A banalização da teologia

Em um tempo não muito distante a religião tradicional, sob a “tutela científica” da teologia, orientava os demais saberes e realizações humanas. As interpretações sociopolíticas, entre outras, eram feitas à luz da teologia, sobretudo, a teologia cristã. Havia marcos e fundamentos éticos desenvolvidos de maneira clara pela teologia cristã em toda a história, a começar do Oriente se estendendo e dirigindo à sociedade Ocidental. É claro que isso não impediu ações individuais e coletivas destrutivas e desumanas ao longo da formação do Ocidente. Em alguns casos pontuais, instituições ou pessoas más justificavam as suas atrocidades “em nome de Deus”.

A maldade humana era e continua sendo tão grande que, não poucas vezes, as questões concernentes ao Sagrado eram e, infelizmente, continuam sendo utilizadas como pretextos e máscaras para se tirar todo tipo de vantagem de caráter egoísta. Porém, desde que a figura do pecado – maior chaga existencial da humanidade – foi “eufemizada” e até mesmo tornada uma ilusão decorrente da fraqueza humana, o super-homem nietzschiano[1] foi tornado possível. Mais do que isso, a realidade acerca dos binômios: pecado e graça, céu e inferno, salvação e perdição tem perdido a sua força, uma vez que a humanidade busca se libertar das amarras socioeconômicas em que ela acredita estar presa, a despeito da escravidão fundamental de sua existência – as cadeias do pecado – que ela acredita inexistir.

Com o advento do método histórico-critico de interpretação, enquanto modus operandi da Teologia Liberal que contou com proeminentes autores como Schleiermacher, Harnack, etc., o processo hermenêutico das Escrituras Sagradas passou a desconsiderar os aspectos concernentes à fé, reduzindo-a a uma literatura como outra qualquer, sem caráter normativo, autoritativo e, muito menos, inerrante. Neste ínterim, o aspecto religioso, constitutivo do ser humano, continuou sim a orientar os saberes e as realizações humanas, porém, a “ciência ou instituição” que desde então tem dado vazão a esta faceta religiosa humana é a própria ciência política[2]. Esta tomou para si o cajado para guiar todas as outras ciências, instituições, relações e realizações humanas.

Nos meios de produção e disseminação dos saberes, quais sejam, academia (escolas e universidades) e mídia (escrita e falada), a chave hermenêutica para praticamente todas as situações, discussões e realizações concentra-se no aspecto político. O jornalismo é feito a partir de uma chave de interpretação política; a educação é concebida e realizada sob a mesma chave interpretativa; até mesmo a atividade intelectual ligada às questões religiosas, os estudos e discussões em círculos religiosos ou acadêmicos é feita sob o viés da política. Há sempre uma opressão velada que deve ser trazida a tona independente do objeto de estudo ou de informação pretendido pela academia ou pela mídia.

A religião tradicional antes calcada na ideia de transcendência, principalmente, do teísmo cristão, transmutou-se para uma religião light e imanentista, cuja expressão e explicação não mais ocorrem pelas vias tradicionais da teologia ou da igreja, mas pela faceta política da existência. Assim, o homem apenas mudou o veículo e o objeto de sua crença, isto é, continua religioso e confiante nos esquemas de salvação, porém, agora fomentados por seu ativismo político.

Talvez, a situação até aqui descrita não seja realidade dentre as massas populacionais. Entretanto, como já dito, nos círculos de produção e disseminação de conhecimentos, esta é uma realidade que não é de hoje. Os esforços materialistas de imanentização da transcendência[3] ainda continuam firmes nos círculos de produção cultural. A “teologia raiz” virou coisa do passado. No máximo, está restrita a pontuais círculos de estudos neste país.

O que se considera hoje como teologia é, na verdade, um ser híbrido que respira por aparelhos operados pelos sacerdotes da revolução que se julgam capazes de antecipar o eschaton[4] com suas hermenêuticas tuteladas pelo aspecto político da existência. Se outrora a boa teologia cristã apontava para a salvação em Cristo agora ela aponta para a salvação do homem pelo homem. Sua instrumentalização pela política tornou-a uma “ciência de perfumaria”. É a banalização da teologia.

 

Referências:

[1] O conceito de super-homem foi estabelecido pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche, em especial, em sua obra Assim Falou Zaratustra com o sentido de superação da ideia tradicional de homem fraco e ressentido para uma nova forma de homem que vence o niilismo.

[2] O conceito de ciência política utilizado neste contexto abarca também os aspectos concernentes as “ciências sociais”, apesar de ambas serem tratadas como “ciências distintas”.

[3] O conceito de imanentização da transcendência pode ser entendido como uma tentativa de trazer a realidade espiritual – além deste mundo material – para e somente dentro do mundo dos homens. Em outras palavras o Reino de Deus é trazido totalmente para o aqui-e-agora desconsiderando qualquer aspecto divino além do plano das vivências humanas.

[4] A antecipação do eschaton refere-se às tentativas de adiantar o juízo final da terra, porém, neste caso, tal juízo se daria apenas no plano da imanência com a instauração de um reino de paz mediante os esforços humanos, a despeito de qualquer escatologia cristã.

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Jocinei Godoi

Jocinei Godoi

Mestrando em Ciências da Religião pela PUC-Campinas-SP. Formado em Teologia pelo Seminário Teológico Batista Independente de Campinas-SP e em Filosofia pela PUC-Campinas-SP

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