EPA/IAN LANGSDON

A desumanização e perda da empatia

Passado o primeiro impacto de três recentes acontecimentos, os tomarei como exemplos para uma pequena análise de como as coisas andam pelo ponto de vista do resguardo de valores humanitários. Há dezenas desses fatos em um país moral e culturalmente devastado, mas me refiro apenas a três, que bem representam um pequeno parecer da calamidade social da qual devemos nos descolar e estão unidos por um fio quase imperceptível.

São os distúrbios recentes (e recorrentes) na França, a morte do cão em um supermercado de São Paulo e a declaração da ministra Damares Alves sobre ter visto Jesus.

Dos recentes distúrbios franceses, passaram pela internet centenas de publicações. Não me atenho a seus conteúdos, alguns muito bons, em particular este que coloco em nota, de autoria de Arthur Morrison II, publicado no Facebook em 3 de dezembro, outros péssimos e primitivos.

Esse post, em si, é de uma lógica acachapante, inegável, completa, mas levanta outra questão: o número chocante de manifestações nos comentários, do tipo “que se dane a França” ou coisa pior[1]. Mas um olhar um pouco mais acurado revela que não é bem assim – quando ele fala em “o povo francês”, entenda-se o governo globalista que foi praticamente imposto ao povo francês, já bastante inclinado a um esquerdismo repleto de culpas sociais, apoio ao distributivismo inconsequente e ao multiculturalismo irresponsável e outras bobagens que não são necessárias aqui, mas nunca “o” povo francês. Minhas observações a esse respeito constam em itálico na nota 1. Além disso, vale lembrar que Marine Le Pen, a concorrente do péssimo, subserviente e inábil Emmanuel Macron, obteve 34,9% dos votos, coisa impensável há apenas 5 anos[2].

Muito bem, mas eu falava da desumanização nos comentários tanto na postagem original quanto no meu próprio post, onde dizia justamente isso. Pior ainda, da compreensão do espírito da nota, que era a respeito dessa desumanização, não da situação da França – essa era apenas o veículo. Ou seja: além da desumanização, temos aí um caso de falha de cognição.

Alguns não conseguem pensar que a França sozinha é um capítulo gigantesco da história da Civilização Ocidental. Não ligam se a Notre Dame, Chartres ou o Mont-Saint-Michel virarem mesquitas ou estacionamentos ou ainda que o Louvre ou o Arco do Triunfo sejam depredados. Não se dão conta que a França produziu Carlos Martel, Santa Joana d’Arc e São Bernardo de Claraval e que tem que ser apoiada nesse sentido de retomar sua gloriosa história, não abandonada.

Há outros que só conseguem olhar o próprio umbigo: se não acontece com o seu país, está tudo bem e que se danem os outros – França incluída. E ainda há outros que acham que, por termos guinado contra a esquerda, estamos livres disso (são o subgrupo do anterior). Não estamos, de jeito nenhum. As mesmas, as mesmíssimas ideias que produziram esse lixo aí estão aqui, estão atuantes e só sofreram arranhões, mas continuam enfiados nas engrenagens do Estado, da imprensa, do Judiciário; e a Teologia da Libertação continua infiltrada na Igreja, convém ressaltar. São, portanto, tão perniciosas quanto sempre foram, senão mais, posto que voltaram à ação de forma (pretensamente) sub-reptícia e à sabotagem descarada.

Evidentemente uma maioria é solidária à França dos que não votaram nesse boneco de ilusionista chamado Emmanuel Macron, mas o que chama a atenção é o número de pessoas para quem a vontade de dizer “bem-feito” é maior do que a disposição de pelo menos solidarizar-se. Eu, definitivamente, estou no segundo grupo.

Há algumas conclusões que levantam perguntas práticas: quando o brasileiro se tornou egoísta e desumano assim? Quando vai amadurecer? Tudo isso provoca um certo sentimento de misantropia, até porque isso é muito humano.

O segundo caso bem ilustrativo, o do pobre cachorro abatido a pauladas por um segurança de uma rede de hipermercados. Evidentemente trata-se de um psicopata que exerceu sua “autoridade” sobre um ser em dificuldades e mais fraco, mas o caso aqui nem é esse, é sua consequência nas redes sociais. Os distúrbios estão visíveis também aqui: criou-se uma onda de grupos supostamente conservadores que, à revelia do que dizem, caíram na armadilha da divisão da sociedade entre os que dizem “se fosse um feto você não protestaria” e os defensores de direitos dos animais, como se fossem coisas antagônicas, como se uma coisa não tivesse necessariamente nada a ver com a outra, como se não fosse possível rejeitar ambos e como se não proviessem da mesma raiz: o mal é o mal, seja praticado contra quem for – um pobre cão inclusive. E não custa lembrar as várias passagens bíblicas a respeito da obrigação humana a respeito dos animais.

Vendo a coisa por esse prisma, fica mais fácil entender que a armadilha em que essas pessoas caíram é muito sutil e rasteira, pois evoca uma divisão social e sobretudo moral, apelando para sentimentos básicos tolos e se desdobrando em várias direções, sendo a pior delas a de provocar uma espécie tosca de “aliança” com certa esquerda, aquela que finge monopolizar o discurso de proteção aos animais. E, com isso aceitando implicitamente que quem defende animais é a esquerda. O absurdo chegou ao disparate de ameaçar a loja de fechamento, em vez de simplesmente dispensar o psicopata e entregá-lo à Justiça.

O terceiro caso, o da ministra Damares, que confesso não ter acompanhado adequadamente, me concentrando em seus desdobramentos nas redes: novamente aquela desumanização horrível. O detalhe aqui é que esses partiram de uma certa esquerda divertidinha, mas certos conservadores não se furtaram a fazer brincadeiras tremendamente sem graça, beirando a boçalidade pura mesmo. Vejam, uma menina de dez anos que toma a decisão de se matar por ter sido estuprada não é uma coisa simples, muito menos motivo para brincadeiras. Seja fato, que ela tenha mesmo visto Jesus em uma goiabeira, seja uma projeção de sua mente no sentido da auto-preservação, isso é o que menos importa. Importa é que algumas pessoas chegaram a tal ponto de desumanização e dissociação da realidade que não são capazes de imaginar o que é uma criança tomando a decisão de tirar a própria vida. Muito menos de entender que o subconsciente fará de tudo para se proteger: inclusive ver ou projetar a imagem do ícone maior de salvação. Para essas pessoas, isso é motivo de piada.

Existe ainda um quarto assunto que poderia caber aqui, ainda que esteja aí há mais tempo, a questão dos refugiados venezuelanos. Diferentemente dos “refugiados” islâmicos, que vêm de outra cultura, uma cultura antagônica, e que trazem na bagagem o propósito de impô-la a nós, os venezuelanos são refugiados reais, fogem de uma ditadura assassina e vêm dispostos a se aclimatar no Brasil porque sim, são parte da nossa cultura, a cultura judaico-cristã. Também não custa lembrar que é parte da tradição brasileira receber e acomodar esse tipo de refugiados. No entanto, uma boa parte das pessoas prefere o velho “é problema deles” ou, no limite, não se meter em questões internas de outros países, mantendo-se limpinhos e distantes. Isso quando não disparam o indefectível “bem-feito, foram eles que elegeram esses que agora os oprimem” – como no caso da França.

Há dezenas de publicações sobre comportamentos e psicologia das massas, mas de todas que li, em nenhuma encontrei algo que realmente me explicasse razões prováveis e não especulativas para essa dessensibilização. Resta-me, portanto, fazer eu mesmo essa especulação e arrisco dizer que a soma de pasteurização relativista e banalização de conceitos sérios tornou o ambiente propício a “corrupções de inteligência”, tomando emprestado o termo de Flávio Gordon em seu estudo fundamental A corrupção da inteligência, e criou um novo tipo de discurso político e social que, não obstante, apesar de novo, permanece dissociado da realidade. Não é um bom caminho.

 

Referências:

[1] Um resumão do caos na França:

A França é um país de política notoriamente socialista que abraçou o multiculturalismo. O país se entupiu de imigrantes muçulmanos refugiados, atitude essa defendida pela enorme maioria dos franceses. Com as cidades cheias de imigrantes, a quantidade de mendigos e gastos com refugiados aumentou vertiginosamente. O lixo triplicou e o turismo diminuiu. O governo assumiu todo o assistencialismo, e refugiados com mais filhos acabavam recebendo maiores “benefícios”. O povo francês começou a bancar os imigrantes que, a [sic] medida que tinham o benefício garantido, ficavam perambulando pelas ruas na vagabundagem. Macron, um típico social-democrata, teve que subir os impostos (nos combustíveis) para a conta fechar. Só que, pra piorar a situação, o governo mentiu alegando que o aumento era em prol do meio ambiente e dos problemas climáticos. O povo, com ampla mentalidade de esquerda, ficou puto, mas não com as atitudes de um governo social-democrata, e sim com a figura do presidente. Ao invés de perceberem de onde sai a grana para bancar todo o assistencialismo, consideraram que Macron governa pra uma elite e continuaram clamando por mais estado intervindo diretamente na economia. Das principais reivindicações dos coletes amarelos estão: -volta do imposto sobre grandes fortunas; -fim da política de austeridade fiscal, ignorando a dívida considerada ilegítima; -manutenção de jornadas de trabalho de 35h semanais; -ir contra qualquer reforma previdenciária e trabalhista; -aumento do salário mínimo para 1300 euros; -nenhuma pensão abaixo de 1200 euros; -aumento do assistencialismo; -sindicato manterem privilégios; -aumento do protecionismo para favorecer o comércio interno; -mais estacionamentos gratuitos nos centros das cidades; -sistema de segurança social para todos; -fim do trabalho desvinculado; -limitar contratos em grandes empresas; -criação de centros de acolhimento para refugiados e asilos; -implementação de uma política de integração real com curso obrigatório de francês, história da França e educação cívica; -criação de empregos; -serviços mais baratos para estudantes; -mais meios para a psiquiatria; -nacionalização do setor elétrico; -que as grandes corporações com Amazon, McDonald’s, Google, Carrefour paguem mais impostos. Ou seja, querem um estado mais paternalista e esperam que isso não encareça seu custo de vida. Aqui é preciso compreender que esses “coletes amarelos” não são “o povo”, são apenas os manifestantes. É como tirar o PSDB do poder e colocar o PSTU. Meu anjo, eu também quero ser um galã gostoso e milionário, casar com a Gal Gadot num iate em Punta del Este com Terry Crews como mestre de cerimônias, mas não é assim que funciona… No fim, só há uma coisa que o francês tem mais que o brasileiro… Tem mais é que se lascar! E aqui percebemos que o próprio autor é, até certo ponto, partidário disso mesmo comportamento que denuncio nesse artigo.

[2] https://g1.globo.com/mundo/eleicoes-na-franca/2017/noticia/marine-le-pen-reconhece-derrota-na-eleicao-francesa.ghtml

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As posições expressas em artigos por nossos colunistas, revelam, a priori, as suas próprias crenças e opiniões; e não necessariamente as opiniões e crenças do Burke Instituto Conservador. Para conhecer as nossas opiniões se atente aos editoriais e vídeos institucionais

Márcio Scansani

Márcio Scansani

Nasceu em Santo André/SP, em 1960. É formado em Propaganda & Marketing pela Universidade Metodista de São Bernardo do Campo/SP, foi publicitário comercial por formação e é editor de livros por opção. Passou por Editora Globo, jornal O Estado de S. Paulo, revista IstoÉ, RBS – Rede Brasil Sul, Diário Popular e Gazeta Mercantil, antes de se dedicar aos livros, paixão de toda a vida. Depois de mudar os rumos de sua carreira, já como revisor, preparador de textos e editor, participou de mais de 100 livros. Atualmente é editor da Armada.

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