Eric Voegelin em 4 questões: dos campos nazistas ao sacrifício da realidade

O filósofo germano-americano Eric Voegelin (1901-1985) oferece, ao longo de sua obra, uma nova abordagem para a ciência política e novas ferramentas para a filosofia política. Felizmente dispomos, como porta de entrada para o seu pensamento, de um conjunto de declarações expressas no livro póstumo: Reflexões Autobiográficas (1989), sobre o qual propõe-se uma análise mais acurada neste curso oferecido pelo Burke Instituto e lecionado por esse que vos escreve; trata-se de uma análise mais aprofundada para melhor compreender o seu pensamento, obra e vida.

Os principais temas de sua vida e filosofia (aspectos entrelaçados pela consciência individual) são abordados na obra, de maneira que podemos destacar os seguintes aspectos, cobertos nas quatro aulas do curso: A) a questão da biografia que se entrelaça à filosofia: aspectos determinantes da vida e formação de Eric Voegelin; B) a questão nazista: a explicação de Voegelin para a ascensão do nazismo e do caráter de Hitler ― destrinchado em Hitler e os Alemães ―; C) a questão da ideologia e do sacrifício da realidade no altar ideológico e, por fim, D) a questão das religiões políticas: a evolução de um conceito voegeliniano.

 

A – A biografia de Eric Voegelin[2]

O estudo da biografia de qualquer autor clássico ou de elevada relevância praticamente sempre se faz bem-vindo. Mas no caso de Eric Voegelin há uma peculiaridade importante nisso, que torna ainda mais relevante. Para Voegelin, a Filosofia deve se debruçar sobre a realidade, e o desenrolar da trama da realidade só poderá ser apreendido pelas consciências individuais que percorrem um caminho: sua biografia. Como já dizia o espanhol Ortega y Gasset: “O homem é o homem e a sua circunstância”.

Voegelin nasceu em 1901 na cidade alemã de Colônia e morreu em 1985 em Stanford, nos Estados Unidos da América. Voegelin não apenas morreu em território americano, mas também como americano, tendo se naturalizado na pátria que o acolheu na fuga dos nazistas na Europa, como tantos outros europeus. Embora não fosse judeu, a obra de Voegelin certamente era hostil ao ideário nazista, visto que se debruçou sobre o mito da raça e a natureza dos governos ditatoriais. Seu horizonte de consciência, já para aplicar um de seus conceitos, era amplo; amplo a ponto de espantar os próprios soldados nazistas que visitaram seu quarto pouco tempo antes de conseguir escapar das guardas nazistas (conforme relato das próprias Reflexões). Para tratar da relação entre nazismo e o conceito de “raça”, estudou toda a biologia de sua época. Estudou também física e matemática. Para tratar dos temas políticos que investigou ao longo da vida, pesquisou até hieróglifos egípcios em seus mínimos detalhes. Esteve no polo intelectual europeu de sua época, a Viena do início do século XX, cultivando relação pessoal com Hans Kelsen (1881-1973), Ludwig von Mises (1881-1973) e sofrido influência de Eugen Böhm-Bawerk (1851-1914), Joseph Schumpeter (1883-1950), Moritz Schilick (1882-1936), Ludwig Wittgenstein (1889-1951), Sigmund Freud (não houve encontro pessoal, mas as ideias freudianas estavam a pleno vapor na época de Voegelin) [1856-1939], Friedrich Hayek (1889-1992) e outros. Além de ter trocado correspondências relevantes do ponto de vista filosófico com Leo Strauss (1889-1973)[3] e farpas com Karl Popper (1902-1994)[4].

Voegelin deixou a Europa em 1938, logo após a anexação por parte da Alemanha nazista da Áustria (o Anschluss), que também foi sua pátria provisória. Aí já era um filósofo com obras publicadas (p.ex. Raça e Estado de 1933) e, antes disso, havia tido uma sólida educação em latim, grego, inglês e francês e adentrado à Faculdade de Direito da Universidade de Viena em 1919, migrando posteriormente para a Ciência Política. Regressou à Europa em 1958 para lecionar na Universidade de Munique, onde fundou o Instituto de Ciências Políticas e ocupou a cadeira de Max Weber.

Voegelin concluiu seu doutorado na Universidade de Viena em 1922. Logo depois disso se torna professor associado da mesma universidade. Em 1938 fugiu para a Suíça, na Suíça quase foi preso pela Gestapo, mas terminou por conseguir rumar para os EUA com sua esposa[5] e se consolidar e realizar intelectualmente na América, como tantos intelectuais do mesmo período (inclusive a conterrânea e interlocutora Hannah Arendt, que se encantou com os EUA). Leiamos o relato do próprio a respeito de sua emigração:

“Como acabo de explicar, por muito pouco consegui escapar da Áustria. A Gestapo estava prestes a confiscar meu passaporte, o que teria significado o fim de qualquer possibilidade de emigração dentro da legalidade. Mas essa diligência da Gestapo também teve seu lado engraçado. Por exemplo, na vistoria geral dos funcionários da universidade, um agente da Gestapo veio à nossa casa e revistou minha escrivaninha, as gavetas e as estantes de livros para descobrir o que eu fazia. Era um jovem de seus vinte e tantos anos e, quando assumimos um tom cordial, contou-me que antes fora advogado em Hamburgo. Primeiro, inspecionou minha escrivaninha para ver se encontrava algum material incriminatório. Como eu fora recentemente demitido e não tinha muito o que fazer além de preparar minha emigração, dispunha de bastante tempo para me dedicar ao estudo de problemas difíceis. Na ocasião, eu estava estudando os problemas do império, e havia sobre a minha escrivaninha pilhas de tratados sobre Bizâncio, muitos em francês e inglês. O agente folheou essa literatura sobre o império bizantino. Observou que, embora fosse responsável por fazer a vistoria de todos os professores da Faculdade de Direito, estava pela primeira vez diante da escrivaninha que parecia de fato pertencer a um scholar. A tensão do ambiente se dissipou” (VOEGELIN, 2008, p. 91).

 

Parte do desconhecimento geral de um filósofo tão grandioso e importante, a ser sanada com as aulas desse curso introdutório, pode ser explicada pelo fato de sua poderosa crítica não se aplicar somente ao nazismo e a Hitler, mas igualmente ao comunismo e aos ideários marxistas. Ambas ideologias são postas lado a lado por Voegelin, não porque sejam idênticas em seu conteúdo (ou seja, sem cair na esparrela recente e constante das redes sociais de discutir se o nazismo era “de esquerda” ou “de direita”), mas certamente porque o são em sua forma: as duas são descritas por Voegelin como religiões políticas (outro conceito particularmente importante de seu pensamento, aclarado na aula 4), como “assassinas da realidade”, gnósticas e filhas legítimas da modernidade, por se verem capacitadas a instalar algum tipo de paraíso terreno. Voegelin classificou Marx em Science, Politics and Gnosticism (1968) como “impostor intelectual”[6].

Segundo Ellis Sandoz – aluno, comentador e responsável pela organização e entrevistas contidas em Reflexões Autobiográficas – “este livro oferece a melhor introdução possível à vida e ao pensamento desde que foi um notável scholar” (VOEGELIN, 2008, p. 9, grifo nosso) e é “o melhor ponto de partida para o estudante que não tem familiaridade com os escritos de Voegelin” (idem, p. 14). Voegelin certamente não foi o único scholar (acadêmico na plena acepção da palavra e não no sentido “comentariológico”[7] das academias de hoje), mas certamente foi um dos últimos.

Na introdução do livro, por Sandoz, é possível encontrar o ordenamento lógico e cronológico das principais obras de Voegelin. Como define o aluno de Voegelin, o propósito da filosofia de seu mestre é “recuperar a realidade em um mundo dominado por segundas realidades” (VOEGELIN, 2008, p. 15). As “segundas realidades” de que fala Voegelin são as ideologias – tratadas mais adiante – que colocam os sujeitos diante de falsidades e de lentes interpretativas que não revelam o mundo tal como ele é, mas a partir dos pressupostos falsos em que se baseiam. Sendo o século XX o século das ideologias, a recuperação da realidade, brutalmente sacrificada, se faz imprescindível e esse é o propósito maior da Filosofia voegeliniana.

Conforme tratei no artigo “Eric Voegelin: filósofo da realidade”[8], o objetivo de Voegelin com sua filosofia que entrelaça a vida é a restauração da realidade, fato também atestado por Sandoz: “temos uma amostra de como Voegelin empreendia essa busca: não como quem monta um quebra-cabeça intelectual ou toma parte em um jogo às vezes perigoso, mas como quem vive uma vida” (VOEGELIN, 2008, p. 15, grifo nosso).

 

B – Voegelin e o nazismo[9]

As obras de Voegelin que se concentram nas questões atreladas ao nazismo foram redigidas no intervalo de tempo entre 1933 e 1938. A primeira delas é Raça e Estado, de 1933, um aprofundado estudo sobre o conceito de raça e onde já fica evidente a verve de verdadeiro scholar do filósofo, que saiu em busca de todo conhecimento científico existente a respeito do tema para poder tratar do assunto em livro. No texto, o racismo institucionalizado e a meta de estabelecer um etnoestado nazistas são debulhados e rechaçados pelas análises e conclusões de Voegelin.

Como alguns outros intelectuais, especialmente da literatura, como Thomas Mann e Karl Kraus, Voegelin foi capaz de antever a tragédia que o nacional-socialismo representaria para a Alemanha e para a Europa. A Alemanha pré-nazista vivia imersa num caldo cultural decadente e ideologizado, com a linguagem deteriorada[10] (o principal fator que não passou despercebido pelos literatos citados), e isso só poderia culminar numa tragédia sem precedentes, na ascensão de justificativas estapafúrdias para o genocídio. Na esteira do que dizia Hugo von Hofmannsthal “nada está na realidade política de um país, que não esteja primeiro na sua literatura”. Sendo isso um fator explicativo para a ascensão do nacional-socialismo ao poder muito mais importante que as causas históricas normalmente atribuídas (o revanchismo pelo Tratado de Versalhes, a crise de 29, o sentimento nacionalista etc.).

Karl Kraus (1874-1936) foi uma influência de primeira grandeza para Voegelin, como o próprio revela:

“Kraus foi o grande publicista de Die Fackel (A Tocha), publicação de periodicidade irregular que, assim como suas demais obras literárias, era lida por todos os jovens que eu conhecia. Era o substrato intelectual e moraliste que nos dava a todos uma compreensão crítica da política e, especialmente, do papel da imprensa na desintegração das sociedades alemã e austríaca, preparando o terreno para o nacional-socialismo. A posição fundamental de Karl Kraus era a do grande artista da linguagem que defendia a norma culta contra sua corrupção pelos modismos literários e, especialmente, pelos jornalistas” (VOEGELIN, 2008, p. 39).

Algumas pessoas dos círculos de Voegelin acabaram por aderir ao nacional-socialismo, como provavelmente era verdade para qualquer um que frequentasse as classes letradas das nações germânicas da época. Voegelin, embora não fosse judeu, tanto criticou as pretensões nazistas em suas obras quanto concordava com o vaticínio dos literatos, o que serviu de vacina contra a possibilidade de adesão ao socialismo hitlerista.

Ainda, a principal obra voegeliniana a respeito do nazismo não é Raça e Estado, mas um conjunto de palestras proferidas, posteriormente reunidas sob o título de Hitler e os Alemães. Na obra, Voegelin trata do caráter de Hitler – e refuta o arraigado mito da personalidade cativante, oratória afinada e da genialidade do austríaco, além da questão da culpa dos alemães no estabelecimento do nazismo, importante questão tratada na Alemanha durante o pós-nazismo e os processos de “desnazificação” do Estado alemão.

Conforme fora afirmado, é em Hitler e os Alemães que Voegelin esmiúça a suposta aura que circundava a figura de Hitler. De acordo com a explicação de Flavio Gordon em seu A Corrupção da Inteligência e citação ao próprio Voegelin:

“Então, a aura não é um poder objetivo, mas funciona seletivamente. Certas pessoas sucumbem a essa aura, outras, não. E a seletividade da aura de novo está em correspondência com a problemática que tratei da última vez, a fonte da autoridade: poder, razão e revelação.

Quem reage apenas ao poder sucumbe à aura do poder e da existência que irradia de Hitler. Quem, além disso, é uma personalidade de certo nível espiritual não sucumbe. Essa é a diferença. Então, pessoas comuns e vários outros grupos sociais sucumbem. Em todas as conferências e discursos de Hitler havia algumas mulheres nas primeiras fileiras que eram fãs extáticas e estavam sempre por ali. Eram chamadas pelos membros da SS – pessoas de uma disposição algo mais tosca – a “brigada de veia varicosa”. Esses, então, eram os tipos de pessoas fascinadas por Hitler e sucumbiam à aura dos olhos azuis. Quando se leem discursos da líder da organização feminina nacional-socialista, onde ela elogia em ternos êxtases sexuais o homem que Deus enviou a elas, vê-se que esses são os tipos que sucumbem. Os outros, naturalmente, não” (GORDON apud VOEGELIN, 2017, p. 33).

Acerca da temática do nazismo, Voegelin também manteve diálogo importante com sua conterrânea, orientada por Martin Heidegger, Hannah Arendt (1906-1975). Não pode ser objeto de espanto o diálogo entre os dois filósofos, visto que Hannah Arendt também se debruçou sobre o fenômeno do nazismo, descrevendo-o como totalitarismo, em sua obra clássica Origens do Totalitarismo. Voegelin e Arendt tinham discordâncias quanto ao tema, mas travaram a conversa num nível necessário e importante para esclarecer os conceitos tão caros à compreensão política do século XX. Aos eventuais interessados no debate, recomenda-se o artigo “Debate sobre o totalitarismo: a troca de correspondências entre Hannah Arendt e Eric Voegelin” de autoria da professora Daiane Eccel[11], além de um dos textos das correspondências (a réplica de Arendt à resenha do Origens feita por Voegelin), disponíveis na obra de ensaios de Arendt, Compreender: formação, exílio e totalitarismo.

Por fim, o livro e o conceito que será abordado na quarta parte (D) deste ensaio, As Religiões Políticas, foi o título do intervalo 1933-1938 que verdadeiramente enfureceu os leitores nazistas dos escritos de Voegelin.

 

C – A questão da ideologia[12]

Eric Voegelin foi um crítico das ideologias. O pensamento de esquerda, vigente na academia, obteve sucesso em emplacar a narrativa de que, no fim das contas, “tudo é ideologia” pois não existe realidade a ser descrita e tampouco verdade a ser descoberta. É uma herança do gnosticismo marxista (ver adiante em “D”) que promoveu a ideia de que a realidade está encoberta pelo véu da ideologia da “classe dominante” e que só pode ser descoberta pelo “materialismo histórico”, única lente apropriada para se ver a realidade livre de ideologias[13]. A modernidade é a era das ideologias (cf. HIMMELFARB, 2011; MACCLISTER, 2017).

O problema com as ideologias, para Voegelin, é que elas não revelam a realidade, mas apenas “segundas realidades”, inserindo os indivíduos nesta última, alheia à primeira. Segundo Sandoz: “Voegelin procurou filosofar para recuperar a realidade em um mundo dominado por segundas realidades” (VOEGELIN, 2008, p. 15).

A Primeira Realidade é a realidade tal como é, a realidade verdadeira. As “segundas realidades” são as realidades criadas pelas ideologias. Um dos exemplos dados por Voegelin ― talvez não dos mais justos ― em Hitler e os alemães é o de Dom Quixote de la Mancha do clássico universal Dom Quixote, Quixote, no romance, é o indivíduo que se deixa levar, conduzir e pautar pela ideologia da cavalaria. O mundo da “segunda realidade” criado pela ideologia envolve o sujeito num esquema mental apartado do mundo real e, na medida em que esse esquema mental (a segunda realidade) só pode existir em permanente tensão com a primeira realidade, acaba por produzir efeitos nesta última, como, por exemplo, as revoluções. O sujeito “acometido” por alguma ideologia não busca o real, mas, pelo contrário, tenta adaptar o real à “realidade” paralela proposta por sua ideologia ― é o dilema posto diante de qualquer revolucionário desejoso de impingir num mundo imperfeito o seu esquema “ideal” de “mundo perfeito”. A ideologia está para o ideólogo como a visão deturpada de religiões tradicionais está para seus fanáticos.

E o que exatamente é uma ideologia? A palavra remonta às eras napoleônicas. Em nível totalmente rudimentar, uma ideologia é uma mera coleção de ideias, mais ou menos concatenadas entre si. Mas não é contra esse sentido simplório que Voegelin investe, mas num sentido bastante próximo, inclusive, daquele tratado pelo filósofo Russell Kirk, descrito em A Política da Prudência, onde afirma: “o ideólogo, ao contrário, pensa na política como um instrumento revolucionário para transformar a sociedade e até mesmo a natureza humana. Em sua marcha para a utopia, o ideólogo é impiedoso” (KIRK, 2013, p. 91, grifo nosso).

A ideologia, portanto, pode ser descrita como uma visão totalizante de mundo (e, nesse aspecto, acaba por ir até além do que propõem e prometem as religiões) que promete criar um paraíso na Terra caso todas as suas exortações sejam rigorosamente cumpridas. É o caso, no século XX, de nazismo e comunismo, que prometiam um paraíso terreno eterno caso a realidade fosse purgada de classes ou de raças inferiores.

Em trecho clássico das Reflexões, Voegelin faz a seguinte descrição das ideologias: “as ideologias destroem a linguagem, uma vez que, tendo perdido o contato com a realidade, o pensador ideológico passa a construir símbolos não mais para expressá-la, mas para expressar sua alienação em relação a ela” (VOEGELIN, 2008, p. 39). Ou seja, tal como vislumbraram os literatos alemães do início do século XX, a destruição da linguagem que observaram era prenúncio da ascensão de alguma ideologia nefasta. E ideólogos precisam se incumbir da tarefa de sua destruição porque não podem descrever o mundo tal como ele é a partir da linguagem, mas precisam descrever sua própria alienação em relação a realidade por meio de uma mutilada linguagem que dê conta da tarefa.

 

D – As “religiões políticas”[14]

Intermezzo: o problema do gnosticismo:

Voegelin diagnosticou em A Nova Ciência da Política que a modernidade traz em seu bojo o problema do gnosticismo. O gnosticismo é, originalmente, uma doutrina cristã herética, combatida desde seu surgimento pela Igreja Católica. Em resumo, gnósticos clamam, como a própria etimologia explicita: “possuir conhecimento”. Mas não qualquer conhecimento, mas a gnose (diferente de episteme e phronesis, portanto). Um tipo especial e diferente de conhecimento, associado à revelação especial e à intuição individual, portanto e, ainda, por consequência, restrito a alguns poucos.

No campo histórico-político, o gnosticismo se revela com sua crença na imperfeição do mundo, mas que a correção dessa imperfeição é possível e realizável dentro da própria História, a partir, justamente, do conhecimento revelado a alguns pares de pessoas. Ou seja, como afirma Nelson Lehmann da Silva[15] (primeiro brasileiro a estudar Voegelin em nível acadêmico até onde me consta), o gnosticismo se caracteriza pela secularização ou imanentização do transcendental ou da revelação. Disso se pode ver porque o gnosticismo é herético, primeiro porque a religião de Paulo não dispõe de um esoterismo (como o islã e o sufismo ou o judaísmo e a cabala) que permita a revelação especial a um grupo de pessoas, depois porque a “imanentização” do transcendental significa trazer o Paraíso pós-morte para a Terra e para a História. Em vocabulário agostiniano, significa trazer a Cidade de Deus para dentro da Cidade dos Homens.

Restou ao gnosticismo, portanto, estender suas asas no campo social, dando origem ao que o jovem Voegelin chamou de “religião política”. O cientista político brasileiro José Oswaldo de Meira Penna (1917-2017) explicou em poucas linhas a questão em seu livro A Ideologia do século XX:

“Segundo foi reconhecido pelo filósofo germano-americano Eric Voegelin, a ordem espiritual ou ordem da revelação judaico-cristã consubstancianda na dicotomia agostiniana da Cidade de Deus, eterna, e da cidade terrena, sede do poder temporal pragmático, dicotomia dominante em nossa cultura por quinze séculos, passou a ser contestada a partir do Renascimento e do Iluminismo. No dualismo gnóstico, conforme assinala Voegelin, o mal não pode ser atribuído à vontade pecaminosa do indivíduo, porém é resultado inevitável da existência no mundo material. Dessa condição terrível, só uma pequena elite de indivíduos que conhecem (gnose) a realidade subjacente (no caso, os intelectuais marxistas e políticos radicais) é capaz de escapar do determinismo da vida material e forjar a utopia em que serão realizadas todas as aspirações humanas e todos os desejos satisfeitos na justiça e no bem-estar”.

 

As religiões políticas:

O gnóstico, convencido de que porta o conhecimento necessário para trazer o paraíso para a terra, funda algo com a estrutura de uma religião (particularmente o cristianismo; a controvérsia sobre o termo será tratada a seguir) que concentrará o passo a passo necessário para trazer essa realidade paradisíaca para a História. Note-se que o termo passa longe de ser uma mera alusão a “fanatismo” político (embora guarde alguma relação com essa noção também). O primeiro empreendimento voegeliniano para estudar o tema foi seu As Religiões Políticas (2002), aprofundado e melhorado em A Nova Ciência da Política (1982).

As principais ideologias políticas do século XX – nazismo e comunismo (expresso na forma de stalinismo) – podem ser considerados o melhor exemplo de religião política, sendo assim tratadas pelo próprio Voegelin, apesar de, como mencionamos, o fenômeno ter sido gestado e embalado pelas ideologias ao longo de toda a modernidade. Para os interessados nesse aspecto em particular, podem ir direto aos primeiros capítulos do já citado A Nova Ciência da Política.

Parece que, quando bem compreendido, o que Voegelin quer dizer seja claro e distinto. Nazismo e comunismo (não se trata de afirmar que são exemplos exclusivos, mas apenas mais completos) basearam largamente em: culto à personalidade (Hitler, Stalin, Kim Jong-il etc.), infalibilidade do líder (idem), hinos, salvação, perdição, expurgo de pecados, condenação de pecadores, perseguição ao “mal” (seja o judeu, seja o burguês), redenção, paraíso e, destaca-se, escatologia. Tudo isso foi observado diretamente pelo estudioso polonês Leszek Kolakowski (1927-2009) no partido comunista de seu país. E levou Raymond Aron (1905-1983) a retomar o termo “religião civil” (presente nos textos de Hobbes e Rousseau) para descrever nazismo e comunismo.

Escatologia, dissemos, porque o que religiosos políticos fazem é imanentizar o que os gregos chamavam de escathon. O fim de todas as coisas (escathon, que é diferente de télos) deixa de ser reino acessível apenas à alma no pós-morte, mas é imanentizado na História pela teologia política das ideologias modernas. Ninguém pode ficar surpreso ao compreender isso e lembrar da sanguinolência do século XX. Se o sujeito se vê imbuído da crença que tem o conhecimento necessário para realizar o fim da História, não é surpresa que saia matando todos que ousarem se pôr no caminho. A mudança revolucionária na ordem implica que seus perpetradores estejam totalmente imersos numa espécie de autoridade religiosa do mal, onde os fins justificam os meios. Vale lembrar que Trotsky acreditava que quando o comunismo finalmente vingasse, a História se encerraria, o Estado sucumbiria e cada homem, florescendo de forma radicalmente livre, teria a capacidade intelectual equivalente a Goethe ou Aristóteles. Quem em sã consciência enfrentaria um homem absolutamente crente de que está envolvido no processo para tornar essa realidade possível? E quem, movido por essa crença, não estraçalharia reacionários que significassem a impossibilidade ou atraso na concretização dessa realidade? Eis a essência da ética de um “religioso político”.

 

À guisa de conclusão: em defesa do termo “religião política”:

Poderíamos, de forma muito acadêmica, traçar uma distinção entre um Voegelin jovem e um Voegelin maduro (como se faz com Platão) ou falar em Primeiro Voegelin e Segundo Voegelin (como se faz com Wittgenstein), mas isso não é necessário. Em suas aqui estudadas Reflexões Autobiográficas (2008, p. 86 e 87), Voegelin afirma que o termo “religião política” tem seu uso dificultado porque é impreciso. Reunir as diversas manifestações religiosas existentes sob o termo “religião” já é demasiadamente complexo, visto suas diferenças, em alguns casos intransponíveis. Imaginemos então estender a nomenclatura para ideologias políticas por possuírem semelhanças com algumas religiões. O próprio Voegelin chega a essa conclusão e não propõe substituto. Seria um empecilho para o estudo do conceito?

Acreditamos que não e elencamos diversas razões para isso: num ordenamento factível das coisas, um termo aproximado é melhor que termo nenhum para descrever um dado fenômeno e o fenômeno em si deve ter prioridade ontológica sobre sua nomenclatura. Chegássemos a trocar “religião política” simplesmente por “X”, isso seria problemático, mas não suficiente para eliminar a existência do fenômeno descrito. Embora o termo possa ser considerado problemático, não quer dizer que seja absolutamente imperfeito, ao ler a completa descrição que Voegelin faz do fenômeno que deseja diagnosticar e, conforme mostramos, é perfeitamente verossímil chamar as “religiões políticas”, que copiam os esquemas estruturais particularmente dos monoteísmos, esvaziando-os de seu conteúdo metafísico, de “religião”, afinal é isso que são os monoteísmos, a despeito da variedade de outras religiões que existem. E, por fim, toda a bibliografia crítica posterior sobre o tema, consciente do problema, não abandonou o termo (provavelmente porque não encontrou substituto adequado), justificando seu uso, mesmo com as ressalvas que cabem aos acadêmicos e estudiosos.

 

Notas:

[1] André Assi Barreto é professor de História e Filosofia desde 2012, mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Aluno de Olavo de Carvalho. Tradutor, palestrante, editor e revisor. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8961544733568539. E-mail: andre.assibarreto@gmail.com

[2] Destacam-se, para esta parte do ensaio, os capítulos 1 e 2 das Reflexões.

[3] Compilada em livro e em português pela É Realizações: https://www.erealizacoes.com.br/produto/fe-e-filosofia-politica—a-correspondencia-entre-leo-strauss-e-eric-voegelin-1934-1964

[4] https://jornalggn.com.br/noticia/eric-voegelin-comenta-karl-popper/

[5] Os pais de Lissy, esposa de Voegelin, eram simpatizantes do movimento nazista e até tinham quadro de Hitler em sua sala.

[6] Voegelin aderiu ao marxismo numa fase de sua vida – fase que durou poucos… meses (VOEGELIN, 2008, p. 15) e também falou brevemente sobre uma impossibilidade, a amizade genuína com marxistas: Ainda me lembro de uma cena nos anos 30 em que, após um entusiástico debate que terminou em desacordo, um desses rapazes, não muito mais jovem do que eu, exclamou, com lágrimas nos olhos: “E quando chegarmos ao poder teremos de matá-lo!” (VOEGELIN, 2008, p. 130).

[7] As academias modernas estão impregnadas quer de relativismo epistemológico radical – um convite ao desinteresse pela pesquisa ampla e profunda, afinal todo conhecimento é equivalente, quer de “comentariologia”, ou seja, pesquisadores especializados em alguma vírgula de algum livro de algum autor, sem capacidade para fazer sua erudição restrita dialogar com outros campos, áreas e com a própria cultura em geral.

[8] https://www.burkeinstituto.com/blog/historia/eric-voegelin-filosofo-da-realidade/

[9] Destacam-se, para esta parte do ensaio, os capítulos 5, 13 e 15 das Reflexões.

[10] Para uma pequena análise dessa questão, é pertinente a leitura das notas de rodapé 2 e 4 da edição de 2008 da É Realizações aqui utilizada, redigidas por Martim Vasques da Cunha.

[11] <http://www.scielo.br/pdf/ln/n101/1807-0175-ln-101-00141.pdf>.

[12] Recomenda-se, com efusão, capítulo 14 das Reflexões acerca do tema das ideologias.

[13] Sobre o conceito marxista de ideologia, conferir a resenha do livro “O que é ideologia” de Marilena Chaui: <http://www.andreassibarreto.org/2011/11/resenha-o-que-e-ideologia-marilena.html>.

[14] O livro As Religiões Políticas, publicado apenas em edição portuguesa da editora Veja (2002) é a referência inicial para se estudar o “jovem Voegelin” a respeito da questão. No capítulo 14 consta a ressalva do “Voegelin maduro” a respeito do tema.

[15] O livro de Lehmann, A Religião Civil do Estado Moderno (Vide Editorial, 2016), também é uma excelente introdução ao pensamento de Voegelin.

 

Referências bibliográficas (e bibliografia sugerida):

ARENDT, Hannah. Compreender: formação, exílio e totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

               . Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia de Bolso, 2013.

BARRETO, André Assi. Palestra: “Eric Voegelin e o cenário político atual”, 2017, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=VTuaoE4ol9M>.

                 . “Movimentos de massa e as religiões políticas”. In Filosofia Ciência & Vida, São Paulo: ed. Escala, v. 1, p. 54-63, 2015.

CUNHA, Martim Vasques da. Palestra: “Hitler e os Alemães, Eric Voegelin: um filósofo contra a tirania”, 2008, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=aJ8sXpZqtPs>.

FEDERICI, Michael P. Eric Voegelin – a Restauração da Ordem. São Paulo: É Realizações, 2011.

GRAY, John. Missa Negra. Rio de Janeiro: Record, 2009.

HENRIQUES, Mendo de Castro. Filosofia política em Eric Voegelin. São Paulo: É Realizações, 2009.

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As posições expressas em artigos por nossos colunistas, revelam, a priori, as suas próprias crenças e opiniões; e não necessariamente as opiniões e crenças do Burke Instituto Conservador. Para conhecer as nossas opiniões se atente aos editoriais e vídeos institucionais

André Assi Barreto

André Assi Barreto

Bacharel, licenciado e mestre em filosofia pela Universidade de São Paulo. Licenciado em História. Professor de Filosofia e História das redes pública e privada da cidade de São Paulo. Pesquisador da área de Filosofia (Filosofia Moderna - Dercartes, Hume e Kant - e Filosofia Contemporânea - Eric Voegelin e Hannah Arendt) e aluno do professor Olavo de Carvalho. Trabalha, ainda, com a revisão de textos, assessoria editorial, tradução e palestras. Coautor de “Saul Alinsky e a anatomia do mal” (ed. Armada, 2018).

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