Um Velho Equívoco em Nova Perspectiva

Um dos motivos pelos quais eu desprezava a literatura de ficção, principalmente a brasileira, era que, na minha vontade de conhecer as coisas da realidade, essas leituras não me pareciam apropriadas, pois se tratavam de meras historinhas destinadas ao entretenimento; apenas ferramentas para descontração. E pensando assim, por um tempo cheguei mesmo a considerar a possibilidade de não ler mais literatura de ficção alguma e me concentrar apenas nas leituras sérias, as que lidavam com a realidade ao nosso redor em vez de historinhas bobas. Foi então que passei a ler livros de cunho científico. Claro que esse meu raciocínio era uma imensa besteira, burrice mesmo, que ganhou ares de autoridade no meu juízo ao se somar à prepotência banal de, por não conseguir enxergar na literatura de ficção nada que remetesse à minha vida pessoal, julgar então que era ela que não tinha nada oferecer, e assim, numa inversão risível das coisas, atribuir a ela as limitações que estavam presentes em mim. Incapaz de retirar dessas leituras imagens que se assemelhassem à minha vida real, julgava que eram elas que não tinham nada a oferecer.

Esse equívoco só me foi esclarecido bem mais tarde – junto com a resolução de tantos outros – quando enfim entrei em contato com a obra do professor Olavo de Cravalho. Já no início das suas aulas, com muitos reforços ao longo do Curso, em textos e em recomendações avulsas, é constante o apelo do professor à literatura de ficção. E um livro em específico, o Aristóteles em Nova Perspectiva, demonstra a posição fundamental que esse tipo de leitura tem na vida de estudos e, não apenas isso, também esclarece que entre a literatura de ficção e a científica não há a exclusão que eu monstruosamente equivocado supunha, mas uma profunda e muito íntima relação, em que a amplidão do imaginário, alimentada pela literatura de ficção, se apresenta muito comprimida e taxativa na linguagem científica, e esta mesma terminologia objetiva é o ponto culminante que faz necessariamente referência a um imenso esforço imaginativo e contemplativo que o antecedeu. É essa a verdadeira relação entre as duas formas de discursos em que eu me batia desorientado: de idas e vindas entre um ponto e outro, da unidade da declaração apodíctica à unidade do esforço imaginativo cheio. Em outras palavras: a busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa.

Para lidar com a complexidade do drama humano, uma linguagem meramente racional não é suficiente pois leva em conta apenas estruturas rígidas e estáticas, enquanto a realidade do drama humano é mergulhada em diversas tensões. Nesses casos, só o esforço imaginativo pode dar conta de uma análise mais próxima da realidade. Um romance se aproxima muito mais dos dados da existência do que uma fórmula científica. É por isso que antes de qualquer coisa, uma imensa base de cultura literária e imaginativa se faz necessária. Há mais da realidade representado em Crime e Castigo do que em manuais. É pelo campo da Poética que mais se aproxima da vida reais, não o da Lógica, que é apenas uma síntese esquemática daquela primeira.

Querem um exemplo? Leiam o capítulo VI de “Confiteor”, do Paulo Setúbal. Ali está representada — e muito bem representada — por meio de uma situação concreta real, um mandamento divino. Essa representação por meio do recurso literário não tem por fim ou por efeito tomar o lugar da mensagem evangélica, mas sim reverberá-la, permitindo que vejamos diante dos nossos olhos, num vizinho de bairro, os ecos da Verdade única, enquanto que a linguagem doutrinal nos apresenta essas mesmas verdades mas sem seus ecos e reverberações que nos permitiriam ver na variedade das situações humanas a unidade evangélica.

Pensando bem, talvez o problema não esteja na linguagem objetiva em si, e sim na forma como se lida com ela, tomando-a como argumentos únicos que não trazem subentendidos em si aqueles ecos e reverberações da linguagem literária. E como a ponta do iceberg que aparece acima do oceano que um desavisado pode tomar como tudo o que existe, ignorando a imensidão da estrutura mergulhada fora do alcance dos olhos e abaixo do nível do mar, assim é com a linguagem taxativa e a sua imensa estrutura escondida, a linguagem poética.  Para me ajudar nessa questão, a leitura de “Aristóteles em Nova Perspectiva” foi fundamental. Nele, o professor mostra que essas linguagens não são excludentes, mas unificadas. Por trás de cada frase doutrinária (Lógica) anunciada por um sábio, um santo, um Papa, ou mesmo um apóstolo, existiu um IMENSO esforço imaginativo (Poética), e é somente com a rememoração desse esforço, com a tentativa de reviver o que eles viveram para chegar aos termos taxativos, que se pode entender verdadeiramente a linguagem doutrinária. Ignorado esse esforço que a antecede, a doutrina pode virar facilmente fator de alienação, e daí resultar em baixarias. Mas não é apenas no campo religioso que essa lição se faz necessária. Mesmo o trabalho científico, se desconsiderar o esforço imaginativo e contemplativo que antecede as conclusões lógicas e finais, acaba se tornando na verdade também um fator de alienação, pois nenhuma ciência lida com a realidade, mas apenas com seleções abstrativas previamente definidas. 

Antes de aprender todas essas lições, o que eu fazia era precisamente considerar a terminologia científica como o início e o fim do conhecimento, tomá-la como ponto de partida e de chegada dos meus esforços que, apesar de burros, eram sinceros, e considerá-la o caminho, a verdade e a vida, sem imaginar que quanto mais enveredava por ele achando que estava indo ao encontro da realidade concreta, mais mergulhada num mundo de suposições tomadas por reais. Tal era o equívoco em que eu me encontrava.

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