O “Bum Bum Tam Tam” é coisa de Deus

O mundo contemporâneo é uma grande tragédia moral. A perda de um sentido transcendental é uma das grandes razões pelas quais o Homem naturalizou a degenerescência. Embebidos no relativismo e corrompidos pelo hedonismo, a vanguarda intelectual não admite qualquer baliza moral que freie emoções e sentimentos.

Ao mesmo tempo, como um reflexo imediato, a perda da verdade, a destruição de padrões conceituais de classificação das coisas humanas, a ideia de que narrativas importam mais do que fatos e a noção de que a história humana é alinhada pela ótica de um grupo opressor constituem o tentáculo político para a estruturação de um novo mundo: um mundo planificado pela inversão de valores ou pela ausência deles. Para a vanguarda, a noção de beleza depende do sujeito; a noção de verdade está vinculada a um ponto de vista; e a noção de bem depende do grupo que está no poder. Esses são exemplos dessa nova forma crítica de ver o mundo.

Os estragos mentais de tal visão predominante nos círculos intelectuais vão da educação à cultura. Passam pela política, pelo direito, pela filosofia, pelas ciências sociais e invadem a arte, a música, os esportes, a política, a religiosidade e a sexualidade. Nada escapa dessa ampla teia de aranha ideológica.

No caso da música, a maneira com que essa forma de interpretação social e crítica do mundo alçou voo em nossa época, é algo digno de nota. A imersão no apelo sonoro para que se despertem os instintos de sexualização primitiva, a total falta de habilidade na estruturação de uma letra e a inversão do nivelamento adequado para que um ser humano se eleve espiritualmente, são as grandes marcas de nosso tempo.

Exemplos não faltam. No Brasil, nos últimos tempos, um verdadeiro fenômeno surgiu no funk: MC Fioti. Mais especificamente por meio do hit Bum Bum Tam Tam”, o referido “mestre de cerimônias” conquistou marcas impressionantes no ano de 2018: o vídeo dessa “música” teve mais de 1 bilhão de visualizações no YouTube. Com isso, MC Fioti foi o primeiro “artista” brasileiro a atingir esse expressivo número. Foram mais de 630 milhões de visualizações provenientes do exterior: França, Colômbia, Argentina, Turquia, México e Índia auxiliaram muito nesses números, o que prova que o fenômeno de destruição cultural é um traço global.

Com um orçamento muito baixo e com pequenas expectativas de sucesso para o vídeo, o material foi gravado pela famosa e bem sucedida produtora Kondzilla, que alavanca boa parte do funk nacional na plataforma do YouTube. Como tudo foi feito de última hora, MC Fioti declarou, em reportagem do portal G1, que olhando para trás e vendo o absurdo sucesso que aconteceu, “é coisa de Deus mesmo”. Essa compreensão “teológica” dos desígnios de Deus e sua intromissão no sucesso dessa “música” que enaltece desmesuradamente a vulgarização do bumbum das mulheres faz com que Deus realmente escreva certo por linhas tortas. Ou pelo menos deve ser assim que MC Fioti pensa…

Além disso, existe algo que aguça o sentido da audição com esse funk: o fato de MC Fioti ter utilizado um trecho da “Partita em Lá menor” de Johann Sebastian Bach. Essa parte se refere ao uso de uma flauta, que para a letra da “música” do funkeiro, é uma “flauta envolvente”. E a descoberta de Bach foi por acaso, afinal, MC Fioti sequer conhecia o músico alemão. Segundo o funkeiro, entre fazer o download da gravação da flauta na internet, criar a batida, vocais e gravação de seu hit, foram seis horas, o que ele considerou “muito tempo”.

A questão do tempo para uma geração de jovens atrofiados intelectualmente é algo sui generis: tudo deve ser rápido e instantâneo. Como estão em adesão com modismos, nascem mortos ou pré-datados, como diria o cartunista francês Charb na crônica “Morte aos datados!”, presente no livro “Pequeno tratado da intolerância”. Por outro lado, talvez, MC Fioti tenha razão: como alguém leva seis horas para gravar algo tão ruim?

Bom, se até agora alguém não viu o clipe da “música”, sugiro que empreenda esse esforço. E preste atenção na letra. Bem, a “música” começa com Bach ao som de inúmeros “Hã!?”, entremeados por batidas que remetem a odaliscas insinuantes. E aí vem a grande parte inicial: “É a flauta envolvente que mexe com a mente; de quem tá presente; as novinha saliente, fica loucona e se joga pra gente”. Após essa rima “exuberante” (a ideia de plural é coisa do passado!), eis que surge o refrão dizendo para descer, mexer, vir, ir e tremer com o “Bum Bum Tam Tam” (repetido ad nauseam). A seguir, uma pausa para um trecho em que o funkeiro diz “autenticamente falando; E aí, pô!; Nóis tá tipo como”, voltando ao início da “música” e seu refrão (sem esquecer de vários “Hã!?”). Seis horas para isso! No clipe é possível ver um Aladim, sarcófagos, múmias e muitas odaliscas funkeiras. Uma obra de arte musical nacional que “honrou” Bach.

Eis que MC Fioti reapareceu em 2021. Em três momentos distintos. Em um deles, essa mesma música foi adaptada para a realidade da Covid-19. E aí surgiu um remix em prol da vacina do Instituto Butantan. Tão catastrófico como o primeiro clipe, nessa versão MC Fioti invade o instituto de pesquisas mais famoso do Brasil e bota os funcionários para dançar. O show de bizarrices está à disposição no YouTube, no canal do Kondzilla. E o funkeiro não perde tempo dizendo que “é a vacina envolvente que mexe com a mente”, afirmando o quanto ela é saliente e vai curar muita gente. Um espetáculo!

Quase ao mesmo tempo, a Orquestra Sinfônica da Bahia (OSBA) também não perdeu a chance e fez sua versão. Enaltecendo o quanto se deveria confiar no “Butantan e na vacinação” (sem esquecer os “Hã!?), o maestro Carlos Prazeres entoou a versão mais trágica dessa ode ao ridículo. Com baixa harmonização e com um som absurdamente truncado, os membros ganharam os holofotes da grande mídia exatamente pelo oposto do que se espera de uma orquestra: a falta de qualidade. Mesmo sem desconsiderar o quanto tais membros são instruídos na teoria e prática musical, o contexto foi semelhante ao de colocar um zagueiro como ponta-direita em um time de futebol: apesar de saber jogar este esporte, o contexto e a posição dificultam a execução da arte.

Mas esse último refinado remix foi defendido arduamente. O maestro em questão declarou ao “Timeline Gaúcha” que como vivemos tempos de obscurantismo e de teorias da conspiração, seria necessário a OSBA conscientizar a sociedade. E justificou que a orquestra “tem de ser atual, dialogar com tendências e ajudar governantes”. Para Prazeres, “o funk não é rebaixamento, é um estilo da periferia, um símbolo da resistência e da comunidade negra. […] não pode ser alvo de desrespeito e preconceito”. Para o maestro da OSBA as letras do funk “são a realidade que eles da periferia veem, mostrando ao que estão sujeitos: eles olham para o lado e veem isso, o tráfico, a droga, a sexualidade sem qualquer controle. […] A gente precisa entender como uma demonstração artística de um povo que não recebe nenhum material, nada que não seja repressão e esculacho […]”. Por fim, Prazeres declarou que “se existe uma entidade superior, um Deus, eu creio que a música de Bach está bem perto dele”.

Quando um ponta-direita joga na ponta-direita ele é um craque. Quando resolve jogar de zagueiro, é um fiasco. Ou seja, quando o maestro falou de Bach, foi justo, sensato e extremamente preciso em suas colocações dentro de seu ceticismo religioso (isso sem esquecer que MC Fioti disse que seu sucesso tem a mão de Deus…). Todavia, quando comentou sobre política e funk, seu mix de “lacração” com vitimismo social chama atenção.

Em primeiro lugar, falar em obscurantismo e teorias da conspiração sem especificá-las é um crime intelectual. Depois, falar que a orquestra tem o poder de conscientizar alguém é depositar responsabilidade científica demasiada em uma entidade que só sabe tocar instrumentos musicais. A tentativa piegas de afirmar que o funk não rebaixa a música simplesmente por ser de periferia e por ser símbolo de resistência dos negros tem um duplo equívoco: julga que todos os negros de periferia enaltecem o funk, ao mesmo tempo em que toma a periferia como salvo-conduto para afirmar que algo feito por comunidades carentes merece respeito simplesmente por ser feito por comunidades carentes. Ora, a qualidade não escolhe cor, sexo, religião ou qualquer outra característica individual e social. O mesmo vale para a falta de qualidade. Isso para não falar que o fato de as letras de funk serem reflexos das comunidades em que brota o próprio ritmo, em hipótese alguma é uma carta na manga para justificar que as letras que os funkeiros elaboram possuem alguma qualidade. Ou não seria possível ver tal realidade social e criticá-la? Ou é muito mais fácil o caminho dos prazeres, maestro Prazeres? E o que é ser desrespeitoso com o funk? A maior parte de suas letras não desrespeitam a sociedade com o enaltecimento da degradação humana?

Já no terceiro momento, MC Fioti apareceu no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), aplicado no início de 2021. Aquela mesma avaliação que “avalia” a capacidade de nossos estudantes ingressarem no ensino “superior”. Com certeza foi uma questão que estimulou uma profunda reflexão intelectual nos futuros profissionais formados pela intelligentsia acadêmica…

Mas aí vem o gran finale. O site “Brasil de Fato” divulgou uma entrevista com Thiago Santos (conhecido como Thiagson), doutorando da Escola de Música da Universidade de São Paulo (USP), também professor de piano, a respeito da relação entre a produção “musical” de MC Fioti e Bach. Para ele, sem sombra de dúvidas e em razão da tecnologia existente, “‘Bum Bum Tam Tam’ é mais complexo que Bach”. Ao analisar as partituras, Thiagson declarou que o “Fioti colocou umas notas que o Bach jamais colocaria”. Isso é óbvio! Não precisa ser algum estudante de música para saber que Bach jamais se misturaria com MC Fioti.

No restante da entrevista, que aborda as suas “pesquisas” em torno do funk, há um festival de explicações que envolvem a ideia de que há um consenso (onde?) de que o funk é uma manifestação cultural com valor positivo em nossa sociedade, de que aqueles que o criticam é por total desconhecimento de música ou de preconceito social e afirmações que desejam valorizar aquilo que o funk, por si só, encontra dificuldades de valorizar: a sua imaginária qualidade. Thiagson, da USP, é mais um intelectual que deseja enaltecer a produção “artística” de alguns “músicos” da periferia exatamente pelo fato de serem periféricos: é o coitadismo musical social em doses intelectuais.

Com a mais absoluta certeza e sem ironias afirmo que Bach, Prazeres, Thiagson e MC Fioti conhecem muito mais de música do que eu possa imaginar. Bach dispensa apresentações. A sua obra fala por melodias. Prazeres, encantado com o hedonismo do vitimismo nacional, comanda a OSBA: duvido que algum energúmeno possa ocupar o posto de maestro. Thiagson estuda música na USP. E MC Fioti conhece instintivamente o que é bom (ou seja, Bach), mesmo que consiga produzir ritmos envolventes como um absorvente íntimo pouco saliente (também tive vontade de rimar…).

No entanto, quando estudiosos desejam fazer proselitismo musical em prol de ideologias vitimistas, afrontando a inclinação natural que todo o ser humano possui para a busca pela beleza, suas análises desrespeitam o bom senso do senso comum. Por mais que gastem tempo, maxilares e salivas apresentando as razões da suposta qualidade insólita do funk, não conseguirão resistir aos testes do tempo. E é curioso como MC Fioti, ao contrário dos “intelectuais musicais”, não tenta justificar sua qualidade. Talvez tenha consciência do que é. Como disse Bach “a música é uma agradável harmonia para a honra de Deus e para os deleites permissíveis da alma”. Nada mais distante do funk. Mas nunca se esqueça! Para MC Fioti, seu sucesso foi coisa de Deus…

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As posições expressas em artigos por nossos colunistas, revelam, a priori, as suas próprias crenças e opiniões; e não necessariamente as opiniões e crenças do Burke Instituto Conservador. Para conhecer as nossas opiniões se atente aos editoriais e vídeos institucionais

João L. Roschildt

João L. Roschildt

Professor do curso de Direito do Centro Universitário da Região da Campanha (Urcamp). Além de articulista e ensaísta, é autor de “A grama era verde”. Site: www.joaoroschildt.com.br

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