A vontade de ser Deus

Não, não morrereis! Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal – Gênesis, Cap. III, v. 4-5.

Já escrevi sobre este assunto algumas vezes, principalmente em meu texto, publicado pelo IL, sobre como desviamos da reta via, querendo construir nosso próprio caminho sem se importar com a realidade; contudo, o tema da Queda de Adão é um que sempre merece ser rememorado e retrabalhado. Mesmo para os não-crentes na Bíblia, não há como negar certo realismo nas palavras escritas no Livro Sagrado.

O Paraíso Perdido, a Serpente, a humanidade caindo para a dor, sofrimento e os problemas da vida: tudo isso possui uma linguagem universal e abrangente para todos os Homens. Ao que tudo indica, os hebreus da Idade do Ferro conseguiram expressar algo tão real e verdadeiro que o âmago humano foi, enfim, desnudado pelo redator do Livro do Gênesis.

A vontade humana de moldar a realidade segundo seu próprio desejo, ignorando a Verdade e optando por se prender na própria artificialidade cambaleante, é a origem do mal, de toda a incapacidade humana de se trilhar um caminho totalmente digno e perfeito; a nossa incompetência de criar um Mundo Melhor vem daí, dos ouvidos dados à serpente, da vontade de querer ser o dono das definições do bem e do mal; da crença tola de que podemos ser, e totalmente, versados o suficiente para traçarmos nosso próprio caminho.

Ser como deuses, é como todos os Homens querem ser. Donos absolutos de suas próprias vidas, os únicos guias de que precisam são eles mesmos. O Super Homem de Nietzsche não é uma invenção de um homem triste do século retrasado, mas uma verdadeira vontade de todos nós desde a origem do Homem. Queremos, claro, moldar a natureza à nossa volta. O mundo natural pode ser modificado para que nossas vidas se facilitem e para que a sociedade progrida – rios são canalizados, pântanos são drenados, marés são barradas, canais são cavados; tudo isso ao lado do domínio que temos sobre os outros animais, pois muitos são domesticados, caçados e, até mesmo, extintos para que nossa vontade seja satisfeita. Dobramos o cenário a nossa volta e nos tornamos os protagonistas da paisagem.

Mas mesmo o domínio do mundo natural e toda nossa vontade de um legítimo avanço só se dão porque, de fato, temos algo de divino em nossos seres. Aos crentes das Sagradas Escrituras, tal dado é óbvio ao lermos a seguinte passagem: “Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis sobre a terra (…). Deus os abençoou e lhes disse: ‘Sedes fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam sobre a terra” (Gênesis, cap. I, 26-18). Para o descrente, porém, é indubitável a existência de alguma hierarquia no mundo natural. Não podemos nos igualar aos demais seres que nos rodeiam, não sem consequências desastrosas. Se for irrelevante o valor da vida humana perante outras, podemos dizer com segurança que a morte de uma planta equivale a um assassinato; se não temos nenhuma superioridade por conta do intelecto e da racionalidade, então esses atributos naturais da humanidade, em si, nada valem, isto é, todo o histórico de avanços, conquistas, toda a ciência, arte e conhecimentos adquiridos pelo Homem valem tanto quanto os hábitos de acasalamento de cachorros.

Entretanto, homens como Carl Sagan, por exemplo, veem a amplitude incalculável do universo visível e tomam o tamanho do cosmos e sua complexidade como fator marcante para determinar a humildade que a humanidade deve possuir. O nosso planeta, visto em uma distância nem tão grande assim, rapidamente se torna um “pálido ponto azul” em uma imensidão negra, fria e retalhada por pontos brilhantes milhões, senão bilhões ou trilhões, de vezes maiores que o nosso planeta; nuvens de gás e poeira que são tão gigantescas que sequer podemos imaginar seu tamanho; buracos negros tão poderosos que nada conhecido pode contra a força desses colossos…

O interessante do pensamento de Sagan é, ao que tudo indica, que o critério usado para determinar superioridade e inferioridade é meramente material, ou seja, é o tamanho quantificável das coisas. Apliquemos o discernimento de valor que Sagan usa em variados graus: se poeira, composta em uma nuvem com centenas de anos-luz de tamanho, é algo para fazer qualquer um se sentir pequeno existencialmente, então por que uma praia não poderia fazer o mesmo? Ou, quem sabe, a caatinga brasileira e todo seu pó; se a força gravitacional de um buraco negro é tão poderosa que pode servir de valor a nossa própria existência, por que também não deveríamos nos sentir ínfimos ao lado de um simples morro? O morro que encaro, enquanto escrevo este texto, tem muito mais massa do que eu, logo, mais gravidade: se fôssemos objetos flutuando no vácuo do espaço, com toda certeza eu me atrairia para ele. Isso seria suficiente como justificativa para crer em minha inferioridade em relação ás toneladas de pedra, areia, barro e terra que o compõem? – imagine o espanto que alguém deveria sentir ao se comparar com a atmosfera da Terra…

Se a quantidade material de algo é determinante para nos ensinar “humildade” perante o cosmos, pois, afinal, seríamos menos do que uma molécula de água no Oceano Pacífico, perante o Universo, então qualquer amontoado grande de terra ao lado de sua casa, quem sabe, também pode fazer o mesmo, ainda que em menor grau. Basta ser grande – não precisamos, como é óbvio, sequer comentar o absurdo desse pensamento. A marca que difere o Homem de tudo que existe no mundo físico está para além de fatores simplesmente materiais.

“Divino”, claro, não pode ter o mesmo significado para o crente e o descrente, mas é clara, para ambos, a superioridade ontológica do Homem perante tudo que nos ronda. Entretanto, essa característica singular de nossa espécie perante toda a Criação (ou a mera existência, como preferirem) é, ao mesmo tempo, acompanhada dos limites que devemos ter, perante o próprio cosmos que nos é inferior.

Apesar de termos o poder e o direito de crescermos, expandindo as fronteiras que a humanidade atualmente possui, a própria mudança no mundo natural tem suas regras. O Homem não apenas apresenta marcas dessa característica divina, mas também tem qualidades pertencentes ao material, animal. Somos seres compostos de matéria, nos constituímos em animais com instintos, necessidades fisiológicas, regras que definem o que somos. Temos uma Natureza, uma constante em meio a todos os acidentes que podem nos rodear. Não somos donos do mundo, ainda que o modifiquemos cada vez mais; os Homens fazem parte de um todo, interagem e dependem do cosmos em vários níveis; são regidos e geridos por características não apenas próprias de si mesmos.

Porém, mesmo o que nos faz superior a todos os outros seres físicos, a nossa Natureza, tem suas limitações, regras, uma via correta para agir. Também somos seres socais. O coletivo nos molda e nos constrói como indivíduos. Regras sociológicas amoldam todo e qualquer sujeito em sua forma de pensar e agir e não podemos nos desvincular dessas regras; somos devedores de uma tradição, nascemos em uma comunidade de vivos e mortos que constituíram os princípios e meios de nossas personalidades e crenças, interações e comportamentos ordinários. Isso é uma característica universal, própria do Homem em todo e qualquer caso. Não escolhemos e nem podemos escolher essa natureza social de nossa espécie, assim como não podemos escolher se os pulmões foram feitos para oxigenar o corpo ou não.

No âmbito metafísico, somos todos indivíduos, todos nós possuímos a forma humana e todos os acidentes possíveis para o Homem em sua substância. Nossas definições nos limitam, nos põem os pés no chão. Ao mesmo tempo em que esquadrinhamos e decidimos como parte do mundo natural irá se comportar segundo as nossas vontades e necessidades, somos invariavelmente parte deste mesmo mundo, sendo dependentes e impotentes para várias realizações que podem modificar o mundo.

Se a humanidade conseguiu extinguir espécies inteiras e alterar a atmosfera de um planeta, nós, igualmente, não podemos alterar nossa própria Natureza, o modo como o mundo se movimenta. Não podemos alterar a Forma do Homem, nem mesmo mudar a interação entre Potência e Ato no ser; não podemos fazer da Substância algo predicável; não podemos alterar o conceito de pessoa ou até mesmo quebrar barreiras epistemológicas que nos impedem de conhecer o mundo em sua totalidade, como desvendar todos os acidentes possíveis de uma mosca. Não somos os antigos deuses e, muito menos, Deus.

Acreditando ou não em Deus, é um fato consumado a vontade do Homem de extrapolar sua própria Natureza, isto é, de desviar e desfigurar aquilo que é certo em nome de algo paralelo. Comportamo-nos como Senhores dos nossos cosmos, donos absolutos de nós mesmos e de nossos caminhos, quando nada aponta para essa possibilidade.

No liberalismo, é certo que o indivíduo possui certa centralidade, mas mesmo nesse individualismo liberal há certas regras que estão acima de nossas opiniões e escolhas de vida. Vá para uma via ruim e terá um destino ruim, siga pela reta via e terá um bom destino – é certo que ninguém consegue seguir uma retidão absoluta, mas abaixar a cabeça para a Verdade que se apresenta em nossa Natureza é o preceito de todo santo cristão, ou de todos que querem se santificar, mas também é a regra mandatária para qualquer um que queira seguir honesto e sincero.

Ao querer ser Deus, no entanto, nos entendemos como a própria Verdade, acreditamos, em nossos egos, que nossos caminhos são os únicos só por serem nossos. É a vontade de ser Deus que guiou o assassinato de Abel, mas que também encaminha qualquer um para o crime, a mentira e o abuso.

A Bíblia possui Verdades incontestáveis. É irrelevante se autoafirmar como “moderno”, independente dessa mensagem religiosa. Querer ser Deus é um erro de todos – o erro que leva ao pecado e ao caos, quer acreditemos em Deus ou não. Tal Verdade bíblica, como qualquer Verdade, é inviolável, imperturbável e imperiosa. Abaixemos, como qualquer Homem que busque a decência, nossas cabeças para o Verdadeiro.

Sereis como deuses, versados no bem e no mal”, disse a Serpente e, ao comer do fruto da ciência, a humanidade encarou as consequências de não poder ser totalmente versada dessas áreas, desconhecendo a Natureza de seu próprio ser e, assim, sendo incapaz de se versar totalmente no bem e no mal. As palavras da Servente ecoam em todo descendente de Adão e Eva até hoje.

 

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As posições expressas em artigos por nossos colunistas, revelam, a priori, as suas próprias crenças e opiniões; e não necessariamente as opiniões e crenças do Burke Instituto Conservador. Para conhecer as nossas opiniões se atente aos editoriais e vídeos institucionais

Hiago Rebello

Hiago Rebello

Graduando em História, Licenciatura, pela Universidade Federal Fluminense, colunista do Instituto Liberal e do Burke Instituto.

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