As origens religiosas da mentalidade de esquerda

Para o pensamento político moderno de orientação secularista, as grandes ideologias e, principalmente, a dicotomia direita e esquerda pouco ou nada tem a ver com o universo das religiões, mitos e símbolos metafísicos.  No entanto, esta perspectiva racionalista e laica do campo político é um equívoco. Se em termos jurídicos e puramente formais é possível estabelecer uma nítida separação entre o mundo das ideias e forças políticas e a esfera do sagrado e do religioso, na prática e, portanto, na história concreta os laços, vínculos e contatos entre o espiritual e o temporal, ou melhor, entre a política e a religião são evidentes. Ademais, os conflitos e dicotomias políticas e sociais atuais são, em muitas ocasiões, apenas a manifestação mais visível de perenes e sutis tensões e contendas de raiz religiosa e metafísica.

O historiador e jurista francês Jean-Louis Harouel em um livro recentemente publicado com o título de Droite-Gauche: ce n’est pas fini[1], demonstra de maneira elegante e cuidadosa que as origens culturais da esquerda política são essencialmente religiosas. Para este importante pesquisador, as raízes espirituais e ideológicas da esquerda encontram-se nas heresias falsificadoras do cristianismo, fundadas basicamente na rejeição da Bíblia e mais especificamente do Decálogo, assim como numa leitura distorcida dos evangelhos e do apocalipse. As ideias e posturas fundamentais da sensibilidade e da cosmovisão da esquerda derivam de uma matriz gnóstica e milenarista.  Estas duas tendências principais, o gnosticismo e o milenarismo representam os dois polos de oscilação da mentalidade de esquerda. Praticamente todos os elementos e traços do “esquerdismo cultural” já estão presentes nestas duas vertentes heréticas do cristianismo. Mas, quais as razões da relação umbilical entre a mentalidade de esquerda e estas forças religiosas? Em que aspectos elas convergem e se identificam do ponto vista ideológico, simbólico e estratégico? É o que procurarei explicar neste texto.

 

Gnosticismo e esquerda:

O gnosticismo foi uma complexa e multifacetada corrente religiosa e filosófica que se desenvolveu nos primórdios do cristianismo. Em linhas gerais, os gnósticos antigos acreditavam que o mundo material fora criado por uma falsa divindade, uma espécie de demiurgo. Sendo assim, o homem estaria aprisionado no corpo e neste demoníaco mundo físico. O único modo de libertar-se deste cárcere terreno seria por meio de um conhecimento superior e místico, a gnose. O gnosticismo moderno, herdeiro das antigas seitais gnósticas, pode ser caracterizado por uma disposição espiritual, isto é, uma determinada atitude existencial: na vivência do mundo como um lugar estranho. O gnóstico é tomado por um obscuro sentimento de angústia permanente e insatisfação existencial. Para ele, a realidade é uma terrível e gigantesca prisão da qual é preciso escapar. O mundo é um território sombrio, opressivo e injusto. Essa realidade tenebrosa e asfixiante precisa ser destruída. O mundo injusto e imperfeito precisa ser substituído por uma nova ordem perfeita e justa criada pelo homem. Trata-se, em suma, de uma excruciante atitude espiritual de rebelião contra o mundo criado por Deus.

Os gnósticos consideravam-se seres divinos, um minoria de eleitos, de pessoas puras e imaculadas, criaturas “angelicais” superiores a grande maioria dos homens. Deste modo, recusavam-se a seguir as regras sociais impostas e a moral comum e ordinária. Rechaçavam e desprezavam as normais morais tradicionais, pois, acreditavam estar acima das leis, acima do bem e do mal. O homem-deus da gnose podia se dar ao luxo de transgredir e violar os imperativos e convenções sociais, libertando-se das normais culturais e da disciplina eclesiástica. Por exemplo, Carpócrates de Alexandria, fundador de uma seita gnóstica da primeira metade do século II d.C., defendia a ideia de uma purificação da alma por meio da devassidão e do desenvolvimento de uma vida sexual desenfreada, condenando com veemência o casamento e a propriedade, bem como o conjunto das leis políticas e religiosas de sua época.  Os membros da seita gnóstica dos messalianos no século 4 d.C., viviam como mendigos errantes, recusando toda a forma de trabalho, dormiam nas ruas, eram promíscuos e licenciosos.

Repudiando a tradição cristã, os gnósticos ensinavam que a transmissão da vida era algo intrinsicamente ruim. Para eles, a prescrição contida na Bíblia da procriação necessitava ser rejeitada, pois a matéria e o mundo terreno eram fruto de uma falsa divindade. A procriação de novos seres perpetuaria a “matéria” malvada que aprisiona a alma. O gnosticismo execrava a ideia de conceber uma criança, de dar vida a uma nova criatura. De um modo geral, os membros destas seitas abominavam a natureza e a vida e desprezavam, também, o corpo humano visto como um cárcere da alma.

Outra característica importante do gnosticismo antigo era o ódio em relação às diferenças entre os sexos. Concebiam a distinção entre o masculino e o feminino como uma maléfica obra do demiurgo, abraçando a ideia de uma abolição das diferenças entre os sexos, e especulando acerca da criação de um ser andrógino, indeterminado e livre das limitações e condicionamentos da natureza.

Ao menosprezar as autoridades morais, políticas e eclesiásticas estabelecidas, o gnosticismo inclinava-se a fazer do indivíduo um absoluto, afirmando sua soberana liberdade e sua total autonomia frente a qualquer regra e norma. Desprezando a ordem natural e a realidade, os membros destas seitas buscavam incessantemente por uma forma de saber oculto e hermético, uma espécie de conhecimento iniciático e transfigurador que possibilitasse aos seus membros a libertação das insuficiências e imperfeições do estado humano.

Conforme explica o historiador francês, a fobia gnóstica da vida e da procriação está na raiz do atual uso generalizado dos contraceptivos e da banalização do aborto, bem como na ambição de determinadas ideologias de “descontruir” o masculino e o feminino, emancipando a criatura humana da sua dimensão biológica e da polaridade sexual.

Ora, não por é acaso que são, principalmente, forças políticas de esquerda que defendem com ardor o feminismo radical, a ideologia de gênero, a liberação sexual, o abortismo, a constituição de “famílias alternativas”, além de outras bandeiras aparentemente de vanguarda como o ecologismo radical, o especismo e o transhumanismo.  Em correntes do pensamento da esquerda pós-marxista como a Escola de Frankfurt, o pós-estruturalismo de Michel Foucault e o desconstrucionismo de Jacques Derrida é flagrante o pendor negativista, o hipercriticismo corrosivo, a ânsia de destruir, o frenesi de inversão, a oposição sistemática aos valores perenes e o desejo de abolir a realidade.  A fonte espiritual desta postura é o gnosticismo.

 

O milenarismo e a utopia comunista:

Outra importante falsificação do cristianismo é o milenarismo. Trata-se de uma heresia baseada na crença de que Jesus Cristo retornará ao mundo terreno no final dos tempos para instaurar um reino de mil anos, um paraíso onde reinará a abundância material, a paz e a felicidade perfeita.

Importante ressaltar que este paraíso será terreno e material, em contraste com o que ensina a tradição cristã. As seitas milenaristas acreditavam, portanto, em uma salvação coletiva e mundana, enquanto a verdadeira mensagem de Cristo fundamenta-se na ideia de uma salvação espiritual e pessoal, e na noção de um reino celeste e transcendente.

Os grandes movimentos milenaristas como os taboritas da Boêmia no começo do século XV, os diggers ingleses do século XVII e os anabatistas envolvidos na rebelião de Münster do século XVI, pretendiam criar um novo mundo, a “nova Jerusalém”, uma sociedade de tipo comunista, igualitária, sem propriedade privada, distinções sociais e poderes institucionalizados. Acreditavam que a desigualdade seria a origem de todos os males. Da desigualdade social surgiria a exploração e a dominação. Para retornar ao idílico “comunismo primitivo”, se fazia necessário suprimir todo tipo de opressão social. Através do uso da violência e da revolta contra os poderosos e os ricos, pretendiam defender os pobres e oprimidos, agindo em nome da humanidade e autoproclamando-se como eleitos de Deus para cumprir com esta missão sagrada.

Como os socialistas modernos, os milenaristas partiam da ideia de que o mal está nas estruturas sociais e políticas, e não no interior do homem como ensina a religião cristã. Deste modo, estas seitas heréticas eram portadoras de um projeto de transformação radical da sociedade e da própria condição humana. De maneira fanática e inescrupulosa dedicavam-se à concretização de um plano messiânico. Intentavam criar por meio do uso da força e do terror um lugar de perpétua bem-aventurança na terra, ou seja, um mundo perfeito, sem tensões e conflitos sociais.

No milenarismo encontram-se as bases da visão comunista da história, do dogma sociológico marxista da existência de uma mecânica histórica inexorável, determinista, que culminará no advento da sociedade igualitária sem classes sociais. O mito progressista de uma marcha ascendente da humanidade, de uma evolução linear inflexível, de um “sentido da história”, foi inicialmente arquitetado pelo místico calabrês Joaquim de Fiore. Para este enigmático personagem do século XII, a história da humanidade consiste na sucessão de três etapas ou períodos que correspondem a uma das três pessoas da Santistíssima Trindade. A primeira era ou período seria o reino do Pai, tempo histórico este que seria marcado pelo medo e a submissão servil. Depois surgiria uma etapa intermediária o reino do Filho, que seria caracterizada pela fé e a obediência filial. A terceira e última etapa da evolução histórica seria o Reino do Espírito, neste tempo final vigoraria o amor e a liberdade. Joaquim de Fiore anuncia em sua visão do devir histórico a emergência de uma futura humanidade espiritualizada em comunicação direta e efetiva com Deus. No reino do Espírito surgiria o homem-deus, também presente nas especulações gnósticas, uma criatura nova e um novo universo  no qual já não mais seria necessária a existência de autoridades, hierarquias e normas jurídicas e religiosas.

Na modernidade, o ideal de um reino paradisíaco de Deus na terra com a criação de uma humanidade divinizada, sonhado pelos grupos religiosos milenaristas, é a fonte simbólica do qual se originam as religiões políticas e civis. Não é incorreto afirmar que, apesar de suas particularidades, as religiões políticas modernas resultam de uma secularização das temáticas e concepções do milenarismo religioso. As religiões seculares, como por exemplo, o comunismo e o nazismo, partem da noção de uma redenção coletiva e terrestre instauradora de um mundo perfeito. De algum modo, as antigas heresias milenaristas transmutaram-se em uma espécie de religião da humanidade, em um culto do humano, estribada na crença moderna e contemporânea, própria do progressismo cultural e político, na fé nos poderes prometeicos do ser humano. Como o milenarismo religioso, o progressismo cultua o devir, o novo, o amanhã. A esquerda política orienta suas ações e concentra suas energias no futuro, no nascimento de um porvir radioso. Similar às crenças mágicas e alquímicas do passado, o progressismo defende a possibilidade de supressão de todos os males mundanos, pretendendo, ainda, fornecer uma técnica de redenção definitiva e total do gênero humano. Como assinala Harouel, a esquerda acredita possuir um conhecimento mágico e providencial dos mecanismos ocultos e dos arcanos secretos da vida social, prometendo aos seus militantes e seguidores a destruição do mundo presente, visto como inócuo e corrompido, e a construção de um mundo novo.

Do milenarismo brotam as utopias políticas e sociais. Lembro que o termo utopia data do século XVI. Segundo o filósofo Thomas Molnar, a utopia é, no campo político, o que as heresias são na esfera religiosa. Da perspectiva da religião cristã, os pensadores e movimentos utópicos apresentam inegáveis elementos heréticos. De modo geral, pretendem a liberação do homem da heteronomia, do domínio e soberania de um Deus pessoal e transcendente, em nome da autonomia e da independência moral. Com zelo e contumácia buscam estabelecer uma sociedade ideal, uma coletividade divinizada. Normalmente, as utopias políticas e sociais estão impregnadas de um pessimismo radical acerca do mundo e da vida social. Há nelas e em seus seguidores uma patente hostilidade em relação à realidade e o mundo social, por isto o afã de refazer a criação e remodelar em sua integralidade as estruturas sociais e a criatura humana. O universo, marcado por imperfeições e vícios de toda ordem, precisar ser refeito, passando, desta maneira, por uma segunda criação.

Milenaristas e gnósticas partilham o desprezo e a repugnância pela existência de valores morais objetivos e universais. Para estas linhagens heréticas, é bom e justo tudo o que, de alguma maneira, favorece os seus intentos de salvação terrena e divinização do humano, e, errado, injusto e maléfico, as forças e agentes que impedem a marcha da história no sentido de uma redenção coletiva e mundana. Logo, é inerente a estrutura mental dos gnósticos e milenaristas a legitimação e justificação da eliminação e destruição dos agentes que obstaculizam o advento do paraíso terrestre e da total emancipação da humanidade. Sem qualquer tipo de receio e constrangimento, consideram-se membros de uma elite iluminada que está acima do bem e do mal e das leis morais naturais.

 

Considerações finais:

De acordo com Haruel, se as raízes mentais e simbólicas da esquerda estão nas grandes heresias do cristianismo que foram respectivamente o gnosticismo e o milenarismo, as origens remotas e profundas das atitudes e valores da direita estão na tradição cristã. Ambas as posturas, mentalidades e sensibilidades políticas e sociais apresentam, apesar do antagonismo ideológico evidente, uma curiosa origem religiosa.

A mentalidade gnóstica rebela-se contra todas as forças e agentes que impedem o surgimento do homem-deus, completamente emancipado e autônomo. Insurge-se, desta maneira, contras todas as instituições e valores tracionais como o casamento, a família, a procriação, a moral tradicional, as regras sociais, a religião e a pátria. Almeja transformar o indivíduo em um rei dotado de liberdade ilimitada, sacralizando seus desejos e caprichos. Já o espírito milenarista procura criar na terra um paraíso de abundância material e felicidade coletiva. É um modo de messianismo revolucionário que, vale ressaltar, não se constrange em usar a violência e o terror para atingir sua meta de construir na terra um reino de igualde e paz.[2]

A esquerda pós-moderna e desconstrucionista é herdeira do gnosticismo. Por sua vez, a esquerda comunista de orientação marxista-leninista descende do milenarismo. Não é à toa, portanto, que os setores mais radicalizados da esquerda vejam no cristianismo seu inimigo principal.

Esta postura de base “religiosa” engendra as ideologias de contestação e a atitude mental de eterna suspeita e desconfiança em relação às forças sociais tradicionais e de negação dos valores perenes. O mundo é visto como um lugar hostil e inóspito que está nas mãos do inimigo, as sociedades são percebidas como um espaço de opressão e exploração, fundamentalmente marcadas pela repressão dos instintos naturais e pelo fenômeno da alienação. Diante deste cenário só existem duas saídas: a fuga do real com a busca de “paraísos artificiais”, ou então, a tentativa messiânica de transfigurar o universo, estabelecendo por meio de uma revolução apocalíptica um mundo igualitário e sem entraves para o livre fluir das pulsões psíquicas.

No coração do gnosticismo e do milenarismo esconde-se o pecado do orgulho e o desejo luciferino de autossuficiência. O anelo de atingir a salvação por si mesmo e de romper os laços da criatura humana com a ordem natural e sobrenatural, são as forças subterrâneas que movem o espírito revolucionário.

Em síntese, o núcleo duro do pensamento utópico e revolucionário moderno, cuja matriz é gnóstica e milenarista, consiste na negação de Deus e na divinização do humano.

 

Referências bibliográficas:

Harouel, Jean-Louis. Droite-Gauche: ce n’est pas fini. Édition Descleé de Brouwer: Paris, 2017.

Molnar, Thomas. L’Utopie: éternelle hérésie. Éditions Beauchesne: Paris, 1967.

[1] A primeira edição do livro foi publicado na França em 2017.

[2] Baseio-me, neste parágrafo, em uma entrevista dada por Jean-Louis Harouel ao escritor e jornalista francês Éric Zemour, no jornal Le Figaro. Disponível em: http://www.lefigaro.fr/vox/politique/2017/10/04/31001-20171004ARTFIG00190-eric-zemmour-les-racines-religieuses-de-la-gauche-et-de-la-droite.php

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Cesar Ranquetat

Cesar Ranquetat

Doutor em Antropologia Social (UFRGS). Professor universitário na área de Ciências Humanas

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