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Covid-1984: uma orientação

Tenho o hábito extremamente saudável de passear com meu filho. Desde muito pequeno, sempre optei por levá-lo a todos os lugares que lhe apresentassem um mundo novo com possibilidades de conhecimento. Algo que não é difícil para um bebê em pleno desenvolvimento, afinal, tudo é novo.

Com o início da pandemia, algumas restrições de circulação foram estabelecidas na cidade em que moro, Bagé, no Estado do Rio Grande do Sul (RS). Isso ocasionou certa limitação quanto aos meus frequentes passeios no centro da cidade ou em praças públicas. Ainda me lembro que o coronavírus tinha o “hábito” de ser mais intenso nos finais de semana, principalmente nos bancos das praças que foram interditadas, ou em horários muito específicos, como das 22h às 6h ou a partir de 0h até às 6h, dependendo do humor do governante local.

Lembro-me que até o término das últimas eleições, mesmo com decretos municipais que impediam aglomerações, o vírus não se aproximou da aglomerada festa da vitória do prefeito que foi… reeleito! Nenhum vírus é de ferro! Se ele conseguiu colocar medo no prefeito ao ponto de ele fazer alguns decretos draconianos antes do período eleitoral, o coronavírus pouparia seus correligionários, apaniguados, sabujos, cargos de confiança e todo séquito que circunda seu poder na hora de comemorar a vitória. Ninguém me contou sobre os grandes festejos da sua vitória. Eu estava lá. Com o meu filho. Não na festa, por óbvio! Mas passeando próximo daquela histeria coletiva que ignorava o decreto estabelecido por aquele que havia sido reeleito. Esse coronavírus sabe como se comportar em público…

Março de 2021. Após alguns meses, uma crise mais intensa de Covid-19 assola o RS. O governador Eduardo Leite fixou decretos assim como João Dória, governador do Estado de São Paulo, determinou. Ambos, do mesmo partido, afinam a sintonia em torno das restrições sobre o que é uma atividade essencial ou não. Independentemente dessas limitações, não deixo de passear com meu filho.

Com 2 anos e 3 meses de idade, e sempre muito precoce em sua locomoção, cada vez mais podemos fazer incursões em locais “perigosos”, como supermercados e o “temível” centro da cidade.

Na última vez que fomos ao supermercado, a atendente relatou que as restrições ao horário de funcionamento do estabelecimento geravam mais aglomerações do que quando os horários estavam ampliados. Meu filho, Joaquim, a olhava com certa perplexidade. Tentei lhe explicar que era a “siência” dos decretos que determinava aqueles horários e que os governadores eram nossos “grandes irmãos”. Ele direcionou o olhar até mim e suspirou. Entendeu a ironia. Assim espero.

Vivemos um tempo em que o novo fetiche das elites é trabalhar de casa e pedir para que todos tenham consciência e fiquem em casa para não propagar o vírus. Em home office, o pedreiro, o entregador de pizza, o carpinteiro, o barbeiro e diversas outras profissões não essenciais podem exercer suas atividades sem problema algum, não é mesmo? Como diriam alguns, “a economia a gente vê depois”. O curioso é que como tenho certa flexibilidade de horário para desenvolver meu trabalho e posso executá-lo de casa, tenho a plena disponibilidade de passear com o Joaquim em qualquer dia da semana. E cada passeio gera um fato inusitado.

Em outro momento de nossos alegres deslocamentos, resolvemos ir ao aeroporto do município. Não imaginem nada de grande porte. É algo pequeno e com um espaço aberto considerável para que possamos simplesmente andar, ver formigas, pedrinhas ou até mesmo a grama. Um passeio que já havíamos feito algumas vezes no inverno de 2020, quando alguns decretos já estabeleciam limitações quanto à liberdade do cidadão.

Pois bem, ao chegar no aeroporto verifiquei que no lado para a entrada de veículos haviam cones, mas a saída estava liberada. A mesma situação do inverno passado. Entrei normalmente. Vi que não havia nenhum veículo de passeio. Estacionei e um senhor com máscara, de forma muito calma e vagarosa veio em direção ao meu veículo. Enquanto tirava meu filho de sua cadeirinha ele disse: “Oi, estava fechada a entrada do aeroporto, não é?”. Respondi que não, caso contrário não teria conseguido entrar, ao passo que ele disse: “O lado de entrada estava fechado. Desde o início da pandemia o aeroporto não permite que ninguém entre”. Retruquei imediatamente: “Não é verdade. Tenho fotos com meu filho aqui no inverno passado, logo estava aberto… assim como outras pessoas estavam aqui”. O senhor, de forma muito calma disse: “É, só que agora a pandemia está mais forte. Estou lhe dando a orientação para não ficar aqui. Me desculpe, mas é…”. Por óbvio que ele nem precisou falar mais. Avisei que entendia as ordens que ele cumpria e que não haveria problemas, pois iríamos a outro lugar passear.

Ao volante, saindo dali, fiquei pensando nas palavras do senhor. Ele havia me dado uma “orientação” de que não é permitido ficar ali? Se foi uma orientação, poderia desobedecê-lo? Provavelmente meu filho aprovaria a “desorientação”. Mas qual seria a consequência da minha negativa à sua orientação? Só seria classificado como desorientado ou alguém me orientaria à força?

Em outro dia, fomos a um supermercado. No setor de utensílios para cozinha, havia uma grande lona amarela tapando a ampla prateleira em que estavam os produtos. Era mais uma das “genialidades” do decreto estadual que proibia a venda de alguns produtos em supermercados para evitar aglomerações. Como se todas as pessoas fossem ao supermercado para comprar talheres e copos, e não alimentos. Mas é a “siência” do governador, algo inexplicável.

O meu filho, ao ver aquela lona de cor chamativa, ficou espantado. Apontou, disse “amarelo” e pediu para ver de perto e tocar. Com o corredor vazio, consenti. Ele sentiu um pouco do som produzido pela sua mão ao bater delicadamente naquela lona e deu risada. Vi que havia um pequeno cartaz preso na lona com os seguintes dizeres: “Departamento interditado!! Conforme orientação do Decreto 055 de 03/Março/2021”. Imediatamente pensei que o senhor do aeroporto era o governador, afinal, por uma orientação, o departamento havia sido interditado. E se o supermercado desobedece a uma “orientação”? Afinal, quem orienta não precisa necessariamente ser obedecido. Orientar não é o mesmo que obrigar ou determinar. Será que, de repente, a Covid-1984 alterou a linguagem?

O Joaquim, sempre curioso, apontou para a lona e disse “atrás”. Queria ver o que tinha atrás daquele grande pano amarelo. Sem perder a piada, disse que a minha “orientação” era de que não tentasse mexer ali. Ele não tentou e me deu a mão para irmos para outro corredor. Será que ele já estaria em uma nova época da linguagem? Já teria nascido adaptado a obedecer a uma “orientação” de forma mansa e pacífica? E eu, um selvagem do século passado, restaria descaracterizado por não compreender que “liberdade é escravidão”, como afirmou George Orwell, no célebre livro “1984”?

No outro dia, ao ler algumas notícias esportivas (afinal, futebol é atividade essencial!), vi que o coordenador de futebol do São Paulo, o ex-técnico de futebol, Muricy Ramalho, se envolveu em uma polêmica. Como ele resolveu ir à praia de Riviera, em Bertioga, praticar uma caminhada e um decreto municipal antecipou em dois dias o início da vigência dos decretos estaduais que determinavam o fechamento das praias para conter a expansão da pandemia, Muricy foi abordado por fiscais. Em um vídeo é possível ver o famoso “bom humor” do ex-treinador sendo colocado à prova. Após esbravejar (com razão) de que não sabia dessa antecipação municipal, ele ouviu dos fiscais em meio a uma quase discussão: “Nós estamos aqui orientando, Muricy. Não tamo ordenando. Nós tamo orientando. […] Senhor, a gente tá orientando. É a orientação Muricy. Colabora conosco, por favor”. De costas, indo embora e aceitando a “orientação”, Muricy disse: “Não colaboro com nada, não. Vou fazer o que tem que fazer”.

Quando tudo parecia finalizado, um dos agentes municipais, fiel ao seu “dono municipal”, disse: “Tem que tomar cuidado, rapaz. A doença tá aí, ó!”. Pronto! De imediato Muricy voltou e perguntou: “Como é que é?”. Irritado e se dirigindo ao fiscal, disse que há 4 meses não vai em casa e nem via os seus filhos durante esse período. O fiscal, seguindo a ladainha, disse que era para ele “se cuidar” usando máscara, deveria “obedecer ao decreto” e blá blá blá.

Mais uma vez fiquei chocado. Em que parte, obedecer ao decreto equivale a ser orientado? Orientação é o termo da moda para avisar aos desavisados servos contemporâneos que caso não sigam a orientação serão forçados a obedecer?

Tenho plena consciência que existem abordagens dos órgãos de fiscalização que buscam orientar previamente as pessoas para que não cometam infrações. Mas, normalmente, essas orientações não são seguidas de obrigações imediatas. Em todos os casos da pandemia, a orientação sempre implicou em uma ameaça indireta. Mesmo que não tenha me sentido nem um pouco ameaçado pelo senhor do aeroporto, averiguei que havia um ar de “ilustração” naquele trabalhador: apoiado pelo decreto, ele se sentiu um pequeno senhor feudal limitando minha presença, sob pena dele chamar alguém. Afinal, a relação de vassalagem é herança atávica em nossa cultura.

A deturpação da linguagem ganha novos contornos com novas tiranias. Determinar que meu filho não faça algo é muito diferente de orientá-lo a não fazer. Dizer que deve fazer algo é distinto de orientá-lo a executar uma tarefa. A orientação é tão leve que não suscita punição. Dizer “não seja estúpido” é diferente de “evite ser estúpido”. Uma ordem é distinta de uma recomendação. Não ter o direito de fazer aglomerações é diferente de aconselhar que as pessoas devem distanciar-se de reuniões.

Orientar, recomendar, sugerir, indicar ou aconselhar, por mais que possam ter algum equivalente formal linguístico que suscite ordem ou exigência, na prática, são bem distantes. Os próprios agentes do Estado sabem disso. Eles têm noção do peso distinto que cada uma das palavras guarda. Mas, por alguma razão, algozes, cães de caça e vítimas já naturalizaram o aviso de emergência que a ideia de uma orientação traz à mente: a de uma imposição implícita. Para que a maioria obedeça a uma ordem arbitrária, uma linguagem suave, aparentemente inofensiva, é mais eficaz: a docilização para a pior de todas as escravidões é a mental. Em uma era de valorização da vitimização, é obrigatório que o aparelho repressor oprima a liberdade sem parecer que é muita opressão.

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As posições expressas em artigos por nossos colunistas, revelam, a priori, as suas próprias crenças e opiniões; e não necessariamente as opiniões e crenças do Burke Instituto Conservador. Para conhecer as nossas opiniões se atente aos editoriais e vídeos institucionais

João L. Roschildt

João L. Roschildt

Professor do curso de Direito do Centro Universitário da Região da Campanha (Urcamp). Além de articulista e ensaísta, é autor de “A grama era verde”. Site: www.joaoroschildt.com.br

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