VIDAS TRANCAFIADAS IMPORTAM

            Na obra “Da democracia na América” (1835), Alexis de Tocqueville, célebre autor do liberalismo político, descreve quase que de forma messiânica quais seriam os malefícios de um governo paternalista, assistencialista e totalitário sobre a mentalidade de um povo. Como afirma Tocqueville, “[…] após ter subjugado cada membro da sociedade, modelando-lhe o espírito segundo sua vontade, o Estado estende então seus braços sobre toda a comunidade […] A vontade do homem não é destruída, mas amolecida, dobrada e guiada; ele raramente é obrigado a agir, mas é com frequência proibido de atuar”. Segundo a perspectiva do autor, o indivíduo passa a ser não mais que um animalzinho dócil sob os auspícios do governo, que agora passa a assumir a tarefa de seu pastor. Tal previsão foi tão assertiva, que Friedrich von Hayek mencionou Tocqueville quando escreveu “O caminho da servidão” (1944), esclarecendo que, tal análise, escrita já há mais de um século, foi corroborada por inúmeros intelectuais e estadistas tão logo o partido trabalhista assumiu o poder na Inglaterra.

Na atual situação de pandemia, assim como na menção de Tocqueville, os braços do Estado se estenderam não para afagar seus cidadãos, mas para solapar o suposto sentimento de liberdade. Indivíduos ao redor do mundo foram submetidos a um estado de medo e subserviência. Tão logo suas vontades foram “destruídas”, “dobradas” e “guiadas”, foram submetidos também a um confinamento não só desnecessário, mas também extremamente nocivo. Restrições impostas por parte de alguns órgãos governamentais mostraram que a suposta liberdade da qual os indivíduos em geral supunham gozar de forma quase irrestrita era mais frágil do que se poderia imaginar, o que acabou por levar algumas pessoas sensatas a algumas reflexões: até que ponto um governo pode cercear a liberdade individual de seus cidadãos em nome do bem comum? Qual o verdadeiro papel do governo em relação a liberdade?

Aspectos bastante similares aos descritos por Tocqueville e Hayek são perceptíveis também nas distopias vanguardistas como “Admirável mundo novo”, de Aldous Huxley, publicada em 1935, e “1984”, de George Orwell, publicada em 1949. Tanto em relação às obras de filosofia política, quanto às distopias mencionadas, estas nunca fizeram tanto sentido quanto no presente momento, no qual a liberdade dos indivíduos parece ser tolhida a cada dia com uma criatividade sempre impressionante. De certa forma, aquelas obras e o atual cenário mundial estariam descrevendo situações contra as quais se posiciona também o pensamento conservador?

Para ilustrar melhor, pensemos no Brasil, no qual se desenha um verdadeiro paradoxo. Enquanto o chefe do Executivo da nação parece prezar e lutar em prol de uma ordem política que promova a garantia de liberdades individuais mediante reajustes da ordem pública, alguns governadores e prefeitos, mesmo que não necessariamente partidários da “extrema direita fascista” (que supostamente consideram ser a posição do atual presidente), nem do progressismo, parecem agir segundo estas perspectivas por meio de atitudes nada comprometidas com o bem público (embora propagandeiem isso) ou com o “bom governo” (segundo Roger Scruton, a base do pensamento conservador não partidarista).

Aliás, durante o corrente ano de 2020 não foram poucas as situações em que se presenciou o cerceamento da liberdade dos indivíduos, tornando-os meras peças sobre um tabuleiro em que essas mesmas peças foram manuseadas ao bel prazer de alguns governadores e prefeitos que agiram em total descompasso com o presidente da República, por certo encantados com as possibilidades que o “poder” lhes seria capaz de proporcionar. Dentre algumas atitudes inaceitáveis, estabeleceram regras aleatórias impostas de forma totalitária, mesmo que cientificamente contrárias à saúde e ao bem-estar. As imposições incluíram o uso de máscaras, proibição de permanecer em locais públicos sem máscara (em alguns casos, mesmo que sozinho), ou mesmo a proposta de vacinação obrigatória na população. O descumprimento de tais determinações arbitrárias se tornou, em alguns casos, passível de punição. A princípio, neste caso, o questionamento conservador tenderia a colocar em xeque a autenticidade de tais restrições, pois, as ações de um governo devem (segundo o conservadorismo) necessariamente promover as condições necessárias para o fomento, exercício e manutenção da liberdade, não seu cerceamento.

Assim como para o “Grande Irmão” na obra de Orwell, como não é possível aos tiranetes governamentais a onipresença para fazer cumprir suas regras insanas, bastou delegar ao rebanho a tarefa de policiar seus “camaradas”. Durante a pandemia não foram poucas as manifestações de pessoas que, mesmo esclarecidas, estiveram dispostas a constantemente, e sem nenhum remorso, delatar pessoas que não estivessem cumprindo as ordens estabelecidas. Essa aparente preocupação com a saúde pública na verdade consiste em nada mais que um disfarce, que possibilita a algumas pessoas comuns, até então inexpressivas em suas vidas ordinárias, ditarem regras para outras sempre com a desculpa moral de que seria para o bem comum.

É interessante colocar em pauta a noção de “moderação” presente na atitude conservadora da qual nos fala Scruton em sua obra “O que é conservadorismo”: o razoável seria a alternativa desejável frente a um apelo totalitarista, a propósito, tanto proveniente da esquerda, quanto da direita. Conforme afirma o autor, “a liberdade só deveria ser atenuada diante da possibilidade de alguém vir a sofrer por causa de seu exercício”. Dito de outra forma, a restrição de uma liberdade deveria ser empreendida se, e somente se esta viesse a causar o impedimento de outra liberdade. O fato de que uma pessoa, no ato de sua liberdade, pretenda sentar em uma praça pública vazia e sem máscara, causaria o impedimento da liberdade de outras pessoas? Um indivíduo que se negue a ser vacinado por não lhe parecer aprazível, muito menos saudável inserir em seu organismo uma substância ainda não devidamente comprovada como eficaz contra o “vírus chinês” (ao menos não aos moldes de toda uma tradição de outras vacinas já testadas e comprovadas), causaria o impedimento de que outras pessoas o fizessem se assim o desejassem?

Creio que a maioria dos cidadãos brasileiros desejaram que os governos, tanto estaduais quanto municipais, tivessem a melhor das intenções com seus decretos. Mas, convenhamos, alguns deles refletiram não mais que certa pretensão de um protagonismo panfletário no teatrinho pré-eleição. Já em março de 2020, logo no início da pandemia, na tentativa de intimidar comerciantes, algumas prefeituras chegaram a veicular na mídia frases ameaçadoras como: “Quem insistir em abrir comércios ‘não essenciais’ poderá ter alvará cassado”. De formas diversas, mas com o mesmo sentido, outros governadores e prefeitos pelo país afora veicularam notas similares nas mídias regionais.

Mas, ainda resta a questão: o que seriam comércios não essenciais? Medidas desse calibre, que na época pareceram atitudes sem qualquer respaldo científico, mostraram-se exageradas e totalmente descabidas. Entretanto, toda e qualquer pessoa com um mínimo de inteligência que estivesse acompanhando as notícias pelo país, percebeu se tratar apenas de uma atitude inescrupulosa na tentativa de desarticular o atual chefe do Executivo, por óbvio, contando com a ajuda da mídia massivamente esquerdista que buscava denegrir a figura do presidente da nação desde sua posse. Não só isso: as regras ditadas para a reabertura do comércio estabeleciam restrições aos clientes também, desde que pretendessem entrar em algum estabelecimento. Com isso, as pessoas não poderiam deixar de usar máscaras, caso contrário, não lhes seria permitido o acesso.

Eis que inicia o mês de novembro deste ano. Após um momento de suposta diminuição na curva de contágios, e que por algum motivo que desconheço, coincidiu com o período de campanha eleitoral, tão logo decretado o final do primeiro turno das eleições municipais, voltou-se ao quadro de subida da curva de contaminados e novas restrições foram estabelecidas. O que se pode depreender das normativas cada dia mais restritivas e perniciosas estabelecidas pelos governadores e prefeitos arautos do caos e da desgraça? Certamente os aspirantes a ditadores já perceberam a fragilidade e vulnerabilidade na qual recaem as pessoas quando o assunto é doença. E pode-se ter certeza que tais governantes se utilizarão dessa fragilidade para levarem adiante seus planos de poder. A questão que vem à mente é: quais motivos foram os responsáveis pela atual situação? Como viemos parar aqui?

A perspectiva conservadora acerca da liberdade parece ser bastante contundente para refletirmos as questões acima. Em geral, as pessoas pensam na liberdade como sendo o objeto central de sua finalidade de vida. A ideia de liberdade adquiriu um status de importância tão expressiva para aqueles que a desejam, que tal importância talvez tenha excedido a própria compreensão acerca do real significado de liberdade e o que ela verdadeiramente representa na completude da existência humana. Entretanto, para todo o conservador que tenha se debruçado sobre essa temática, de Burke a Scruton, é evidente que a liberdade não brota senão de um demorado processo de maturação a partir de uma ordem social que não só visa o alcance da liberdade por cada membro que a compõe, mas, acima de tudo, que busca fomentar as condições para que a liberdade seja possível. E, dada a sua realidade, também com foco na manutenção de uma vida livre.

Um governo que não possua traços conservadores tende sempre a se comprometer retoricamente com a liberdade em primeiro lugar para mascarar a prática de subversão da ordem vigente em prol de uma revolução. Esta revolução, silenciosa ou não, supostamente removeria as velhas bases carcomidas do Estado, abrindo caminho para algo novo. É nesse momento que o desastre ocorre. Pois, ao solapar as bases já estabelecidas após longo tempo de desenvolvimento e aprimoramento, um governo não conservador acabaria por remover a própria estrutura de sustentação sobre a qual unicamente a liberdade poderá se manter incólume. É importante ressaltar a afirmação de Scruton de que “o desejo de conservar é compatível com todos os tipos de mudança, desde que essa mudança signifique continuidade”. Portanto, um governo no poder não necessita destruir tudo aquilo que levou anos para ser estabelecido (desde que tais construtos não sejam nocivos, ou visem a destruição da própria ordem social sobre a qual a liberdade deverá se alicerçar).

Mas é claro que existem restrições que são salutares para a liberdade. Nem mesmo um liberal como John Locke se furtou a defender a ideia segundo a qual a liberdade possui limites. Entretanto, esta não parece ser a atitude de muitos dos governantes engajados no patrulhamento dos indivíduos. A liberdade não só é tolhida de forma arbitrária, exagerada e injustificada, como também carece da ordem social que deveria lhe dar sustentação, o que certamente a tornaria sólida e inabalável, trazendo plenitude ao indivíduo que a exercita.

Assim, torna-se necessário observar quais governantes possuem atitudes que visem empreender o estabelecimento de uma ordem social que em sua natureza promova as condições para que a liberdade surja e se solidifique. Resta claro que são nocivos os governantes que pretendam apenas fomentar ideologias pedantemente beligerantes ou mesmo “ideologias particularistas” nefastas que nada mais fazem do que desmantelar uma sociedade em classes. Talvez o mais sensato seria buscar pessoas que possuíssem um mínimo de retidão de caráter, que fossem fortes (no sentido moral), mas não rudes, e dessa forma, servissem de modelo a verdadeiros intelectuais. Estes, certamente lhe seriam gratos pelas ricas lições que brotariam de suas ações, e não de discursos retóricos que são fartos em palavras, mas pobres em conceitos.

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