Movimentos de massa e religiões políticas

Movimentos de massa e totalitarismos são fenômenos característicos do século XX. Autores como Ortega y Gasset, Hannah Arendt e Eric Voegelin se propuseram a explica-los a partir de uma comparação entre política e religião. Para o filósofo germano-americano Eric Voegelin a inspiração dos totalitarismos vem de seitas gnósticas.

“Só a política salva” e “Onde há conflito, é a política que o resolve” são afirmações feitas por alguns parlamentares brasileiros, mas poderiam muito bem ter sido proferidas por qualquer líder político totalitário do século XX, pois revelam uma crença profunda na política como fator determinante no curso das coisas, tornando aspectos como a cultura, por exemplo, meramente secundários. A comparação entre política e religião não é trivial. A relação é mais íntima e estudada do que usualmente se supõe. Diversos autores foram a fundo nessa relação para explicar a origem dos totalitarismos do século XX, mas também dos chamados “movimentos de massa” e revoltas populares que são praticamente rotina nas grandes metrópoles do mundo. O comportamento de turbas revolucionárias [1] pode ser estrutural e filosoficamente equiparado ao das mentalidades apocalípticas e utópicas tipicamente religiosas, como uma espécie de perversão malévola do cristianismo (embora a comparação possa ser tecida com a ideia de religião em geral, alguns autores focaram no cristianismo)? Sim, é o que vão constatar e afirmar alguns pensadores políticos, particularmente a partir da Revolução Francesa, onde os paralelos ficam nítidos aos olhos do observador atento. Dos diversos autores que se debruçaram sobre esse tema, nos serviremos das análises de Ortega y Gasset (1983-1955), Hannah Arendt (1906-1975) e particularmente Eric Voegelin (1901-1985); tanto o comportamento das massas quanto a equiparação de ideologias políticas a religiões é tema caro a esses pensadores pois anteviram (no caso de Gasset) ou viram (no caso de Arendt e Voegelin) o estrago causado pelos totalitarismos do século XX – nazismo e comunismo – responsáveis pela morte de milhões de pessoas.

 

O homem-massa

Ortega y Gasset diagnostica em A Rebelião das Massas (1926) que nossa época é a época do “homem-massa”. São características do homem-massa: servir-se dos benefícios da civilização, toma-los por direito e supor que não são resultado do esforço e criatividade de homens brilhantes, mas coisas que existiram sempre (o homem massa é “esvaziado de sua própria história”), age à revelia de qualquer esforço para mantê-los e também adere a um “politicismo”, nas palavras de Ortega y Gasset: “o politicismo integral, a absorção de todas as coisas e de todo o homem pelas política, identifica-se com o fenômeno da rebelião das massas (…). A massa em rebeldia perdeu toda a capacidade de religião e de conhecimento (…)” [ORTEGA Y GASSET, 1998, p.26]. Para o homem-massa tudo pode ser reduzido à política, isto é, resolvido e explicado por meio desta e de nenhum outro meio mais. Compreender isso é essencial para conseguir conceber o porquê de muitos preferirem depositar sua fé na salvação na política.

Ortega y Gasset prossegue sua caracterização do homem-massa ao longo da obra e é importante que seja ressaltado aqui que ele não se refere a classes sociais, mas sim ao “homem médio” (ORTEGA Y GASSET, 1998, p. 41), ao homem genérico que se colocado numa multidão em nada se diferencia dos demais porque não apresenta nenhuma característica individual que o faça se destacar, a despeito disso, para Ortega y Gasset, o homem-massa orgulha-se de sua posição e deseja impor sua “vulgaridade” a todos (Cf. Idem, p. 45); em vez de ter vontade de tornar-se indivíduo, o homem-massa quer massificar a todos.

A conexão entre o conceito de homem-massa de Ortega y Gasset e os movimentos de massa contemporâneos se dá, particularmente, na contradição entre suas pautas teóricas e suas ações. O problema assim é colocado: “maltrata e tritura as instituições onde aqueles direitos são sancionados” (ORTEGA Y GASSET, 1998, p. 48), ou seja, em primeiro lugar, militar pelas bandeiras que usualmente os movimentos de massa militam só é possível justa e exatamente nos ambientes por eles rejeitados e, depois, caso fossem atendidas por completo suas pautas, a própria possibilidade de livre protesto e manifestação seria solapada; Ortega y Gasset ilustra isso em frase de efeito: “Nos motins que a escassez provoca, as massas populares costumam procurar pão, e o meio que empregam costuma ser destruir as padarias” (Idem, p. 75). A relação entre causas e efeitos das bandeiras dos movimentos de massa é autofágica.

A caracterização do homem-massa, do señorito satisfecho de Ortega y Gasset, é útil para nossa análise do caráter religioso das ideologias políticas na medida em que as turbas revolucionárias que compõem os chamados “movimentos de massa” são essencialmente compostos pelas figuras descritas por Gasset. O filósofo define com precisão o conceito de revolução como “a vontade de transformar de súbito tudo e em todos os gêneros” (é ilustrativo disso a retórica que circundava as propagandas nazista e soviética em torno de um “novo homem” – a mudança proposta por ambas ideologias é de tal ordem radical que provocará a insurreição de uma nova espécie de homem) e esse grupo é desejoso de revolução porque é composto de “massas mimadas [que] são suficientemente pouco inteligentes para julgarem que essa organização material e social, posta como o ar à sua disposição, é da mesma origem que elas, já que também não falha, segundo parece, e é quase tão perfeita como a natural” (ORTEGA Y GASSET, 1998, p. 75).

Hannah Arendt sustenta posição muito parecida com a de Ortega y Gasset no que diz respeito às massas e sua tendência ao politicismo e crença no poder revolucionário que instaurará as melhorias que todo ser humano supostamente deseja. Em seu clássico sobre os totalitarismos – As Origens do Totalitarismo (1951), que poderíamos considerar como o estudo empreendido por Arendt a respeito das “religiões políticas” (ela não compartilhava da interpretação de Voegelin quanto à gênese dos totalitarismos, como veremos adiante), ela define a massa sedenta por mudança política radical da seguinte maneira:

“A atração que o mal e o crime exercem sobre a mentalidade da ralé não é novidade. Para a ralé, os ‘atos de violência podiam ser perversos, mas eram sinal de esperteza’. Mas o que é desconcertante no sucesso do totalitarismo é o verdadeiro altruísmo dos seus adeptos. É compreensível que as convicções de um nazista ou bolchevista não sejam abaladas por crimes cometidos contra inimigos do movimento; mas o fato espantoso é que ele não vacila quando o monstro começa a devorar seus próprios filhos, nem mesmo quando ele próprio se torna vítima da opressão, quando é incriminado e condenado, quando é expulso do partido e enviado para um campo de concentração ou de trabalhos forçados. (…)  Mas, dentro da estrutura organizacional do movimento enquanto ele permanece inteiro, os membros fanatizados são inatingíveis pela experiência e pelo argumento; a identificação com o movimento e o conformismo total parecem ter destruído a própria capacidade de sentir, mesmo que seja algo tão extremo como a tortura ou o medo da morte” (ARENDT, 2012, p. 435 e 436).

De início, Arendt chama a atenção para o fato que o que ela chama de “ralé” tende relativizar os males praticados pelos militantes, considerando-os como mostra de esperteza e isso é feito a despeito de suas, às vezes, sinceras e boas intenções, ou seja, o companheiro de viagem que aceita a depredação de bens públicos e privados ou a agressão de autoridades o faz crendo efetivamente que os fins justificam os meios: pequenos males menores estão justificados, visto que o resultado final supostamente será benéfico a todos – qualquer estudioso das revoluções, sendo talvez a Francesa a mais emblemática, sabe que o emprego do terror em nome do “bem” revolucionário não é algo de todo inédito, embora o século XX carregue todas as suas peculiaridades. Ainda, quando o movimento autofágico mostrado por Ortega y Gasset se inicia, segundo Arendt, a “ralé” prefere sacrificar os fatos no altar da ideologia que lhe dá substância para sua ação prática, segundo a filósofa os membros fanatizados se tornam blindados à evidência e à experiência. O moto de Arendt é analisar os movimentos de massa, que, segundo a autora, eram o foco dos totalitarismos: “Nem os julgamentos de Moscou nem a liquidação do grupo de Röhm teriam sido possíveis se essas massas não tivessem apoiado Stálin e Hitler” (ARENDT, 2012, p. 435).

Feito este pequeno apanhado da natureza e da estrutura das massas, o próximo passo é investigar não o como pensam e agem, mas sim o porquê de existirem, para assinalar com uma resposta nos serviremos de algumas obras do filósofo germano-americano Eric Voegelin. Enfatizamos que este é um dos temas mais espinhosos do século XX, e a própria análise do conceito de homem-massa pode desembocar numa miríade de outros problemas, ao qual o das religiões políticas é apenas um, que trataremos de maneira introdutória.

 

A política como religião

“‘Um novo céu e uma nova terra: pois o primeiro céu e a primeira terra se foram’”, lemos no Apocalipse. Eliminem o ‘céu’, mantendo apenas a ‘nova terra’, e terão o segredo e a receita de todos os sistemas utópicos” Emil Cioran em “História e Utopia”

A ideia de comparar política e religião não é inédita a Voegelin, embora este tenha investigado a fundo a gênese da relação, aprendendo até mesmo como ler hieróglifos egípcios para saber como a se dava a relação político-religiosa dos faraós com seu povo, conforme o próprio relata em Reflexões Autobiográficas (VOEGELIN, 2008, p. 117 e 126) e em As religiões políticas (VOEGELIN, 2002, p.23-42). Todavia, a imbricação entre política e religião já havia sido sagrada pela tradição literária, como, por exemplo, nesta citação de Os Irmãos Karamazov (1879), de Dostoiévski:

“[…] terias podido então tomar o gládio de César. Por que repeliste esse derradeiro dom? Seguindo esse terceiro conselho do poderoso espírito, realizarias tudo quanto os homens procuram na terra: um senhor diante de quem inclinar-se, um guarda de sua consciência e o meio de se unirem finalmente na concórdia em uma comunidade de formigueiro, porque a necessidade da união universal é o terceiro e derradeiro tormento da raça humana” (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 269).

Aqui, o literato russo explana sobre o político “ungido” que concretizará as esperanças do povo e fará este prostrar-se diante dele, assumindo a condição de “guarda da consciência” e promovendo o “sentimento oceânico” de “comunidade e união universal” que, para Freud, é característica marcante das religiões.

Max Scheler, em O eterno no Homem (1921) afirma que “O homem acredita quer num deus, quer num ídolo. Não há terceira opção”. O próprio positivismo comteano, tão influente (apenas) no Brasil, com suas paródias da fé católica (catecismo positivista, dias no calendário com homenagens de caráter hagiográfico a pensadores etc) é evidência nítida da afirmação de Scheler. Ao que tudo indica, o homem não dirige sua vida com ceticismo por muito tempo, a variação se dá apenas em termos de qual religião será praticada e quem será adorado, se uma religião tradicional e uma divindade transcendente ou uma ideologia política e seu líder ou o Estado.

Outro que observa a conversão da política em religião em seu apogeu é Alexis de Tocqueville, particularmente em sua obra O Antigo Regime e a Revolução (1856), onde o pensador analisa a Revolução Francesa e afirma que ela carrega elementos que nitidamente caracterizam uma revolução religiosa e não política: a noção de comunidade universal, pátria intelectual universal etc, mais uma vez o “sentimento oceânico” e a ideia de dissolução da individualidade concreta em prol da consciência coletiva abstrata.

Muitos outros documentaram a tendência de substituição da religião pela política – bem como a conversão de uma coisa na outra por vias revolucionárias – quando não em forma de paródia maliciosa do cristianismo (para Tocqueville e outros, no ambiente pós-revolucionário, os philosophes se convertem em “clérigos da razão”): Murray Rothbard, em “Karl Marx as religious eschatologist”, Daniel Chirot e Clark McCauley em Why not kill them all?, John Gray em “Missa Negra” e os clássicos Marxismo e Religião de Heraldo Barbuy e Main currents of marxism de Leszek Kolakowski. Gray, aliás, trabalha em seu livro com a tese de que a política moderna pode ser contada como um capítulo da história das religiões, o que implica no núcleo da nossa investigação, junto com Barbuy, ao passo que Chirot, McCauley e Kolakowski passam pela questão de maneira mais lateral em suas obras e Rothbard aborda o paralelo específico com o cristianismo.

 

Eric Voegelin e a questão gnóstica

“Qualquer plano de governo que pressuponha uma grande reforma nos hábitos da humanidade é com toda evidência imaginário” David Hume em “A ideia de uma nação perfeita”.

Para Eric Voegelin, a explicação para as religiões políticas – fenômeno essencialmente moderno cujo ápice se deu no século XX (seria inimaginável, até mesmo para um tirano medieval, a concentração de tanto poder quanto os líderes fascistas, nazistas e comunistas concentraram no século passado) – remonta aos chamados pensadores gnósticos[2]. Para Voegelin, os totalitarismos do século XX têm inspiração gnóstica. O filósofo afirma que, se a história moderna for contada como história gnóstica, ela tem início por volta do século IX, quando o gnosticismo ascendeu com força (Cf. VOEGELIN, 1982, p. 101).  A despeito da relativa variedade de concepções gnósticas, de seu caráter hermético e obtuso, podemos aqui, para fins didáticos, resumir a crença gnóstica em seus aspectos essenciais.

O gnosticismo representa uma dissidência da doutrina cristã original e sustenta que o homem se encontra perdido num universo que lhe é hostil. Embora o quadro universal seja hostil, os gnósticos (“aqueles que sabem”) clamam deter o conhecimento capaz de solucionar o quadro, conhecimento este que lhes fora revelado de forma especial, fazendo dos próprios uma elite auto-proclamada e iluminada, supostamente capaz de corrigir a situação.

A inferência óbvia a que chegamos é que, para os gnósticos, o paraíso não é um momento para fora da história humana, que transcende espaço e tempo, mas que pode ser concretizado nesta vida, em algum ponto da nossa História, desde que os homens certos conduzam os demais a isso. O caráter revolucionário do ponto de vista gnóstico é patente: o paraíso pode ser alcançado por mudanças radicais praticadas na ordem da nossa realidade. Em uma de suas obras clássicas, “Science, Politics and Gnosticism”, Voegelin elenca as seis características definidoras do gnosticismo:

  1. Está insatisfeito com sua situação atual.
  2. Os problemas do mundo se devem a sua organização ruim.
  3. A salvação desse mundo mal organizado é possível.
  4. De (3) segue que a ordem do ser terá de ser alterada num processo histórico. De um mundo malévolo um outro bom deve emergir.
  5. Uma mudança na ordem do ser é possível no reino da ação humana, este ato de salvação é possível por meio do esforço humano.
  6. O conhecimento (gnose) da alteração da ordem do ser é a preocupação central do gnóstico, ele é capaz de elaborar a fórmula capaz de salvar o homem e o mundo (Cf. HENNINGSEN, 1984, p. 297-8).

Do ponto 4 depreendemos que, entre a doutrina gnóstica e a doutrina cristã ortodoxa, há um conflito insolúvel: para um cristão ortodoxo de inspiração agostiniana a salvação vem apenas por meio da graça divina após a morte, este mundo é passageiro e a salvação fica estritamente reservada para um momento posterior a esta vida e mundo, ao passo que para o gnóstico a salvação é terrena.

Essa longa marcha gnóstica converteu-se, deslocada do terreno religioso e supersticioso para o terreno da política, nos totalitarismos sanguinários do século XX. Bolcheviques e nazistas estavam extremamente insatisfeitos com sua situação (lembramos aqui que o próprio Voegelin afirma que essa característica não é exclusiva de gnósticos – para compreender o movimento é preciso levar as 6 características em consideração), o mundo era ruim porque estava mal organizado (com as raças erradas no comando, com as classes erradas no comando etc.), a salvação desse mundo é possível por meio do implante do nacional-socialismo, que povoará o mundo com uma raça pura e superior ou por meio do internacional-socialismo ou do comunismo, que promoverá uma sociedade desprovida de classes, cabendo aos líderes humanos dessas ideologias promover, dentro da História, as revoluções necessárias para a instauração da ordem adequada para a vivência do homem no mundo.

Os gnósticos, portanto, criam numa mudança radical na ordem da realidade, promovida por mãos humanas e que levaria o mundo a uma condição paradisíaca. Quando essa fé transita de eixo e afeta a política, surgem ideologias, pensadores e massas que promovem revoluções radicais como forma de atingir o “mundo melhor” e perfeito, mas também para os praticantes da  política, a mudança que conduzirá a condições paradisíacas não vem com pequenas reformas isoladas e correções humildes na ordem da realidade, mas sim com uma mudança tão radical que levará até mesmo ao surgimento de uma nova espécie humana (tanto nazismo, que visava o paraíso terreno por meio de um banho de sangue étnico, quanto o bolchevismo, prometiam um novo homem – fosse o homem ariano ou o “homo sovieticus” – para Trótski, é válido lembrar, todo “homem comunista” teria o calibre intelectual de um Goethe, de um Aristóteles ou de um Marx). Este tipo de fé foi batizada por Eric Voegelin de “fé metastática”.

Embora a fé metastática guarde relação com a fé de tipo religiosa, esta primeira é bastante diferente da segunda, que é mais modesta em suas pretensões. A fé metastática é a crença de que todo o plano do real pode ser alterado e, desde que de maneira controlada, é possível obter uma ordem perfeita como resultado. Voegelin aborda esse tema no volume primeiro de seu “Ordem e História”: “do problema metastático (…) verá imediatamente que a concepção profética de uma mudança na constituição do ser está na base de nossas crenças contemporâneas na perfeição da sociedade, seja mediante o progresso ou uma revolução comunista” (VOEGELIN, 2009, p. 31) e segundo Voegelin, esta fé metastática é “uma das grandes fontes de desordem, se não a principal, no mundo contemporâneo” (ibidem).

 

Filosofia da História

Nessa discussão está implícito um dilema entre concepções de História. Desde Santo Agostinho, particularmente em seu “A Cidade de Deus”, a História era compreendida em dois eixos: a história humana, “cidade dos homens”, do desenrolar-se de todos os conflitos sociais, políticos e econômicos, guerras, ascensão e queda de impérios etc e a história espiritual do homem, “Cidade de Deus”, única com sentido objetivo e unidade, ordenada pela Criação, Redenção, Salvação e Juízo Final, sendo que este último ocorre para além deste tempo e totalmente desligado da história da Cidade dos Homens; pela ocasião do Juízo Final averígua-se a história da alma individual. Esta foi a concepção de tempo histórico que predominou até o período oficialmente tido como “modernidade” – onde então filosofias da história imanentistas começaram a pipocar com pensadores como Kant, Vico, Comte, Hegel e outros, que criam num momentum a-histórico dentro da História que põe fim a ela própria. Já a visão de Agostinho encontra eco nas concepções de história de pensadores como o próprio Voegelin, o alemão Oswald Spengler (1880-1936) e o britânico Christopher Dawson (1889-1970).

Enquanto para Agostinho este mundo, esta vida e esta História estão, no limite, fadados à imperfeição, outros pensadores afirmam o contrário, sendo que a perfeição é alcançável e realizável em algum ponto do futuro da nossa linha do tempo histórica; o que faz eco na concepção revolucionária de alguns e serve de moto perpétuo para a promoção de revoluções, mesmo que alimentadas pelo terror e causadoras de derramamento do sangue alheio. A lógica que deriva deste raciocínio é: se o paraíso foi deslocado para o eixo terreno, ou seja, pode ser considerado o télos da ação histórica, é lícito e conveniente lançar mão de quaisquer meios para atingir tal paraíso terrestre, desde solapar as bases da civilização e desmanchar instituições até destruir patrimônio público e privado, agredir autoridades e, eventualmente, assassinar todos aqueles que se opuserem ao advento do paraíso na Terra – certa vez, George Orwell fora replicado sobre o caráter sangrento da revolução bolchevique com o ditado “para fazer uma omelete é preciso quebrar os ovos”, ao que respondeu “mas a omelete nunca vem!”.

Essa mudança de senso histórico também origina-se a partir de distorções doutrinárias, com uma série de seitas cristãs milenaristas (Cf. GRAY, 2009, p. 41), que surgiram aos montes com a Reforma e que interpretavam o retorno de Jesus como algo que ocorreria num futuro próximo, que o Apocalipse se aproximava, que revelações haviam sido feitas aos membros dessas seitas e estes estavam autorizados a praticar insanidades em nome do cultivo terrestre da Cidade de Deus, antes de responsabilidade exclusiva da Igreja Católica, que se limitava apenas a preparar as almas humanas para essa condição futura e post mortem. Um exemplo retumbante dessa situação descrita, provocada pela subversão do senso histórico comum, é a Revolta dos Camponeses liderada por Thomas Müntzer, teólogo e pastor profético protestante que liderou a revolta e ocasionou cerca de cem mil mortes com ela (ibidem).

Dessa maneira, podermos afirmar que sem a inspiração cristã de uma salvação humana operada por humanos, as religiões políticas modernas não teriam surgido, ao menos não com a forma com que se desenvolveram. Torna-se evidente também, mesmo quando despercebido, o caráter gnóstico e místico de todas as doutrinas revolucionárias movidas por massas delirantes e crentes que representam a salvação da humanidade (quando não da própria realidade). Ou como afirma John Gray: “A utilização de métodos desumanos para alcançar fins impossíveis é a essência do utopismo revolucionário” (GRAY, 2009, p. 35).

Considerações finais

O tema das religiões políticas é transversal às obras de Eric Voegelin, que são longas e, embora não sejam herméticas no que concerne à exposição, convém que a leitura seja acompanhada por outros livros, especialmente clássicos da literatura religiosa e filosófica (Bíblia, Platão, Aristóteles, Hegel etc), o que demanda tempo, cuidado e poliglotismo (do qual Voegelin possuía até mesmo para hieróglifos egípcios); ademais, o tema é demasiadamente amplo e foi abordado aqui em caráter propedêutico, contando com referências bibliográficas razoáveis. O que deve ser reiterado é que a fé na política, em ideologias que prometem o paraíso terreno e acabam por instaurar o oposto, em ações políticas redentoras, materializadas na forma de manifestações promovidas por massas ou multidões que finalmente trarão a bonança social desejável para sete bilhões de pessoas ou até mesmo em ídolos políticos, caso lembremos que todo totalitarismo sobreviveu também graças a um fortíssimo culto à personalidade do líder; tudo isso é, na menor das hipóteses, condição explicativa necessária para quem pretende compreender por que o século XX foi dos mais sangrentos da história. Em suma: a exortação bíblica para que se mantenha a distinção entre aquilo que é de César e aquilo que é de Deus não foi cumprida e gerou uma versão deturpada da fé, do sentimento religioso e uma vida espiritual instrumentalizada (no contexto abordado, qualquer ação passa a ter sentido apenas à luz do final apocalíptico da ordem vigente, particularmente no que diz respeito à esfera da moralidade – ou seja, os fins passam a justificar os meios). Para fins prescritivos, vale a recomendação do filósofo americano Russell Kirk: “Os homens não vão melhorar o mundo ateando fogo nele. É preciso que busquem suas antigas virtudes e as tragam de volta à luz.”

 

Referências Bibliográficas

ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

                               Compreender: formação, exílio e totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

BARBUY, Heraldo. Marxismo e Religião. São Paulo: Convívio, 1977.

CHIROT, Daniel; MCCAULEY, Clark. Why not kill them all? Princeton: Princeton University Press, 2006.

Coleção Os Pensadores. Jefferson, Os Federalistas, Paine e Tocqueville. São Paulo: Abril Cultural, 2ª edição, 1979.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Irmãos Karamazov. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

GRAY, John. Missa Negra. São Paulo: Record, 2009.

HENNINGSEN, Manfred. The Collected Work of Eric Voegelin, vol. V. Missouri: University of Missouri Press, 1984.

KOLAKOWSKI, Leszek. Main Currents of Marxism. 3 volumes. Oxford: Clarendon Press, 1978.

ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas. Lisboa: ed. Relógio d’Água, 1998.

ROTHBARD, Murray. “Karl Marx as religious eschatologist”. Ludwig von Mises Institute. Disponível em: http://mises.org/daily/3769. Acesso em: 05/09/2014.

VOEGELIN, Eric. As religiões políticas. Lisboa: Vega, 2002.

                             A Nova Ciência da Política. Brasília: UnB, 1982.

                             Ordem e História: Israel e a Revelação. vol. I. São Paulo: Loyola, 2009.

                             Reflexões Autobiográficas. São Paulo: É Realizações, 2008.

WEBB, Eugene. Filósofos da Consciência. São Paulo: É Realizações, 2013.

[1] Enfatizamos aqui que usamos a palavra revolução em sentido técnico e estrito como mudança radical, ampla e total da realidade, da ordem e do ser humano. Nesse sentido, a Revolução Francesa é exemplar enquanto ilustração do conceito, ao passo que, por exemplo, a Revolução Americana não mereceria a alcunha.

[2] Nesse ponto há divergência entre Voegelin e Arendt. Cf. “Uma réplica a Eric Voegelin” (In: ARENDT, 2008, p. 417-424).

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As posições expressas em artigos por nossos colunistas, revelam, a priori, as suas próprias crenças e opiniões; e não necessariamente as opiniões e crenças do Burke Instituto Conservador. Para conhecer as nossas opiniões se atente aos editoriais e vídeos institucionais

André Assi Barreto

André Assi Barreto

Bacharel, licenciado e mestre em filosofia pela Universidade de São Paulo. Licenciado em História. Professor de Filosofia e História das redes pública e privada da cidade de São Paulo. Pesquisador da área de Filosofia (Filosofia Moderna - Dercartes, Hume e Kant - e Filosofia Contemporânea - Eric Voegelin e Hannah Arendt) e aluno do professor Olavo de Carvalho. Trabalha, ainda, com a revisão de textos, assessoria editorial, tradução e palestras. Coautor de “Saul Alinsky e a anatomia do mal” (ed. Armada, 2018).

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