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Eric Voegelin: filósofo da realidade

Eric Voegelin nasceu em Colônia, na Alemanha, no ano de 1901 e morreu em 1985 em Stanford, Califórnia (EUA). Voegelin não apenas morreu em território americano, mas também como americano, tendo se naturalizado na pátria que o recebeu em fuga dos nazistas na Europa, como tantos outros europeus. Embora não fosse judeu, a obra de Voegelin certamente era hostil ao ideário nazista, visto que se debruçou sobre o mito da raça e a natureza dos governos ditatoriais. Seu horizonte de consciência, já para usar um de seus conceitos, era amplo; amplo a ponto de espantar os próprios soldados nazistas que visitaram seu quarto pouco tempo antes de conseguir escapar das guardas nazistas. Para tratar da relação entre nazismo e o conceito de “raça”, estudou toda a biologia de sua época. Estudou também física e matemática. Para tratar dos temas políticos que investigou, pesquisou até hieróglifos egípcios em seus mínimos detalhes. Esteve no polo intelectual europeu de sua época, a Viena do início do século XX, cultivando relação pessoal com Hans Kelsen (1881-1973) e Ludwig von Mises (1881-1973), por exemplo. Além de ter trocado correspondências com Leo Strauss (1889-1973) e farpas com Karl Popper (1902-1994).

Voegelin deixou a Europa em 1938, logo após a anexação por parte da Alemanha nazista da Áustria (o Anschluss), que também foi sua pátria provisória. Aí já era um filósofo com obras publicadas (p.ex. Raça e Estado de 1933) e, antes disso, havia tido uma sólida educação em latim, grego, inglês e francês e adentrado à Faculdade de Direito da Universidade de Viena em 1919, migrando posteriormente para a Ciência Política. Regressou à Europa em 1958 para lecionar na Universidade de Munique, onde fundou o Instituto de Ciências Políticas. Um aprofundamento biográfico pode ser conferido na palestra de Martim Vasques da Cunha “Hitler e os Alemães, Eric Voegelin: um filósofo contra a tirania”, disponível no Youtube.

Tratar da biografia de Voegelin não é mera informação, coincidência ou princípio de artigo, mas já é revelar traços de sua filosofia, visto que o filósofo não separava a realidade circundante da consciência individual (e, portanto, biográfica) que a conhece, elabora e reconhece símbolos para interpretá-la. Não à toa é tido também como “filósofo da consciência”. Daí que fique oficialmente sugerido a todo aquele que tiver o interesse pelo seu pensamento despertado que busque suas Reflexões Autobiográficas (ed. É Realizações, 2008) como primeiro objeto de leitura.

Parte do desconhecimento geral de um filósofo tão grandioso e importante pode ser explicada pelo fato de sua poderosa crítica não se aplicar somente ao nazismo e a Hitler, mas igualmente ao comunismo e ao ideário marxista. Ambas ideologias são postas lado a lado por Voegelin, não porque sejam idênticas em seu conteúdo (ou seja, sem cair na esparrela recente e constante das redes sociais de discutir se o nazismo era “de esquerda” ou “de direita”), mas certamente porque o são em sua forma: as duas são descritas por Voegelin como religiões políticas (outro conceito particularmente importante de seu pensamento), como gnósticas e filhas legítimas da modernidade, por se verem capacitadas a instalar algum tipo de paraíso terreno. Voegelin classificou Marx em Science, Politics and Gnosticism (1968) como “impostor intelectual”.

A realidade como critério último:

Em tempos de pós-modernismo ultra-relativista, estruturalismo, pós-estruturalismo, pragmatismo e até niilismo certamente soa démodé falar em “realidade”, mas Eric Voegelin foi um defensor dela como o verdadeiro critério filosófico. Não posso me furtar a mencionar um pequeno caso ocorrido em aula, quando estava a ensinar o passo a passo da epistemologia platônica, cuja etapa última almejada pelo homem é a episteme (a ciência) e um aluno, acostumado a associar “ciência” apenas com “ciências exatas”, me perguntou se era possível que a política atingisse esse estatuto de ciência segura da episteme.

Embora não tenha mencionado Voegelin na resposta (ative-me a usar o próprio Platão para responder), certamente isso seria possível. Visto que Voegelin propôs, justamente, uma nova ciência da política (nome de sua obra de 1952), calcando-se exatamente em Platão e Aristóteles, que compartilhavam da ideia de ser possível sim estabelecer uma ciência política, fato que não deveria escapar a qualquer estudante de Filosofia Política ou de Ciência Política. A realidade dessa possibilidade deveria, aliás, ser critério suficiente para convencer estudantes e intelectuais que é possível sim haver uma episteme política livre do relativismo radical das academias e não menos livre da balbúrdia que predomina no debate público sobre política, amplamente alimentado pelo anarquismo das redes sociais.

Sigo o prof. Mendo de Castro Henriques (1953) ao mencionar a obra O menino e o pião (1735) de Jean-Baptiste-Siméon Chardin (1699-1779) para ilustrar essa supremacia do real defendida por Voegelin:

O girar do pião supera o interesse do menino pelos livros, papeis e pena. Pode parecer um mero truísmo falar que a realidade deve vir primeiro em qualquer análise que se pretenda séria, mas é impossível não se remeter à afirmação do ensaísta inglês G. K. Chesterton (1874-1936) quando vaticinou que chegaria uma época em que seria necessário provar que a grama é verde. As teorias mirabolantes prevalentes na atualidade parecem vingar a profecia de Chesterton.

Trazendo esse ponto para o debate político, em princípio poderia parecer que a preferência pelo real é um ponto de encontro entre Marx e Voegelin. Afinal, o compatriota de Voegelin não bradou contra as excessivas interpretações do mundo feitas pela filosofia e contra o “idealismo burguês”? Bem, ou a recomendação não era séria ou a tradição marxista, após mais de um século de experimentos históricos reais, abandonou o mestre, pois a realidade dos experimentos comunistas costuma ser descartada pelos adeptos como “deturpação” do ideal comunista verdadeiro e genuíno, ainda não atingido fora do campo ideal, ou seja, “na prática” Voegelin e voegelinianos diriam que a realidade, além das objeções no campo da teoria, é (ou deveria ser) implacável.

 

O problema do gnosticismo:

Voegelin diagnosticou em A Nova Ciência da Política que a modernidade traz em seu bojo o problema do gnosticismo. O gnosticismo é, originalmente, uma doutrina cristã herética, combatida desde seu surgimento pela Igreja Católica. Em resumo, gnósticos clamam, como o próprio nome diz, possuir conhecimento. Mas não qualquer conhecimento, mas gnose (diferente de episteme e phronesis, portanto). Um tipo especial e diferente de conhecimento, associado a revelação especial e a intuição individual, portanto e, ainda, por consequência, restrito a alguns poucos.

No campo histórico-político, o gnosticismo se revela com sua crença na imperfeição do mundo, mas que a correção dessa imperfeição é possível e realizável dentro da própria História, a partir, justamente, do conhecimento revelado a alguns pares de pessoas. Ou seja, como afirma Nelson Lehmann da Silva (primeiro brasileiro a estudar Voegelin em nível acadêmico até onde me consta), o gnosticismo se caracteriza pela secularização ou imanentização do transcendental ou da revelação. Disso se pode ver porque o gnosticismo é herético, primeiro porque a religião de Paulo não dispõe de um esoterismo (como o islã e o sufismo ou o judaísmo e a cabala) que permita a revelação especial a um grupo de pessoas, depois porque a “imanentização” do transcendental significa trazer o Paraíso pós-morte para a Terra e para a História. Em vocabulário agostiniano, significa trazer a Cidade de Deus para dentro da Cidade dos Homens.

Restou ao gnosticismo, portanto, estender suas asas no campo social, dando origem ao que o jovem Voegelin chamou de “religião política”. O cientista político brasileiro José Oswaldo de Meira Penna (1917-2017) explicou em poucas linhas a questão em seu livro A Ideologia do século XX:

“Segundo foi reconhecido pelo filósofo germano-americano Eric Voegelin, a ordem espiritual ou ordem da revelação judaico-cristã consubstancianda na dicotomia agostiniana da Cidade de Deus, eterna, e da cidade terrena, sede do poder temporal pragmático, dicotomia dominante em nossa cultura por quinze séculos, passou a ser contestada a partir do Renascimento e do Iluminismo. No dualismo gnóstico, conforme assinala Voegelin, o mal não pode ser atribuído à vontade pecaminosa do indivíduo, porém é resultado inevitável da existência no mundo material. Dessa condição terrível, só uma pequena elite de indivíduos que conhecem (gnose) a realidade subjacente (no caso, os intelectuais marxistas e políticos radicais) é capaz de escapar do determinismo da vida material e forjar a utopia em que serão realizadas todas as aspirações humanas e todos os desejos satisfeitos na justiça e no bem-estar”.

 

As religiões políticas:

Outro conceito importantíssimo legado por Voegelin é o de “religião política”. O gnóstico, convencido de que porta o conhecimento necessário para trazer o paraíso para a terra, funda algo com a estrutura de uma religião (particularmente o cristianismo; a controvérsia sobre o termo será tratada a seguir) que concentrará o passo a passo necessário para trazer essa realidade paradisíaca para a História. Note-se que o termo passa longe de ser uma mera alusão a “fanatismo” político (embora guarde alguma relação com essa noção também). O primeiro empreendimento voegeliniano para estudar o tema foi seu As Religiões Políticas (2002), aprofundado e melhorado em A Nova Ciência da Política (1982).

As principais ideologias políticas do século XX – nazismo e comunismo (expresso na forma de stalinismo) – podem ser considerados o melhor exemplo de religião política, sendo assim tratadas pelo próprio Voegelin, apesar de, como mencionamos, o fenômeno ter sido gestado ao longo de toda a modernidade, desde o seu princípio. Para os interessados nesse aspecto em particular, podem ir direto aos primeiros capítulos do já citado A Nova Ciência da Política.

Parece que, quando bem compreendido, o que Voegelin quer dizer seja claro e distinto. Nazismo e comunismo (não se trata de afirmar que são exemplos exclusivos, mas apenas mais completos) basearam largamente em: culto à personalidade (Hitler, Stalin, Kim Jong-il etc.), infalibilidade do líder (idem), hinos, salvação, perdição, expurgo de pecados, condenação de pecadores, perseguição ao “mal” (seja o judeu, seja o burguês), redenção, paraíso e, destaca-se, escatologia. Tudo isso foi observado diretamente pelo estudioso polonês Leszek Kolakowski (1927-2009) no partido comunista de seu país. E levou Raymond Aron (1905-1983) a retomar o termo “religião civil” (presente nos textos de Hobbes e Rousseau) para descrever nazismo e comunismo.

Escatologia, dissemos, porque o que religiosos políticos fazem é imanentizar o que os gregos chamavam de escathon. O fim de todas as coisas (escathon, que é diferente de télos) deixa de ser reino acessível apenas à alma no pós-morte, mas é imanentizado na História pela teologia política das ideologias modernas. Ninguém pode ficar surpreso ao compreender isso e lembrar da sanguinolência do século XX. Se o sujeito se vê imbuído da crença que tem o conhecimento necessário para realizar o fim da História, não é surpresa que saia matando todos que ousarem se pôr no caminho. A mudança revolucionária na ordem implica que seus perpetradores estejam totalmente imersos numa espécie de autoridade religiosa do mal, onde os fins justificam os meios. Vale lembrar que Trotsky acreditava que quando o comunismo finalmente vingasse, a História se encerraria, o Estado sucumbiria e cada homem, florescendo de forma radicalmente livre, teria a capacidade intelectual equivalente a Goethe ou Aristóteles. Quem em sã consciência enfrentaria um homem absolutamente crente de que está envolvido no processo para tornar essa realidade possível? E quem, movido por essa crença, não estraçalharia reacionários que significassem a impossibilidade ou atraso na concretização dessa realidade? Eis a essência da ética de um “religioso político”.

 

Em defesa do termo “religião política”:

Poderíamos, de forma muito acadêmica, traçar uma distinção entre um Voegelin jovem e um Voegelin maduro (como se faz com Platão) ou falar em Primeiro Voegelin e Segundo Voegelin (como se faz com Wittgenstein), mas isso não é necessário. Em suas Reflexões Autobiográficas (2008, p. 86 e 87), publicadas postumamente, Voegelin afirma que o termo “religião política” tem seu uso dificultado porque é impreciso. Reunir as diversas manifestações religiosas existentes sob o termo “religião” já é demasiadamente complexo, visto suas diferenças, em alguns casos intransponíveis, imaginemos então estender a nomenclatura para ideologias políticas, por possuírem semelhanças com algumas religiões. O próprio Voegelin chega a essa conclusão e não propõe substituto. Seria um empecilho para o estudo do conceito?

Acreditamos que não e elencamos diversas razões para isso: num ordenamento factível das coisas, um termo aproximado é melhor que termo nenhum para descrever um dado fenômeno e o fenômeno em si deve ter prioridade ontológica sobre sua nomenclatura. Chegássemos a trocar “religião política” simplesmente por “X”, isso seria problemático, mas não suficiente para eliminar a existência do fenômeno descrito. Embora o termo possa ser considerado problemático, não quer dizer que seja absolutamente imperfeito, ao ler a completa descrição que Voegelin faz do fenômeno que deseja diagnosticar e, conforme mostramos, é perfeitamente verossímil chamar as “religiões políticas”, que copiam os esquemas estruturais particularmente dos monoteísmos, esvaziando-os de seu conteúdo metafísico, de “religião”, afinal é isso que são os monoteísmos, a despeito da variedade de outras religiões que existem. E, por fim, toda a bibliografia crítica posterior sobre o tema, consciente do problema, não abandonou o termo (provavelmente porque não encontrou substituto adequado), justificando seu uso, mesmo com as ressalvas que cabem aos acadêmicos e estudiosos.

 

Consideração final:

Que o debate político está carente de uma discussão mais científica e menos radicalizada, histérica, partidarizada e hostil me parece que é evidente a qualquer observador mais atento. Talvez seja momento de o ambiente intelectual brasileiro topar o desafio de se abrir a pensadores não-marxistas (e não necessariamente “anti-marxistas” ou “anti-esquerdistas”) e tirar proveito do que eles têm a dizer. Não pela minha predileção ou pelos já alguns anos de estudo da obra de Eric Voegelin que o recomendo vivamente, mas por sua proposta de realizar uma ciência política calcada na realidade e na acepção plena da palavra, algo urgente se honestamente concordarmos que vivemos na era da “pós-verdade”.

 

Referências bibliográficas:

BARRETO, André Assi. Palestra: “Eric Voegelin e o cenário político atual”, 2017, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VTuaoE4ol9M.

. “Movimentos de massa e as religiões políticas”. In Filosofia Ciência & Vida, São Paulo: ed. Escala, v. 1, p. 54-63, 2015.

CUNHA, Martim Vasques da. Palestra: “Hitler e os Alemães, Eric Voegelin: um filósofo contra a tirania”, 2008, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aJ8sXpZqtPs.

FEDERICI, Michael P. Eric Voegelin – a Restauração da Ordem. São Paulo: É Realizações, 2011.

GRAY, John. Missa Negra. Rio de Janeiro: Record, 2009.

HENRIQUES, Mendo de Castro. Filosofia política em Eric Voegelin. São Paulo: É Realizações, 2009.

KOLAKOWSKI, Leszek. Main Currents of Marxism. 3 volumes. Oxford: Clarendon Press, 1978.

PENNA, José Oswaldo de Meira. A ideologia do século XX. Campinas: Vide Editorial, 2017.

SILVA, Nelson Lehmann da. A religião civil do estado moderno. Brasília: Thesaurus, 1985.

STRAUSS, Leo; VOEGELIN, Eric. Fé e Filosofia Política – a correspondência entre Leo Strauss e Eric Voegelin (1934-1964). São Paulo: É Realizações, 2017.

VOEGELIN, Eric. As religiões políticas. Lisboa: Vega, 2002.

. A Nova Ciência da Política. Brasília: UnB, 1982.

. Reflexões Autobiográficas. São Paulo: É Realizações, 2008.

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As posições expressas em artigos por nossos colunistas, revelam, a priori, as suas próprias crenças e opiniões; e não necessariamente as opiniões e crenças do Burke Instituto Conservador. Para conhecer as nossas opiniões se atente aos editoriais e vídeos institucionais

André Assi Barreto

André Assi Barreto

Bacharel, licenciado e mestre em filosofia pela Universidade de São Paulo. Licenciado em História. Professor de Filosofia e História das redes pública e privada da cidade de São Paulo. Pesquisador da área de Filosofia (Filosofia Moderna - Dercartes, Hume e Kant - e Filosofia Contemporânea - Eric Voegelin e Hannah Arendt) e aluno do professor Olavo de Carvalho. Trabalha, ainda, com a revisão de textos, assessoria editorial, tradução e palestras. Coautor de “Saul Alinsky e a anatomia do mal” (ed. Armada, 2018).

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