Uma postura frequentemente observável entre os liberais brasileiros, em especial aqueles que cultuam um certo “purismo acadêmico”, se traduz numa acentuada desconexão entre suas visões e opiniões e a realidade explícita que diariamente a todos nós esbofeteia, numa busca cega (e até certo ponto, insana) pelo liberalismo puro e imaculado, como se fosse simplesmente possível virar-se uma chave e, subitamente, do dia para a noite, todas as imperfeições de nosso atual sistema político seriam naturalmente eliminadas, bastando para isso implantarmos as medidas liberalizantes redentoras que, como num passe de mágica, sanariam todos os vícios e impurezas desse jogo de cartas marcadas que tem sido a democracia brasileira desde sempre, em especial após a concepção da infausta “constituição-cidadã” de 1988, a qual concluiu a normatização da ditadura coletivista do Estado sobre o cidadão comum.
Essa postura descolada da realidade tem se manifestado, por exemplo, quando por ocasião da discussão sobre a qual ministério caberia a responsabilidade sobre o COAF, alguns liberais aproveitaram para advogar sua pura e simples extinção, sendo inegável que o COAF, em sua essência, e de acordo com a cartilha liberal, atentaria contra as liberdades individuais do cidadão comum mas que, por outro lado, sua pura e simples extinção — anteriormente à concomitante extinção dos mecanismos institucionais através dos quais se perpetua a corrupção, tais como o foro privilegiado — seria um duro golpe na intrépida luta contra a corrupção atualmente travada pela sociedade. Mesmo para um empedernido liberal, a prudência e a experiência de décadas de espoliação da coisa pública pela corrupção endêmica em nosso país recomendaria que o COAF seja o último dos mecanismos ditatoriais a serem eliminados de nossa desventurosa república.
Outra posição um tanto quanto radical por parte de nossos “liberais-raiz” diz respeito à visão de que mesmo a educação de nível básico, jamais deveria ser gratuita — visão esta correta, sob o ponto de vista acadêmico, aplicável a países que tiverem atingido a universalização da educação básica, aliada a um considerável grau de proficiência nos exames internacionais de aferição de escolaridade — mas que seria simplesmente desastrosa caso implantada em um país como o nosso, sem que antes atendêssemos às pré-condições acima elencadas.
Tudo isto me conduz finalmente ao mais recente exemplo de visão liberal-radical manifestado por algumas figuras eminentes do cenário político nacional, as quais alardeiam o iminente risco de que nosso tão malfadado sistema de “capitalismo de compadrio”, (vulga oligarquia — onde o poder de pequenos grupos e corporações prevalece sobre os interesses da população) descambasse para uma oclocracia (exercício do poder pela multidão ou pela plebe), vislumbrando assim um supostamente indesejado protagonismo popular nas manifestações previstas para o próximo domingo, 26/05, em todo o País.
Conforme ilustrado nos demais exemplos acima, esses liberais aparentam simplesmente ignorar a realidade em que vivemos, um país com uma Suprema Corte essencialmente aparelhada e ideologicamente tendenciosa, que bloqueia perfis de cidadãos que dela discordem nas redes sociais e que persegue e invade as residências desses mesmos cidadãos confiscando documentos e equipamentos de informática, em ações de que a Stasi, polícia política da extinta Alemanha Oriental, certamente se orgulharia.
Esses ditos liberais-radicais aparentemente ignoram que temos hoje um Legislativo infestado de criminosos (em grande parte já citados ou delatados em processos da redentora Operação Lava-Jato), que legislam impunemente em causa própria, como no caso do pacote anti-crime de Moro — cinicamente escanteado pelo parlamento — e da própria reforma da previdência, que buscam alterar, não pelo bem do País, mas com vistas a preservarem os privilégios das corporações a que servem (leia-se, políticos, magistrados e funcionários públicos, dentre outros).
Esses mesmos liberais tecem ainda loas ao sistema de freios e contrapesos de nossa república como se tivéssemos a mais equilibrada divisão de poderes do mundo, enquanto o que se observa na realidade é uma gigantesca ingerência do Legislativo sobre os poderes do Executivo em nosso país, como no caso em que aprovaram uma lei submetendo o governo à autorização prévia do Congresso para a privatização de empresas públicas, ou ainda, no caso da absurda ingerência do Legislativo sobre a recente reforma ministerial de Bolsonaro — a qual agora buscam aparentemente amenizar ao pressentirem o iminente rugido das ruas no dia 26, o mesmo ruído que nossas imaculadas hostes liberais temem que possa vir a capitanear a tão temida oclocracia (bom mesmo é a boa e velha cleptocracia, certo?).
Desde o golpe de 1889, o qual o establishment pomposamente alcunhou de “proclamação da república”, foi-nos subtraído o poder moderador que o imperador até então exercia, condenando-nos a uma república em que os 3 poderes remanescentes passaram a alternar sucessivos apoios e confrontos, sempre em detrimento do cidadão comum e de suas liberdades individuais.
Até que logremos reformar esse pernicioso sistema político vigente, teremos que lutar para subtrair os exacerbados poderes e descabidos privilégios usufruídos pelos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, reforma esta que culminará fatalmente na confecção de uma nova carta-magna, já que a atual merece, na melhor das hipóteses, uma passagem só de ida para a lata de lixo da história.
Na ausência de um poder moderador que contrabalanceie a atual tirania do Estado contra o cidadão comum, o papel do povo brasileiro passa a ser fundamental na busca de um distante, porém não inatingível reequilíbrio, nesse manipulado jogo de forças da política nacional.
Na disfuncional democracia brasileira o povo é o freio e também o contrapeso do sistema.