O Diabo de foice e martelo

Stálin e Lúcifer

A nossa época representa uma constante queda adâmica dos valores morais. O hedonismo de nossos próprios pecados e a tolerância com a estupidez são os combustíveis para a perpetuação do mal. Sem qualquer recaída na defesa de um moralismo barato ou na crença de uma perfeição humana que nos resgate de impurezas, pode-se afirmar que é absolutamente possível indicar atitudes e visões de mundo que nos conduzem a um bom caminho. Na linguagem de Aristóteles, tradição seguida por Tomás de Aquino e John Finnis, é natural pressupor que a nossa inclinação nos guie para um florescimento humano, ou seja, a busca por algo que concretize a natureza pela qual fomos desenvolvidos. Ou é mais ou menos assim. Pelo menos, em potência.

Se somos seres capazes de racionalidade, não necessariamente racionais, uma lição extraída de Immanuel Kant, é bem provável imaginar que a busca pelo bem humano passe pela razão. Não com exclusividade, afinal, seres humanos racionais também possuem emoções e sentimentos que compõem o cenário existencial. Assim, a eterna procura pelo florescimento também é uma busca pelo melhor uso da racionalidade. Ora se “a razão vos é dada para discernir o bem do mal”, como sintetizou Dante Alighieri, sem ela somos agentes morais à deriva.

Quando boa parte da sociedade tem como objetivo central a chancela virtual por meio de “curtidas”, em que a ideia de “arte” encontra sua relevância pela relação direta que estabelece com o espanto que ela causa no tecido social ou no momento em que há uma superexposição física de corpos femininos em redes sociais com o intuito de angariar seguidores, isso não parece a melhor das realidades para que alguém possa encontrar um sentido profundo em sua existência. A ausência do sublime é a marca do declínio. No instante em que a essência de uma sociedade gravita em torno daquilo que é fugaz, repugnante ou da vulgarização dos prazeres, não existe mais um centro de gravidade em torno de princípios edificantes.

Quando a excessiva massificação vira o grande termômetro do sucesso, são escancaradas as portas do hospício da imoralidade. Logo, de forma instantânea, algo em acordo com o tipo de vida contemporânea, o incomum ganha ares de cult. Com o tempo, o incomum normaliza-se e o bizarro ganha espaço. Mas não pode ser qualquer tipo de excrescência grotesca. Em um mundo em que as principais fontes de produção do conhecimento e de difusão das informações são explicitamente alinhadas com uma ideia de mundo à esquerda, não é possível que o insólito não seja engajado politicamente com o progressismo. Natural, afinal conservadores conservam e isso os afasta radicalmente do esdrúxulo.

Nesse ponto, quando os valores já se mostram invertidos e o surreal já é visto como real, qualquer defesa de uma realidade razoável, não passa de um símbolo de uma sociedade reacionária. Então, esquisitos, desequilibrados, desajuizados e inconsequentes são vistos como diferentes. Turbinados por uma democracia em que qualquer diferença deve ser respeitada, a insanidade passa a ser normal. E tudo o que era habitual, ordeiro e regular acaba se desfazendo no ar.

Bem, mas o fato é que a excentricidade ou a ousadia sempre tiveram um espaço privilegiado entre os seres humanos. O diferente é aquilo que foge ao comum e isso chama a atenção. Claro que com uma frenética mudança de valores e com a valorização do que era desvalorizado, natural que o caminho humano passe a ser pavimentado por novas perspectivas que rompem com a tradição. Se existe algo que os excêntricos sabem é que a glorificação de sua excentricidade lhes garante holofotes.

Na esteira disso, os “intelectuais” precisam se adaptar para ainda chamarem atenção. Como eles gestaram uma realidade que degrada nossa sociedade nos laboratórios universitários e perderam o controle sobre os monstros que criaram, é óbvio que em algum momento queiram um resgate ao seu prestígio. Se em outros tempos somente teorias ou ideias que galgavam alguma solidez razoável poderiam alçar pequenos voos de popularidade, hoje há uma necessidade de produzir algo absurdo, estrambólico ou que seja flagrantemente tresloucado para que possa “causar” algum impacto midiático e prender a atenção das pessoas. A mente revolucionária é uma eterna insatisfeita com a revolução. Claro que outra forma de ganhar espaço nos ambientes de “conhecimento” é ser apadrinhado por alguém importante. Em ambas as situações, novamente, é necessário o alinhamento com o progressismo. Sem isso, nada feito.

E, mais uma vez, nisso os conservadores perdem feio. Não possuem padrinhos que chancelem o que fazem, muito menos tem qualquer propensão a produzir algo que cause furor na mídia. Conservadores só causam alguma reverberação midiática quando já se normalizou a demência, o que faz com que a reação ao que é efetivamente alucinado, ganhe ares de insanidade. Dessa forma, o conservadorismo, uma postura de reação àquilo que está errado por não ser minimamente razoável, sempre é mal visto.

Há pouco tempo, no programa “Conversa com Bial”, Caetano Veloso declarou que é “menos liberaloide do que era até dois anos atrás” em razão de uma aproximação que teve com algumas críticas socialistas ao liberalismo. De acordo com sua visão, sua mudança de postura se deu em virtude de um desenvolvimento intelectual a partir de um contato que teve com o youtuber Jones Manoel, que para Caetano Veloso, é um jovem “muito inteligente”. Ainda no programa, o cantor reforçou que as experiências comunistas e nazistas não podem ser equiparadas em seus aspectos horripilantes. Como assim?

Após esse grande “selo” de qualidade, é óbvio que Jones Manoel ganharia destaque nos veículos tradicionais de comunicação. E foi o que fez a Folha de S. Paulo, ao realizar uma entrevista com este “historiador”. Nela há um festival de afirmações dignas das grandes propagandas de ocultação de crimes de regimes políticos e com o duplo padrão moral que caracteriza o progressismo.

Apesar de afirmar que não é stalinista, ele não crê que Stálin seja a reencarnação de Lúcifer na Terra. Para Jones Manoel, sob o governo de Stálin “o terror existiu, o Gulag existiu, a repressão a artistas, intelectuais, cientistas existiu”, assim como a fome em razão de crises de abastecimento. Todavia, para esse “historiador”, existiram elementos emancipatórios como direitos econômicos, sociais, construção de universidades, casas populares e a erradicação do analfabetismo que também merecem destaque. E completou: “Se hoje eu tenho direito de voto e direitos civis, deve-se fundamentalmente ao papel do movimento comunista”. Ou seja, um “pequeno” terror aqui, outro ali, enviar alguém para o Gulag ou reprimir pessoas em nome de uma boa causa é válido, não é? Claro que, ironicamente, a ideia de voto deve ter surgido na “democracia” da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), um regime que “garantiu” plenos direitos civis, com exceção para aqueles que foram para o Gulag ou sofreram perseguições políticas, é isso? Afinal, se hoje alguém ousa escolher um representante popular e tem noção de seus direitos perante o Estado e a sociedade, tudo é obra do comunismo? A longa tradição de filosofia política do Ocidente que nasce na Grécia Antiga, atravessa o Medievo e deságua nos “pais” do liberalismo (e do conservadorismo) não desenvolveu nada antes do comunismo? A história, pelo visto, não é um conceito que perpassa a formação de “historiador” de Jones Manoel…

Em outra de suas respostas, ao criticar o ex-presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Barack Obama, ele o chama de “genocida”, responsabilizando-o por bombardeios realizados pelo exército norte-americano sobre alvos civis. Em nenhum momento Stálin recebe classificação semelhante, mas isso é um detalhe. Até porque, ao ser indagado se os aspectos positivos de Stálin mereceriam maiores destaques do que os erros cometidos, Jones Manoel disse que “na análise histórica, não existe uma balança de pontos positivos e negativos. O objetivo é compreender a totalidade do fenômeno”. Claro! Na balança, haveria um problema. Na totalidade do fenômeno, prevalece a narrativa fantasiosa.

Na sessão de tortura, digo, entrevista realizada, ainda houve espaço para afirmar que “isso é falso” ao se referir à ausência de eleições livres em regimes comunistas, sem responder objetivamente se alguém poderia ser candidato na antiga URSS contra Stálin. Na sequência, apesar de se declarar um “defensor da paz incondicional”, ele justificou politicamente os fuzilamentos (paredón) de Che Guevara, na medida em que havia a necessidade de Cuba se defender dos EUA.

Em um dado momento, Jones Manoel reforçou: “Sou um amante da paz, estou até pensando em virar vegano, comecei a ter pena de bicho. Mas sou um historiador”. Pelo nível de deturpação que a palavra “paz” sofreu em suas respostas e pela ausência de uma história séria, percebe-se que é muito mais fácil ter pena de animais do que de seres humanos. Por fim, ao ser questionado sobre a possibilidade do comunismo atingir o poder pelas vias democráticas, esse militante declarou “que a classe trabalhadora deve usar qualquer meio necessário para conseguir seus objetivos”. Creio que com essas declarações é autoevidente o descolamento moral que Jones Manoel tem da realidade e como seu duplo padrão ético faz parte de toda linha argumentativa que move suas afirmações.

Já em uma Live, Jones Manoel não poupou esforços para justificar a pena de morte. Dizendo-se contrário a pena capital, o “historiador” socialista afirmou que durante uma ruptura política, no “momento de um processo revolucionário, em seus momentos mais agudos”, ele defenderia tranquilamente a pena de morte para “crimes” cometidos por contra-revolucionários. Acrescentou que sua posição é a mesma de Fidel Castro, um político, de acordo com esse Heródoto tupiniquim, “profundamente humanista”, reafirmando que o “terror vermelho” contra aqueles que não desejam o socialismo, é algo válido. Pelo visto, para Jones Manoel, qualquer um que se colocar como um obstáculo à revolução, pode ser eliminado com a mesma frieza com que se esmaga uma barata. Tudo isso afirmado e tolerado em nome da liberdade de expressão, algo que inexiste em regimes comunistas. Em outras palavras, Jones só é Manoel porque aqui não tem Fidel.

Em seu perfil no Instagram, o “historiador”, que conta com mais de 89 mil seguidores (pelo visto é o número de revolucionários brasileiros que aderem as suas teses), se define como “uma pessoa legal”. Excluindo mentecaptos políticos, alguém consegue imaginar “uma pessoa legal” justificar a perseguição e a morte de alguém por discordar de uma revolução ditatorial comunista?

O esquerdismo é uma verdadeira máquina que tritura tudo o que vê pela frente, inclusive a linguagem. Mas câmeras de qualidade, fotografias de alta resolução derivadas de ótimas lentes, bons notebooks e smartphones para uma bela produção visual de vídeos e perfis em redes sociais, algo que só empresas capitalistas conseguem produzir, fazem parte do repertório de registros do Instagram deste grande “historiador”. Coerência é uma palavra também deturpada por “comunistas de carteirinha”. Por fim, no blog da editora Boitempo, o “historiador” tem um “magnífico” texto em que declara abertamente: “Sim! Eu apoio a Coreia do Norte!”. Cansativo?

No artigo “The diabolical side of Karl Marx”, Walter E. Williams aborda alguns resultados práticos das tentativas de aplicação do socialismo (ou do comunismo) ao longo da história. No texto, ele destaca a importância de tais informações em momentos de ascensão, principalmente entre jovens norte-americanos, do pensamento socialista em razão de certos discursos laudatórios produzidos pela “elite acadêmica”. A título exemplificativo, citando o livro Death by Government, de R. J. Rummel, Williams aponta que na antiga URSS houve a morte de 61 milhões de pessoas promovidas pelo governo, ao passo que na China, o regime de Mao Tsé-Tung notabilizou-se pela morte de 78 milhões de indivíduos.

Creio que Williams tenha se equivocado no título, afinal, não há um “lado diabólico” em Marx, mas o próprio diabo em suas ideias. Se é a razão o instrumento que consegue diferenciar o bem do mal, é bem provável que seja ela a responsável por averiguar a forma com que as sociedades se organizam e quais os valores que devem preponderar para uma ordem social justa e fraterna. Ou se vidas podem ser negociadas em nome de causas ideológicas.

No fundo, a disputa intelectual é se existe uma racionalidade meramente instrumental que aceita quaisquer permutas em nome de promessas de bens maiores, ou se um agir principiológico é o que deve guiar uma sociedade. Em partes, esse economista oferta uma resposta quando afirma que “não é preciso ser a favor de campos de extermínio [..] para ser um tirano. A única exigência é que se deve acreditar na primazia do Estado sobre os direitos individuais”. E qual visão política idolatra o Estado ao ponto de achar que ele é o único e grande guia da humanidade?

Como o desastre histórico entre progressistas, esquerdistas, socialistas e comunistas teima em se repetir com pequenas alterações, seus fundamentos, justificativas e ações não mudam. No poder, esmagam. Fora do poder, destroem. Sempre por uma boa causa e prezando pelo coletivismo, submetem o indivíduo a planejamentos utópicos e despersonificam os cidadãos. Na era do sentimentalismo, os progressistas sabem que não podem executar seus projetos sem o uso retórico das palavras que movem o mundo Ocidental: pluralismo, diversidade, igualdade, fraternidade e democracia. Alguns, mais ousados ou apanhados de surpresa, confessam o quão odiosos são estes termos.

Em 1994, ao conceder uma entrevista para Michael Ignatieff, o historiador (propositalmente sem aspas) Eric Hobsbawm, famoso pensador marxista, teve de responder a uma difícil pergunta. Questionado “se o amanhã radiante realmente tivesse sido criado, a perda de quinze, vinte milhões de pessoas poderia ter sido justificada?”, Hobsbawm não titubeou e respondeu: “Sim”. A pergunta fazia referência à possibilidade de um sucesso revolucionário mundial, caso o Grande Terror de Stálin tivesse obtido êxito, mesmo com a morte de milhões de pessoas. O historiador em questão não teve dúvidas e acharia legítimo o sacrifício das vidas humanas para um “bem maior”.

Claro que, ao analisar a resposta completa, ela ganha uma nova razão. Para Hobsbawm, o momento de ascensão do comunismo é uma etapa da história em que “o assassinato em massa e o sofrimento em massa [eram] absolutamente universais”. Ou seja, se todos erram, um outro erro para o bem maior seria possível. A história se repete e sempre há uma boa razão para uma ação ruim. Como diria o poeta Mário Quintana “o maior truque já realizado pelo diabo foi convencer o mundo de que ele não existe”.

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João L. Roschildt

João L. Roschildt

Professor do curso de Direito do Centro Universitário da Região da Campanha (Urcamp). Além de articulista e ensaísta, é autor de “A grama era verde”. Site: www.joaoroschildt.com.br

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