Não se tentará aqui fazer um apanhado geral do conceito de dialética, que teve diversas definições e usos ao longo da história da Filosofia (os interessados nisso podem encontrar esse conteúdo na introdução feita pelo prof. Olavo de Carvalho ao livro Como vencer um debate sem ter razão em 38 estratagemas de Arthur Schopenhauer, ed. Topbooks, 2003). Interessa aqui uma das definições clássicas de dialética e a definição adotada pela esquerda, atrelada à herança hegeliana e marxista.
Por longa data entendeu-se a dialética como um método de depuração do discurso, cujo emprego tem o objetivo de atingir (ou se aproximar) a verdade. Exemplo: dois intelectuais são proponentes de teses opostas e entram em confronto (com o pressuposto da honestidade intelectual, isto é, reconhecerão os equívocos em que incorrem caso estes sejam demonstrados). Do resultado disso, tem-se: uma das teses solapadas e a outra mostrada como verdade, havendo ganho de conhecimento ou, o embate não chega a uma conclusão, mas se encontra num estado acima do inicial, sendo alguns aspectos minoritários e equivocados abandonados, havendo também, portanto, algum ganho de conhecimento. Em linhas bem diminutas, era isso o que entendiam por dialética Aristóteles e São Tomás de Aquino.
Com Hegel, a dialética transmuta-se em outra coisa: não é mais método de depuração do discurso, mas descrição do próprio transcorrer da realidade e da História. A realidade é dialética e, quando temos uma tese e uma antítese, não se trata mais de confrontar as duas com fins de eliminar uma delas, mas desse confronto as duas se fundem, formando uma nova tese, é assim que a História progride para Hegel. Nisso culmina o “materialismo histórico-dialético” de Marx e é desse repertório que Engels dirá que a própria natureza é dialética (a atomística se explica dialeticamente para o comparsa de Marx). Não se trata mais de jogar a “antítese” fora, mas acoplá-la ao discurso, caso não se possa (ou se deseje) jogá-la fora.
É o velório intelectual da contradição. Uma contradição deixa de ser sinal de falha de raciocínio e motivo para abandono de alguma tese, mas um convite a uma nova digestão do que estiver em jogo e até mesmo um combustível para que a tese em questão seja defendida mais ardorosamente. Essa é, em linhas gerais, a explicação para comunistas e outros companheiros de viagem jamais se convencerem ou admitirem qualquer fracasso do comunismo/socialismo. Todos os experimentos históricos são apenas antíteses momentâneas, praticamente prontas a serem absorvidas e convidativas a um grande salto para frente, ainda mais convicto que o anterior. Nisso também mora a complexidade de um “debate” entre comunistas e não-comunistas. Contradições tendem a ser vistas muito mais como lenha na fogueira que como razoáveis motivos para abandono da revolução. Daí que qualquer pretenso “debatedor” contra comunistas precise estar ciente que mais que apenas refutados, estes precisam ser desmascarados. A “mera” refutação pode e deve servir como pretexto para ainda maior convicção de sua fé política.
Um exemplo prático e histórico disso foi oferecido por Arthur Koestler em seu sugestivo O Deus que Falhou. Cada contradição nos discursos ou entre discurso e ações (o “combate ao fascismo” e o Pacto Ribbentrop-Molotov, por exemplo) não era motivo para abandono do ideal comunista, mas para algum movimento a noventa ou cento e oitenta graus e defesa ainda mais fervorosa hoje do que supostamente se criticava ontem. Como sintetiza brilhantemente Flavio Gordon em seu A Corrupção da Inteligência: Uma vez dentro do KPD, e em contato com os setores de inteligência, Koestler foi iniciado nas técnicas de autoengano e na novilíngua tipicamente comunistas, logo adquirindo uma sólida imunidade aos fatos que contradissessem o esquematismo mental formatado pelo partido. “Nossos cérebros eram condicionados a tomar qualquer absurda linha de ação ordenada desde cima por nossos desejos e convicções mais íntimos”, explica. De início, sempre que exposto a alguma realidade flagrantemente contrária à interpretação doutrinária, Koestler costumava questionar os seus gurus, que então o repreendiam didaticamente: “Você ainda é refém de uma perspectiva mecanicista” — diziam —, “precisa aprender a interpretar a realidade de modo dialético” (p. 200).
A “perspectiva mecanicista” que aí se fala é a dialética em sentido clássico, onde a contradição era vista como um problema e sinal de revisão ou abandono da tese em disputa. Esse fenômeno “dialético” também não escapou ao romancista George Orwell em seu 1984, é disso que ele trata ao descrever o flip-flop entre “a verdade de hoje é a mentira de amanhã e vice-versa” no caso dos adversários de guerra da Oceania, por exemplo. No comunismo não se abandona a mentira, você a espreme até que ela se torne uma “verdade” conveniente aos interesses do Partidão.