Os problemas com o livro “O que é ideologia” de Marilena Chaui

Com o livro “O que é ideologia”, volume da famosa coleção “primeiros passos” da editora Brasiliense, a professora uspiana Marilena Chaui pretende trazer luz sob o vocábulo “ideologia” (CHAUI, 2008, p. 7). O conceito, segundo a professora, por exemplo, não deve ser tomado no sentido de mero “ideário”. Logo na sequência, com intuito de estabelecer qual é o efetivo sentido de ideologia, Chaui mune-se de dois exemplos: a ciência e a metafísica antiga e moderna, por meio de seus idealizadores, a saber, Aristóteles e Descartes.

Toma-se a teoria das quatro causas aristotélica e a dualidade corpo-alma cartesiana como exemplos que mostram que ideologia não é um ideário qualquer, mas um ideário histórico, social e política que visa, conscientemente ou não, ocultar a realidade (ficando evidente desde aí que a autora concebe como o único sentido possível de ideologia aquele dado por Karl Marx). A teoria das quatro causas aristotélica, explica a professora, não é resultado de investigação neutra e desinteressada, uma pura atividade científica que visa estabelecer como as coisas que existem se comportam (i.e., uma Física) tampouco revelar a natureza dessas coisas (i.e., uma Metafísica), mas sim, fomento para a ordem político-social grega (e, posteriormente, medieval) estabelecida à época de Aristóteles: o escravagismo (e o servilismo medieval). Os senhores identificam-se com as causas finais, a mais importante, ao passo que os escravos e servos com as causas motriz e eficiente, assegurando no terreno teórico a superioridade de uns sobre os outros. O mesmo modus operandi seria válido para a famosa dualidade alma-corpo posta por Descartes, resultante de sua física e metafísica. Na modernidade, onde o trabalho torna-se um valor e o conhecimento está indissociado do poder (Francis Bacon: “Saber é poder”), os corpos são identificados com o trabalho e as almas com os que pensam e mandam, sendo que na teoria cartesiana, a alma é relatada como superior ao corpo. Para a crítica que é feita na segunda parte do texto é importante ressaltar que a autora expressa claramente que o filósofo francês faz isso de forma inconsciente, ele imagina que, honestamente, está fazendo uma descrição da realidade (CHAUI, 2008, p. 13).

A autora prossegue fazendo um pequeno histórico do termo e alerta que o sentido que ela pretende esclarecer é o mesmo adotado por Napoleão Bonaparte e, por sua vez, por Karl Marx: ideologia é uma inversão entre as ideias e o real (CHAUI, 2008, p. 30). Também é ressaltado que a doutrina fundada por Auguste Comte, o positivismo, é uma forma de ideologia; ao conceber o conhecimento científico como conhecimento per excellence e, consequentemente, atribuir ao cientista o status de guru social, aquele que domina o único saber possível e que de fato existe e é o que deterá mais poder e responderá todas as perguntas. Chaui parece se esquecer que Marx fora, ele próprio, um positivista, pois acreditava que seu “materialismo dialético” fosse científico e capaz de explicar todas as questões sociais.

Num terceiro momento do livro, Chaui aponta para a importância de fazer uma exposição resumida da filosofia de Hegel, da qual muito dos ditos “ideólogos” alemães estão imersos (Feuerbach, F. Strauss, Stirner, Bauer etc.) e da qual o próprio Marx faz proveito, transferindo-a de seu plano excessivamente ideal para aquele que verdadeiramente lhe interessa, o material. E, finalmente, no capítulo IV, o antídoto que salvará toda a humanidade, de Tales a Descartes, do universo da ideologia é apresentado: a concepção de ideologia do economista alemão Karl Marx. Nos furtaremos aqui de fazer uma maior exposição do conceito, dir-se-á apenas que a inversão de ideias operada pela ideologia tem por objetivo salvaguardar o status quo da ordem vigente (a ordem burguesa): o poder dos capitalistas burgueses, estabelecido por meio da divisão de classes e da luta de classes. De que maneira isso é feito? Por meio da alienação, da reificação e do fetichismo. O proletário pensa que a situação que ele se encontra está de acordo com a ordem natural das coisas e não que é resultado da ordem estabelecida, é alienado; o proletário resume-se a sua força de trabalho e a quanto ganha (seu salário), é reificado; os produtos que são resultado do trabalho empregado pelo proletário passam a ter relações sociais como se fossem pessoas, constituindo o fetichismo.

Restaria então, aguardar que os doutores marxistas distribuam universalmente sua teoria (o materialismo histórico e dialético), como antídoto universal anti-ideológico e então, quando todos tomarem consciência que a condição em que se encontram é resultado de uma inversão da realidade operada pela ideologia da classe dominante, resulte com que a massa proletária ponha fim na luta de classes por meio da revolução.

Pensemos um pouco nas consequências da exposição do conceito de ideologia, pela ótica marxista, tal como exposto por Marilena Chaui. Há, no mundo, ao que parece, desde muito tempo, um mascaramento ideológico da realidade, operado inconscientemente pelos pensadores (ao menos até o advento do marxismo): filósofos, artistas, arquitetos etc. Quando Aristóteles ordena as exposições que futuramente constituiriam sua Metafísica, não expõe a natureza da realidade, mas engana a si e aos outros fornecendo, em realidade, fundamento para o poder vigente. Quando Michelangelo esculpe o Êxtase de Santa Tereza, não descreve a experiência mística (supostamente) vivida pela mulher, mas fomenta a ordem atual. Quando um arquiteto esboça a planta de uma construção importante para uma nação, em verdade, não o faz de fato, apenas serve de combustível para que o estado atual das coisas se mantenha. Não é preciso ir muito mais a fundo para notar o grau até mesmo conspiratório da tese exposta: na verdade, não fazemos o que fazemos.

Tendo em vista que nem todos os corações foram tocados pelo marxismo, não fazemos arte, filosofia ou ciência, somos inconscientemente levados a subscrever o poder atuante. A coisa não para por aí, ao pensarmos na Escola de Frankfurt, onde une-se a cosmovisão marxista à psicanálise freudiana (noções de ego, superego e libido), a única conclusão palatável é de que não passamos de bonecos de ventríloquo seguindo indiscriminadamente a marcha da ideologia da classe dominante. Concepção de realidade, como nota-se, extremamente reducionista, onde tudo se resume a reflexo ideológico inconsciente da sociedade em questão (aristocrata no caso de Aristóteles, burguesa em nosso caso e no caso de Descartes, o salto mágico é ainda maior, Descartes era um “senhor feudal”, mas sua filosofia visava fomentar uma ideologia, da classe capitalista industrial, que só surgiria dois séculos depois!).

Ressalta-se ainda, de maneira breve, outros dois pontos: a confusão feita pela professora Marinela Chaui quando tenta dizer que uma montanha não é uma coisa e o comum uso de elipses no discurso que permeia todo seu breve texto.

Diz a professora: “O real não é constituído por coisas. Nossa experiência direta e imediata nos leva a imaginar que o real é constituído por coisas (sejam elas naturais ou humanas), isto é, de objetos físicos, psíquicos, culturais oferecidos à nossa percepção e às nossas vivências” (CHAUI, 2008, p. 20) e segue afirmando que uma montanha perde seu caráter de coisa, dependendo da relação social estabelecida: pode deixar de ser coisa para ser morada dos deuses (para uma tribo politeísta), uma propriedade privada (o capitalista que decide explorar os minérios da montanha) ou um campo de visibilidade (para um pintor) [Cf. CHAUI, 2008, p. 20 e 21]. A tese toda parece nada mais que um navio quebra-gelo para um perspectivismo e um relativismo radical.

Aparentemente, devemos seguir os passos de Marilena e superar a ilusão comum de considerar que conhecemos “coisas”. Ao que parece, Marilena confunde, conscientemente ou não, que a montanha não perde a condição de coisa (montanha) apenas por adquirir a função de morada dos deuses; estabelece-se uma mudança da condição de quem observa, mas não da natureza mesma da montanha. Como poderiam os deuses habitar uma não-coisa? A “montanhidade” da montanha não é suprimida por uma mudança de ponto de vista, aliás, como seres divinos habitariam um ponto de vista? A coisa é extrapolada no que diz respeito ao capitalista, a montanha deixa de ser coisa para ser uma própria “relação econômica”, não como objeto de uma relação econômica, como se não fosse preciso haver uma coisa para que uma relação econômica se estabelecesse, como extrair minério de uma relação econômica? A crítica pode ser estendida para o que é dito sobre o quadro, não se trata da observação de uma coisa abrangida por um campo de visibilidade, mas sim do retrato do próprio campo de invisibilidade (sem nada contido nele?)!

Ou seja, subjacente às confusões, existem premissas ocultas ao longo do texto – figura de linguagem denominada elipse. Se Chaui usou e abusou da técnica intencionalmente ou não, não se investiga aqui.

last but not least, levantaremos uma objeção ao conceito próprio de ideologia tal como compreendido por Marx e defendido como a cura para todos os males por Marilena em seu livro. Ou a ideologia representa os interesses da classe a que seus porta-vozes pertencem (a ideologia burguesa favorece os burgueses, a ideologia aristocrata, os aristocratas) ou cada um é livre para proclamar ideologias agradáveis a outras classes que não a sua. Sob a ótica da primeira afirmação, jamais as ideias revolucionárias sairiam da cabeça de um burguês como Karl Marx (ou então, Descartes jamais fomentaria a ideologia dum sistema e duma classe que sequer existia quando redigia sua metafísica), já sob a ótica da segunda afirmação o elo entre ideologia e condição social do sujeito esvanece, havendo portanto apenas a ideologia pessoal que o sujeito atribui à classe que mais lhe apraz e, na sequência, ao inverter-se essa fantasia, surge como que por mágica a dita ideologia da classe adversária.

 

Referências bibliográficas:

CARVALHO, Olavo de. “A.A.V.R.” Disponível em: http://www.olavodecarvalho.org/semana/060319zh.htm . Acesso em: 12 set. 2011.

CARVALHO, Olavo de. “Lógica da Mistificação, ou: o chicote da tiazinha”. Disponível em: http://www.olavodecarvalho.org/textos/tiazinha.htm. Acesso em: 12 set. 2011.

CHAUI, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2008.

 

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André Assi Barreto

André Assi Barreto

Bacharel, licenciado e mestre em filosofia pela Universidade de São Paulo. Licenciado em História. Professor de Filosofia e História das redes pública e privada da cidade de São Paulo. Pesquisador da área de Filosofia (Filosofia Moderna - Dercartes, Hume e Kant - e Filosofia Contemporânea - Eric Voegelin e Hannah Arendt) e aluno do professor Olavo de Carvalho. Trabalha, ainda, com a revisão de textos, assessoria editorial, tradução e palestras. Coautor de “Saul Alinsky e a anatomia do mal” (ed. Armada, 2018).

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