Não morra antes de assistir Chernobyl

“O meu diagnóstico… Você quer? Uma mistura de prisão e jardim de infância, isso é o socialismo que conhecemos. O socialismo soviético. O homem entregava ao Estado a alma, a consciência, o coração, e em troca recebia uma ração. Uns tinham mais sorte, recebiam uma ração maior, outros ganhavam uma ração menor. No final das contas dava no mesmo, todos davam em troca a sua alma” (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 195).

Era uma noite agradável na Ucrânia soviética. Não havia nuvens no céu de Pripyat, não havia transtorno no bairro padronizado e desenhado para os trabalhadores da usina nuclear de Chernobyl, havia tão somente o silêncio sonolento de uma madrugada amena. No entanto, por volta das 2 horas da manhã, um estrondo seguido de uma luz esverdeada apontada para o céu era visível saindo do teto da usina nuclear. Parecia que um fragmento de estrela tinha sido desenterrado do solo de Chernobyl; porém, não era uma estrela, era urânio se consumindo numa violência frenética e incontrolável. O telhado da usina foi lançado a centenas de metros, impulsionado por uma explosão no reator nuclear soviético “à prova de falhas”. “Impossível. Não há como um reator RBMK explodir”, diziam técnicos e políticos soviéticos.

Era para ser apenas um teste de segurança, tornou-se o maior desastre nuclear da humanidade. Testes são procedimentos normais para qualquer usina nuclear do mundo, mas não eram todas usinas do mundo que estava sob o jugo da burocracia imbecilizante, das mentiras sufocantes e do comunismo de sempre. Assim se iniciou a maior catástrofe nuclear da história moderna, e uma das melhores minisséries dos últimos tempos: Chernobyl.

Não é meu objetivo aqui dar spoilers, e acredito piamente que um reto juízo crítico pode ser dado por cada um de vocês, por seus próprios meios. Entretanto, para bem analisar a série do ponto de vista histórico-filosófico, devo adiantar que essa é uma história de guerra, não entre comunistas e capitalistas, americanos e soviéticos, direitistas e esquerdistas. Mas sim entre a verdade e a mentira, entre burocracias e factualidades, entre ideologia e realidade.

A HBO foi ousada, tocou numa ferida aberta do comunismo histórico, tocou no ego adormecido de muitos comunistas nostálgicos que, até hoje, cantam emocionados o hino da URSS e escondem uma admiração bandida por Josef Stálin. Por isso mesmo querem emudecer a minissérie ousada e, se possível for, prender os seus roteiristas e diretores, expurgar toda a corja reacionária que tenta incriminar “o sacrossanto partido comunista, por um erro claramente americano”.

Gostaria de destacar Jared Harris, ator que interpreta o físico nuclear Valery Legasov; Stellan Skarsgård, vivendo o burocrata comunista Boris Shcherbina; e Emily Watson, interpretando a física Ulana Khomyuk. Eles montam a tríade da trama, atuaram de maneira digna e profunda; Jared, aliás, merecia facilmente uma sondagem no Oscar. O roteiro se assemelha muito ao livro: Vozes De Tchernóbil – A História Oral Do Desastre Nuclear, de Svetlana Alexijevich. Mas se são apenas semelhanças ou uma inspiração real, somente o roteirista Craig Mazin poderá afirmar. Usarei citações dessa obra pela extensão desse texto, para ornamentá-lo, mas também com o intuito inspirá-los. Trata-se de uma das obras mais emocionantes que li em minha vida.

Talvez não seja o caso de denominarmos os três personagens acima como sendo os “protagonistas” da trama, no sentido mais clássico do termo; o protagonista real é tão somente a usina. Tudo gira em torno dela, através dela e por ela, os demais são apenas os causadores, vitimados ou controladores do pandemônio.

Muitíssimos comunistas ― mais do que possamos imaginar ―, querem esquecer a história de Chernobyl, pois ela revela de maneira crua e abissal o grau de periculosidade que há na centralização política, na mentalidade ideológica e na subserviência a uma ideologia que se preocupa mais com os protocolos políticos do que com as vidas de seus cidadãos. No entanto, não é nada fácil enterrar urânio e corpos vitimados pela incompetência estatal. Como esconder corpos radiativos e uma usina nuclear que se consumirá sem cessar pelos próximos 50 mil anos?

Muito mais que um mero acaso, a explosão da usina foi um amontoado composto por burocracia, incompetência, medo e mentiras. Quando tais ingredientes são jogados dentro de uma panela movida por urânio incandescente, nesse instante a catástrofe se torna questão de tempo. “Por acaso há algo mais pavoroso que o homem?” (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 93)..

Muito mais que contar a história de Chernobyl, a série tem a intenção de desabafar, falar livremente sobre o que foi socado nas gargantas de muitos indivíduos durante muito tempo: a tarja do silêncio. Mas desabafo, não entendam mal, não é sinônimo de incompetência ou paixão de narrativa, se trata simplesmente de contar o que ninguém nunca contou.

A burocracia do Estado em seus protocolos; a incompetência de seus gerentes, funcionários e líderes em resolver efetivamente o caos instaurado (tudo é político sob um regime comunista, mas Chernobyl não precisava de políticos); o medo de não cumprir a ordem do partido, do chefe do partido, dos protocolos pré-determinados do partido; e, por fim, a mentira para encobrir todo o lamaçal de dejetos que decaem dessa composição; tudo isso foi o que desembocou no céu aberto para os átomos descontrolados de urânio.

“Tivemos os comunistas no lugar de Deus, mas agora só restou Deus” (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 79).

Iodo neutro e chumbo apenas atrasam suas ações, que podem ir de cânceres a defeitos congênitos graves. Poucos dias após a explosão, as partículas radiativas já estavam sobre a Suécia, em duas semanas estavam sobre os Estados Unidos. Imparável, mordaz, um assassino lento e doloroso.

A HBO acrescentou cor, vozes e ação a uma das catástrofes mais dantescas dos últimos tempos; catástrofe essa que, apesar de seu alcance e gravidade, ainda se mantém na penumbra para muitas pessoas.

“O passado de súbito surgiu impotente, não havia nada nele em que pudéssemos nos apoiar; e no arquivo onipotente (assim acreditávamos) da humanidade, não se encontrou a chave que abria” (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 41).

Chernobyl é uma catástrofe planetária ocorrida entre 25 e 26 de abril de 1986 (e você, provavelmente, não sabia disso). Daqui a 50 mil anos o seu mausoléu de partículas radioativas ainda continuará furando os bloqueios de armação de concreto de 2 metros, assim como a improvisada gaiola de chumbo que malemá cerca a boca do inferno. A pira incandescente de átomos incontroláveis continuará destruindo e contaminando todos que se arrisquem a visitá-la, ou apenas olhá-la de longe, bem de longe…

Poucos, naquele tempo, tiveram a ousadia de falar abertamente o que acontecera, quantas vidas foram levadas no desespero incompetente da URSS em tapar a burrada mortal que causou.

“Não se encontravam palavras para novos sentimentos, e não se encontravam sentimentos para novas palavras” (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 42).

Bombeiros, enfermeiras, médicos, civis, milhares de pessoas mortas ― estima-se que o número de mortos diretamente está entre 20 mil a 90 mil mortos ―; mais 300 mil pessoas tiradas de seus lares à força, por determinação estatal. Tentaram… tentaram esconder tudo isso; o comunismo fez um esforço um tanto quanto comovente para encobrir rastros, apagar a história. Mas a verdade não pede permissão a ninguém para existir, ela se impõe; cedo ou tarde a verdade se impõe.

Em um dos monólogos mais marcantes da minissérie, o mais real e catalizador da história de Chernobyl, foi proferido por Jared Harris interpretando Valery Legasov, ele diz:

“Ser cientista é ser ingênuo, nos concentramos tanto pela busca da verdade, que não nos consideramos que poucos querem que a encontremos. Mas ela está sempre lá. Quer vejamos, ou não, escolhamos ou não. A verdade não se importa com as nossas necessidades, não se importa com os nossos governos, ideologias e religiões. Ela ficará esperando o tempo que for. E isto, por fim, é a dádiva de Chernobyl”.

Por fim, não macularei esse monólogo com meus impropérios pseudofilosóficos, apenas não morra sem assistir Chernobyl.

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