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O testamento do Almirante Tamandaré

Somente a ignorância, para não dizer a má-fé, pode explicar a estupidez daqueles que maldizem o Brasil e a sua história, as suas tradições católicas e ibéricas, o corpo de valores sob cujo influxo – em que pesem as muitas dificuldades, muito próprias a qualquer experiência – civilizou-se e constituiu-se o Brasil. Talvez nem mesmo a ignorância e a má-fé, senão um ranço ideológico obstinando, seriam capazes de amesquinhar muitas das figuras notáveis, com traços de autêntica heroicidade, que enriqueceram e efetivamente construíram a nossa história.

Um desses notáveis é – como não? – um simples marinheiro, “O Velho Marinheiro”, um certo Joaquim Marques Lisboa, o Almirante Tamandaré, agraciado sucessivamente por D. Pedro II com os títulos de barão, visconde, conde e, por fim, marquês, pelos numerosos serviços prestados ao Brasil e ao Império, herói da Guerra do Paraguaia, Patrono da Marinha, reconhecido em guerra tanto pela valentia e ardor com que se batia pela vitória quanto pela magnanimidade com que tratava o inimigo – esse homem eminente em seu tempo, e em qualquer tempo, é um modelo perfeito e acabado de católico e brasileiro, para vergonha dos tontos, inimigos da Pátria, e de qualquer pátria.

Bem desse homem de armas disse um homem de letras, Gustavo Barroso, na modelar biografia sintética que lhe dedicou, ao rememorar episódio característico da têmpera de aço d’ “O Velho Marinheiro”: “As anedotas pintam o caráter dos homens melhor do que muitas páginas de psicologia. De outra feita, sabendo que ia ser submetido à assinatura da Princesa Imperial Regente o decreto da reversão ao serviço da Armada dum oficial que fora obrigado a pedir demissão por ter praticado atos de desonestidade, fardou-se, cingiu a espada e dirigiu-se ao paço. Recebido por Sua Alteza, entregou-lhe a arma que tanto soubera honrar, com estas palavras: ‘Peço a minha demissão do posto de almirante. Não posso pertencer a uma corporação de que faça parte um oficial desonrado!’. D. Isabel acalmou-o, ouviu dele o relato do que praticara o demissionário e não assinou o decreto.”. [1] Episódio que, infeliz e lamentavelmente, parecerá invencionice a muitos.

Soube do testamento de Tamandaré pelas mãos amigas e generosas do jornalista Aristóteles Drummond e, desde então, não deixo de o reler sempre que posso. Só me resta transcrevê-lo integralmente aos leitores do Burke Instituto Conservador, que dele saberão tirar o devido proveito:

 

Não havendo a Nação Brasileira prestado honras fúnebres de espécie alguma por ocasião do falecimento do imperador, o senhor D. Pedro II, o mais distinto filho desta terra, tanto por sua moralidade, alta posição, virtudes, ilustração, como dedicação no constante empenho ao serviço da pátria durante quase 50 anos que presidiu a direção do Estado, creio que a nenhum homem de seu tempo se poderá prestar honras de tal natureza, sem que se repute ser isso um sarcasmo cuspido sobre os restos mortais de tal indivíduo pelo pouco valor dele em relação ao elevadíssimo merecimento do grande imperador.

Não quero, pois, que por minha morte se me prestem honras militares, tanto em casa como em acompanhamento para sepultura.

Exijo que meu corpo seja vestido somente com camisa, ceroulas e coberto com um lençol, metido em caixão forrado de baeta, tendo uma cruz na mesma fazenda, branca, e sobre ela colocada a âncora verde que me ofereceu a Escola Naval em 13 de dezembro de 1892, devendo colocar no lugar que faz cruz a haste e o cepo, um coração imitando o de Jesus, para que, assim ornado, signifique que a âncora cruz, o emblema da fé, esperança e caridade que procurei conservar sempre como timbre dos meus sentimentos. Sobre o caixão não desejo que se coloque coroas, flores nem enfeites de qualquer espécie, e só a Comenda do Cruzeiro que ornava o peito do Sr. D. Pedro II em Uruguaiana, quando compareceu como o primeiro dos voluntários da Pátria para libertar aquela possessão brasileira do jugo dos paraguaios, que a aviltavam com a sua pressão; e como tributo de gratidão e benevolência com que sempre me honrou e da lealdade que constantemente a S.M.I. tributei, desejo que essa Comenda Relíquia esteja sobre meu corpo até que baixe a sepultura, devendo ficar depois pertencente à minha filha D.M.E.L. (Dona Maria Eufrásia Marques Lisboa), como memória d’Ele e lembrança minha.

Exijo que se não faça anúncios nem convites para o enterro de meus restos mortais, que desejo sejam conduzidos de casa ao carro e deste à cova por meus irmãos em Jesus Cristo que hajam obtido o foro de cidadãos pela lei de 13 de maio.

Isto prescrevo como prova de consideração a esta classe de cidadãos em reparação à falta de atenção que com eles se teve pelo que sofreram durante o estado de escravidão, e reverente homenagem à Grande Isabel Redentora, benemérita da Pátria e da Humanidade, que se imortalizou libertando-os.

Exijo mais, que meu corpo seja conduzido em carrocinha de última classe enterrado em sepultura rasa até poder ser exumado, e meus ossos colocados com os de meus pais, irmãos e parentes, no jazigo da Família Marques Lisboa.

Como homenagem à Marinha, minha dileta carreira, em que tive a fortuna de servir à minha Pátria e prestar algum serviço à humanidade, peço que sobre a pedra que cobrir minha sepultura se escreva: “Aqui já o Velho Marinheiro”. [2]

[1] Tamandaré – o Nélson brasileiro. Rio de Janeiro: Getúlio M. Costa Editora, 1939, p. 198.

[2] Fonte: www.marinha.mil.br/sites/default/files/testamento_tamandare.pdf

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José Lorêdo Filho

José Lorêdo Filho

Livreiro e editor da Livraria Resistência Cultural Editora, cavaleiro da Ordem Equestre do Santo Sepulcro de Jerusalém, sócio-correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP) e chanceler do Círculo Monárquico de São Luís.

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