O derradeiro Estado de Sítio

Controle é a verdadeira palavra que deveria aterrorizar a todos. De todas as tiranias da História, ou mesmo governos e regimes baseados na violência, o controle sempre teve um fator importante, mas nada que se assemelhe ao das ditaduras totalitárias da contemporaneidade. Imperadores chineses, sultões, califas, caciques, chefes, reis e duques europeus sempre se valeram da violência para reprimir revoltas, tumultos; tiranos como Crítias, ditadores como Cézar e imperadores como Alexandre ou Augusto, com toda certeza pautaram seus domínios com sangue, medo e roubos – mas nenhum dos exemplos dados se aproxima da capacidade controladora e assassina dos monstros do século XX.

Nenhum dos grandes conquistadores do passado possuía um sistema burocrático que pudesse por toda sua população em coleiras; verdade seja dita, ninguém quis tal coisa, ou teve um ideal que pudesse criar um Estado nivelado e tão correto em sua essência que poderia solapar tudo, mesmo o próprio povo, em nome da ordem.

É do Estado contemporâneo e de sua dantesca burocracia que fala Albert Camus, em sua peça Estado de Sítio, onde a figura da Peste assume o controle do governo para aleijar o Homem comum.

A peça, estreada em 1948 no Théatre Maringy, sob a direção de Jean-Louis Barrault, conta a História de um cerco em uma urbe. Como em A Peste, onde uma cidade argelina se vê em quarentena, a cidade espanhola de Cádiz é atormentada por um presságio que acompanha a passagem de um cometa: a Morte chegará – e como é anunciado pelos céus, o mal chega, mas capitaneado por um chefe novo: Peste.

Morte e Peste são personagens na peça. Elas falam, interagem, têm interesses particularidades. Em suas ações iniciais, espantam o governador – este que, só por ser a maior autoridade local, acreditava que seus decretos tinham poderes “mágicos” na sociedade, podendo deter o anúncio do cometa, o pânico popular e as primeiras vítimas da praga –, o clero, enfim, só sobrando os servidores públicos e o povo, para exercerem seus mandos. O governador também via uma vantagem na doença: ela, em seu início, só acometia os mais pobres, algo que pouparia gastos e cuidados do governo, mas tudo muda quando as garras de Peste se estendem para todos.

Os vilões são bem claros em suas vontades: querem simetria. Peste se vê incomodada com o fato de que a atuação da morte é caótica. Não há igualdade nas mortes entre o povo. Um morre doente, o outro atropelado, outro de fome, outro de suicídio, outro é assassinado… Isso o convence de tomar o controle político da cidade e, com a Morte como sua secretária, todos os cidadãos são listados, separados, arranjados de acordo com seus desígnios e leis. O amor, o afeto, honra, coragem, todos são postos na ilegalidade, os valores são subjugados na lei da Peste.

E, com igualdade, todos padecem nesse sistema. O plano da Peste é se tornar tirano absoluto, dono do ir e do vir, das vidas, das ações dos Homens. Qualquer um que ameaçar abalar tal ideal, que se erguer em nome de algo além da doença e não se prostrar a vontade da Peste, é marcado com seu sinal, é isolado, preso, morto. A Morte, tal qual sua assistente, possui a vida de todas em seu caderno – com apenas um riscar de nomes, seus contraventores falecem. Controle total, com a guia das vidas e atitudes de todos na cidade, pessoas só se tornam nomes em um caderno em nome de uma ideia louca.

Outros personagens, com efeito, existem no enredo. Agindo e reagindo com a situação a sua volta, os Homens de Cádiz tinham uma vida precedente á Peste. Seus costumes, ritmos e afazeres são minados pelo aparecimento do desastre. O protagonista da trama, Diego, bem como sua amada, Vitória, possuem suas próprias vidas, planos para o futuro, um amor vivo e sincero, mas há também outros personagens que desvelam o quanto a própria sociedade pode ser subserviente à Peste.

O Nada é um personagem. A ele tudo agrada, desde que a ordem seja destruída pelo caos, pois tudo se aproximaria mais do Nada. Não interessa o amor, a decência, a lealdade, já que ele abomina tudo o que se pode acreditar – Nada é, enfim, transformado em um funcionário público da Peste, ajudando a Morte no seu trabalho, brincando e fazendo pouco caso da miséria da população, ele designa tarefas contraditórias e impossíveis (o Nada não crê na Verdade…) dentro do emaranhado burocrático do sistema novo; todos os cidadãos precisam de documentos que dão permissão para os afazeres mais banais e necessários para a sobrevivência e Nada, como os demais servidores, apenas existe para fazer essa máquina de loucura funcionar.

Há outro personagem aliado da doença: o Juiz. Pai de Vitória, ele é um clássico legalista. Acredita que a lei está acima de tudo, mesmo da Justiça, e já se torna um servo do mal, traindo sua própria família no processo, acreditando que a lei é o único e verdadeiro norte para a vida humana, não vê problemas em ajudar no morticínio – assim como não enxerga nenhum defeito em si próprio, mesmo sendo um corrupto e um adúltero.

Diego e Vitória, porém, representam o que há de melhor na humanidade. Têm honra, o amor à pátria, são apegados à vida, ao povo de sua cidade e ao relacionamento que construíram em suas vidas, sentem o terror que é estar debaixo dos poderes mortais desse novo ditador, temem a Morte, esta que pode negar e tirar tudo de suas vidas, mas há resistência: suas noções de amor e justiça prevalecem ao sistema. Diego é o primeiro a se rebelar, não aceitando a situação atual, afrontando as autoridades e fugindo.

Contudo, o protagonista, por conta de seu medo, desce ao seu ponto mais baixo. Ao ser perseguido, nega seu amor, suas virtudes, suas crenças, em nome de sua vida. Ele sente na pele o que todos a sua volta padecem: o medo do controle, o medo de se perder tudo – mas é a própria conquista de sua vida que trava esse temor: Vitória. Sua dedicação, amor, coragem e lealdade superam as de Diego, mostrando ao protagonista como se erguer: ele se rebela contra a Morte, a esbofeteia, levanta sua voz e começa a tentar convencer o povo acuado.

No fim, o medo do controle e de perder a vida era o sustentáculo do Império de Peste. O povo se levanta, tem esperanças novamente. O fato de serem Homens, de serem cidadãos de Cádiz, da Espanha, a revolta contra os valores, felicidades e bens usurpados faz ruir o reino do vilão. Nada, tal qual o niilista anarquista que é, acaba comemorando o fim do governo de Peste, já que para ele apenas o fim importa. O povo o persegue, mas negando sempre tudo, acaba se suicidando no mar.

As pessoas conseguem seu triunfo: o medo se esvai e os vilões se retiram. Diego, no entanto, não sai incólume: contrai a doença, falecendo nos braços de Vitória. Seu sacrifício foi o que possibilitou a vida para os habitantes de Cádiz. Ele lutou contra a burocracia tirânica que pretendia controlar o indivíduo, deturpar o Bem, a Verdade, mas pagou com a vida.

Estado de Sítio parece mais um auto medieval, como o próprio Camus admitiu, do que uma tragédia do teatro grego. Há claramente forças do bem e do mal em um drama onde existem condições para a maldade ser extirpada do poder, mas por meio de um sacrifício. Há, nessa peça, algo de diferente de outra obra de Camus: A Peste, pois nesta o protagonista, o Dr. Rieux, vive o inferno da existência em Oran, quando acidade é posta em quarentena. Rieux vivia uma tragédia de fato, sem nenhuma saída, apenas com a amargura do desespero que se transformava na mais doentia apatia, com o passar do enredo. Em sua peça, porém, temos um herói virtuoso, há uma história que mostra que a virtude rompe naturalmente com a tirania, onde a coragem pode derrotar toda a opressão sistemática contra o indivíduo. É um lugar onde o bacilo da peste sempre surge periodicamente, mas sempre é derrotado.

Albert Camus era um ateu, um niilista com proximidades a Sartre e seu existencialismo, mas conseguia ver a opressão, a maldade, o errado: por consequência, ele também sabia que existe Justiça, Bondade e o Certo. O autor é um niilista que se afasta do anarquismo do Nada, este que, não importando o ambiente, quer destronar tudo. Por mais que não acreditasse no Bem em si, na Verdade pura, isto é, Deus, ou mesmo no suprassensível, nesta peça Camus não conseguiu fugir do gênero cristão de teatro, se aproximando bem das encenações que comemoram a Paixão de Cristo.

Estado de Sítio é uma obra que nasceu para atacar o totalitarismo e seu controle esmagador sobre o Homem. Como dito, nenhum dos tiranos e assassinos antes da época contemporânea eram tão poderosos e mortais quanto os mais recentes – salvo, talvez, os calvinistas da Genebra do século XVI –, pois não havia o desejo de nivelamento, não existia a religião política ocidental que iria parir o comunismo, o nacionalismo… Camus, em sua peça, se dirige diretamente a Franco e sua ditadura na Espanha, mas a Peste também pode ser vista como fascista e comunista: as mazelas totalitárias são bem semelhantes.

Ademais, Estado de Sítio, com efeito, é capaz de denunciar algo bem drástico: a falência do niilismo. É a obra de um niilista onde o Nada comete suicídio no mar que, como o povo acreditava, traria os ventos que livrariam a cidade da doença – Camus foi um niilista que via a necessidade e tinha a vontade de enxergar e admitir uma ordem, algo além da força e da pura vontade humana e das mudanças históricas. Não é de forma alguma uma obra cristã ou religiosa, mas já anuncia a bancarrota niilista, o mal que é a falta de sentido e de norte, já põe como um bem certos critérios de bondade como o patriotismo, a honradez, amor e coragem.

Leiam Camus, pois possivelmente ele foi o melhor niilista de seu tempo.

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Hiago Rebello

Hiago Rebello

Graduando em História, Licenciatura, pela Universidade Federal Fluminense, colunista do Instituto Liberal e do Burke Instituto.

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