressismo rosado: certos senadores não se elegerão mais, nem deputados, as bancadas esquerdistas diminuirão, pois o discurso rosado estará mitigado, rarefeito dentro das esferas do poder, e isso pela sua própria saturação discursiva; líderes de governo ou Estado irão ser mais direitistas, conservadores – o trabalho da New Left será duramente comprometido, senão destruído.

Não creio que a direita irá derrotar esse progressismo irracional e medonho que nós vemos em nossa cultura, mas própria esquerda se encarregará de enterrar tais bizarrices ideológicas. Talvez já seja o caso de cogitarmos em olhar para esse possível futuro. Lilla, por exemplo, é infinitamente mais inteligente e capaz, como um intelectual, do que o típico professor que acredita na ideologia de gênero (pelo simples fato de Lilla ser mais realista e ceder menos às paixões); será através de homens como Mark Lilla que a esquerda renascerá, se transformará. Fiquemos atentos a estas transformações.

O futuro não é certo, mas é certo que ele virá – e sua vinda trará mudanças. Nisso podemos ter confiança absoluta.

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As posições expressas em artigos por nossos colunistas, revelam, a priori, as suas próprias crenças e opiniões; e não necessariamente as opiniões e crenças do Burke Instituto Conservador. Para conhecer as nossas opiniões se atente aos editoriais e vídeos institucionais

Hiago Rebello

Hiago Rebello

Graduando em História, Licenciatura, pela Universidade Federal Fluminense, colunista do Instituto Liberal e do Burke Instituto.

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