Pinheiro Machado: o que aprender com a vida do poderoso “Condestável da República”

Quando participei da gravação de uma palestra sobre a história brasileira para a empresa de documentários Brasil Paralelo, mencionei que o emblemático político gaúcho José Gomes Pinheiro Machado (1851-1915) se comportava quase como um “gângster”, em suas articulações para desafiar a política do café-com-leite, eleger para a presidência o marechal Hermes da Fonseca (1855-1923) e derrotar as oligarquias estaduais para destruir a oposição ao militar. A palavra seria recebida com horror pelo autor do livro O senador acaba de morrer – A vida e o assassinato de um dos políticos mais importantes da história do Brasil, lançamento de 2018 e uma de minhas mais recentes leituras.

O livro é uma espécie de biografia romanceada e quase hagiográfica do senador que se tornou um dos homens mais poderosos, se não o mais poderoso, durante certa fase da República Velha. O autor é o escritor, advogado e cozinheiro José Antonio Pinheiro Machado, que, como o sobrenome sugere, é sobrinho-bisneto do personagem que ficou conhecido como o “Condestável da República” e é nome de rua no Rio de Janeiro.

Dificilmente o trabalho de José Antonio seria considerado uma referência bibliográfica densa sobre seu tio-bisavô; a proposta de sua obra é apelar ao lirismo, desenvolver uma série de analogias e aprofundamentos sobre assuntos laterais, como a vida de pessoas que simplesmente comentaram a trajetória de Pinheiro, tais como o escritor Millôr Fernandes (1923-2012). Millôr ocupa basicamente um capítulo inteiro com menções a historietas divertidas sobre seu caráter espirituoso, sem que tenha convivido um ano sequer com o biografado.

Há até capítulos em que o autor discorre longamente sobre culinária ou sobre vinhos. O próprio começo do texto é um relato de uma experiência pessoal, quando Jose Antonio, militante contrário ao regime militar dos anos 60 e 70, detido para interrogação, foi liberado devido à admiração do interrogador pelo seu antepassado ilustre.

Ainda assim, considerei a leitura algo poética uma experiência válida; alguns aspectos que para mim foram inéditos e algumas revelações documentadas tornam interessante a reconstrução de uma personalidade que é decisiva para compreendermos o Brasil. Sem que precisemos concordar com as declarações entusiasmadas de José Antonio e dos admiradores de Pinheiro Machado citados por ele, nem com sua abordagem que trata as principais críticas feitas ao tio-bisavô como expressões de ódio contra uma espécie de herói preocupado com o povo, o texto permite, em primeiro lugar, que possamos enxergar qualidades em alguém que representa quase tudo que sempre combatemos.

Acredito que cabe aos prudentes também a tarefa de compreender a complexidade e a humanidade dos personagens e procurar aprender algo com os adversários. Floriano Peixoto (1839-1895) foi um presidente militar autoritário, perseguidor implacável da divergência e, ainda durante a Questão Militar no Império, dizia que apenas uma ditadura militar poderia resolver os problemas do Brasil. Pinheiro Machado era um republicano histórico, aliado ao autoritarismo doutrinário mais bem-sucedido que o Brasil fabricou durante a República Velha, o Castilhismo, uma corrente política gaúcha alicerçada na figura de Júlio de Castilhos (1860-1903) que consistia em um desenvolvimento do Positivismo, crente na centralização do poder, avessa ao parlamentarismo, disposta a aplicar uma suposta racionalidade quase científica na condução da vida pública que redunda em ditadura e tirania. Juntos, na Revolução Federalista de 1893, florianistas e castilhistas, com apoio de Pinheiro Machado, atuaram na sangrenta guerra contra os monarquistas parlamentaristas de Gaspar Silveira Martins (1835-1901), os chamados “maragatos”, em um conflito com direito a degola de soldados vencidos dos dois lados.

Não obstante tudo isso, ao justamente criticá-los como representantes de muito do que houve de errado no substrato da cultura política brasileira, esquecemo-nos de que esses dois foram combatentes de guerra – Pinheiro Machado fora, ainda bem jovem, nada menos que um dos Voluntários da Pátria na Guerra do Paraguai. O livro revela também um político que, ao contrário dos adversários e inimigos que figuravam entre os principais oligarcas da época, se ocupou de travar mais contato com o Brasil profundo e conhecia os anseios e sofrimentos do povo.

Se aqueles de ideias políticas mais nobres e respeitáveis tivessem essa ocupação, algo pouco cogitado em tempos excessiva e superficialmente aristocráticos, talvez pudessem ter impedido que figuras como Pinheiro Machado e Getúlio Vargas (1882-1954), também egresso do Castilhismo e que, de forma similar, apostou no autoritarismo de DNA positivista contra o bacharelismo e o “oligarquismo” de retórica liberal do clube de fazendeiros e engravatados da República Velha, dominassem tão amplamente esse espaço e conquistassem esse público para uma forma sedutora de populismo antiliberal. Enquanto Rui Barbosa (1849-1923), o grande tribuno liberal contra as oligarquias, estava espezinhando a música popular brasileira, o samba, o corta jaca, como “manifestações selvagens”, Pinheiro Machado estava cortejando sambistas como João da Baiana (1887-1974). O sucesso de nomes como Pinheiro Machado serve para nos ensinar como costumamos errar na comunicação com o público.

José Antonio especula ainda, de acordo com alguns contemporâneos do trágico episódio de 1915, que a facada fatal dada em Pinheiro, em assassinato que figura na lista dos mais chamativos da história nacional, poderia ter tido por mandante Nilo Peçanha (1867-1924), que também foi presidente do Brasil e aderiu ao acordo entre as elites políticas para subsidiar o café (apesar de também ter sido florianista e apoiar a emissão de papel-moeda para acelerar o desenvolvimento industrial). Peçanha era inimigo mortal de Pinheiro, sobretudo desde que, não obstante ambos tenham apoiado Hermes da Fonseca, o político fluminense não gostou de uma intervenção de Machado para depor o vice-presidente (na época esses eram os termos) do Amazonas.

Discordo, naturalmente, da exaltação do autor ao suposto legalismo de Machado, fiel à Constituição de 1891, por ter sido contra o golpe do primeiro presidente brasileiro, Deodoro da Fonseca (1827-1892), para dissolver o Congresso, e por não ter querido participar de um atentado ao primeiro presidente civil, Prudente de Moraes (1841-1902), seu desafeto. Nada disso apaga seus aplausos efusivos ao pai de todos os golpes republicanos, o de 15 de novembro de 1889, que derrubou a monarquia, nem sua presença na orquestra da “Política das Salvações”. Machado conduzia as operações que, sob esse apelido, eram mobilizadas para derrubar à força as oligarquias regionais resistentes ao presidente Hermes; é um argumento razoável que a política da República Velha era um duelo clânico e não havia propriamente uma primorosa democracia para ser respeitada, mas isso não anula a natureza dos atos do senador gaúcho.

O “gângster” da República Velha, como o chamei outrora de passagem – esclareço que muito mais pelo método empregado e pela manifestação prática de sua influente atuação -, era uma personalidade magnética, sem dúvidas; entrementes, não podemos contá-lo entre nossos ícones, entre os personagens que admiraríamos. Ele foi, em verdade, como castilhista capaz de mobilizar amores e ódios, uma espécie de diminuto prenúncio de Getúlio Vargas. O que os espíritos liberais mais propriamente podem aprender conhecendo-lhe a biografia e as características é como combater o fascínio que figuras como ele são capazes de exercer, envidando esforços para olhar para o Brasil profundo, tratá-lo com carinho e respeito e também tentar levar até ele as nossas ideias.

Felizmente, liberais e conservadores vivem outro momento no Brasil, em que já estamos conseguindo estabelecer algum tipo de comunicação. Há muito em que avançar, mas já temos consciência de que precisamos trabalhar a contento para que caudilhos e líderes carismáticos com soluções centralizadoras não conquistem ascendência, praticamente sozinhos, junto à nossa gente brasileira.

Gostou desse artigo? Apoie o trabalho do Burke Instituto Conservador virando um assinante da nossa plataforma de cursos online.

As posições expressas em artigos por nossos colunistas, revelam, a priori, as suas próprias crenças e opiniões; e não necessariamente as opiniões e crenças do Burke Instituto Conservador. Para conhecer as nossas opiniões se atente aos editoriais e vídeos institucionais

Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Lucas Berlanza é carioca, editor dos sites “Sentinela Lacerdista” e “Boletim da Liberdade” e autor do livro “Guia Bibliográfico da Nova Direita – 39 livros para compreender o fenômeno brasileiro”.

Compartilhe

Compartilhar no facebook
Facebook
Compartilhar no twitter
Twitter
Compartilhar no whatsapp
WhatsApp
Compartilhar no email
Email

Comentários

Relacionados