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Rousseau entusiasta de Maomé: o islam como teologia política

No terceiro capítulo de A Nova Ciência da Política, o filósofo e cientista político germano-americano Eric Voeligen, na esteira do propósito da obra, faz uma análise do problema da representação no império romano. O que e a quem o imperador representa? A teologia “pagã” funcionava como teologia supernaturalis, mas necessária e imprescindivelmente também como teologia civilis. O destino da política estava diretamente atrelado ao culto devido aos deuses: se as coisas iam bem, era graças aos sacrifícios prestados e à sua proteção; se iam mal, era sinal que a adoração havia falhado de alguma maneira. Isto é, a funcionalidade da sociedade dependia diretamente da intervenção dos deuses no mundo e a expectativa das pessoas era que os deuses intervissem; fazer parte da sociedade em questão envolvia necessariamente a adoração dos mesmos deuses, já nas palavras de Rousseau “(…) seu governo não distinguia seus deuses de suas leis” (ROUSSEAU, 1989, p. 150).

No bojo da ascensão do cristianismo (também com a proposta de servir de teologia civil, de proteger melhor o império que os velhos deuses), contudo, uma “desdivinização” do mundo ocorreu. A realidade passou a estar irremediavelmente cindida. Santo Agostinho nomeou a cisão em “Cidade de Deus” ou Cidade Celeste e “Cidade dos Homens” ou Cidade Terrestre. O cristianismo pode até ser a religião de Estado, mas príncipe e pontífice são pessoas distintas e o tipo de religiosidade que opera essa divisão é, para Rousseau, “tão evidentemente mau que constitui perda de tempo o divertimento de demonstrá-lo” (ROUSSEAU, 1989, p. 154), visto que “tudo quanto rompe a unidade social não serve para nada” (ibidem). O critério que depreendemos é bastante simples: se incrementa a coesão social é bom (o próprio sumo bem), se não o faz, então é mau.

O chamado problema do “contratualismo” traz, à sua maneira, o mesmo problema à superfície do debate: um “contrato” humano calcado na política pode criar uma convivência harmoniosa perene? Rousseau acreditava que sim e, nessa sociedade, uma “teologia civil” se mostra indispensável, podendo haver um problema: o cristianismo pode ser uma pedra no sapato rumo à concretização da tal sociedade harmônica, visto que desdiviniza o mundo, minando a expectativa de uma ordem social terrena perfeita. Para o filósofo genebrino, o “cristianismo do Evangelho” cria maus soldados, despreza este mundo e esta vida e atrapalha a coesão social; ainda afirma que “uma sociedade de verdadeiros cristãos já não seria uma sociedade de homens” (ROUSSEAU, 1989, p. 155).

Grosso modo, um dos pontos axiais da obra de Eric Voegelin vai justamente na contramão dessa percepção rousseauniana: uma ciência política exclusivamente “positiva” é impossível pois o homem está irremediavelmente vinculado ao transcendental; há uma ordem suprema à qual a ordem social não pode ser dissociada e qualquer um que pretenda abordar o problema da representação sem tomar isso em conta enfrentará problemas.

Isso posto, salientamos que, enquanto o cristianismo está atinado a esta verdade diagnosticada por Eric Voegelin, visto que exorta que “a César o que é de César” (Mateus, 22:21) e que “no mundo tereis aflições” (João, 16:33), como já tivemos a oportunidade de apontar e como concorda Rousseau, o islamismo é um modelo funcional de como conjugar uma teologia política e uma teologia sobrenatural. A religião de Maomé nem de longe coloca para um teórico da coesão social perfeita os mesmos problemas colocados pelo cristianismo, conforme afirma Rousseau:

O culto sagrado permaneceu sempre ou veio a tornar-se independente do soberano e sem ligação necessária com o corpo do Estado, Maomé teve objetivos muito salutares; soube ligar muito bem seu sistema político e, enquanto a forma de seu governo subsistiu sob a direção dos califas que lhe sucederam, tal governo foi exatamente coeso e, por isso, bom (ROUSSEAU, 1989, p. 152, grifos nossos).

A despeito da convenção de se chamar islamismo, cristianismo e judaísmo de “religiões monoteístas” – dando a entender que as três mais se assemelham que se distanciam –, numa época em que o islam político cresce e sua natureza de cosmovisão é salientada, faz-se mister frisar que o aspecto político da religião de Maomé não é um aspecto marginal ou historicamente ocasional (como pode ser apontado para os casos de cristianismo ou judaísmo), mas sim algo constitutivo de sua natureza mesma e por isso digno da saudação de Jean-Jacques Rousseau (demarcando também um bom ponto de inflexão entre o islam e judaísmo e cristianismo).

Para corroborar nossa tese, vale aqui a exegese (de Salmir El Hayek e nossa) do talvez mais famoso trecho do Alcorão em tempos de terrorismo islâmico: 5ª surata, versículo 32: “Por isso, prescrevemos aos israelitas que quem matar uma pessoa, sem que esta tenha cometido homicídio ou semeado a corrupção na terra, será considerado como se tivesse assassinado toda a humanidade”. Não seria isto evidência que o islam prega a paz e rechaça o assassinato incondicionalmente? Na verdade não. Em retaliação a outro homicídio é lícito matar, mas igualmente o é matar aquele que semeia corrupção na terra. Considerando a literatura disponível, como podemos entender do que se trata?

A única separação reconhecida pelo islam é entre ele e o resto. Não à toa todo não-muçulmano é chamado de “kafir” (infiel que não professa o islam), o que não sem explicação faz com que em muitos países muçulmanos fieis de outras religiões sejam tratados como cidadãos de segunda classe. Se Jeová é amor (I João, 4:8), isto é, ama a todos incondicionalmente: hindus, muçulmanos, pecadores, ateus etc, Allah só ama aqueles que o amam de volta (diversos versículos atestam isso, entre eles destacamos 30:45 e 03:32). Logo, todos que não adoram Allah, “adeptos do Livro ou politeístas” (98:6, 3:110) semeiam a corrupção no mundo. Não pode surpreender, portanto, a prescrição de regras específicas sobre como dirigir o mundo de maneira que a corrupção não seja semeada: podendo incluir desde a eliminação sumária dos corruptores até orientações sobre como escovar os dentes.

Samir El Hayek, em comentário a sua tradução para o português brasileiro do Alcorão para o trecho que analisamos trata, inclusive, de “traição contra o Estado” quando se está a “espalhar a corrupção na terra”; relata também as quatro penalidades adequadas para os que pecam contra o Estado e contra Allah: “execução (cortar a cabeça), ‘crucificação’, aleijamento ou exílio” (Alcorão, Marsam Editora, p. 132n). El Hayek está apenas explicitando o que está implícito em toda a doutrina islâmica e foi objeto de elogio de Rousseau: há uma fórmula bastante específica e totalizante de dirigir a vida em sociedade neste mundo – e a jihad é apenas uma face dessa fórmula – que deve fazer das pessoas não apenas bons devotos, preocupados com o reino espiritual, mas também cidadãos subservientes a regras estatais bastante específicas.

 

*Rousseau elogia Maomé em dois momentos de O Contrato Social: implicitamente no capítulo 7, livro 2 e explicitamente no citado capítulo 8, livro 4.

 

Referências Bibliográficas:

Alcorão Sagrado. Tradução e notas de Samir El Hayek. São Paulo: Marsam Editora Jornalística, 1994.

GUNNY, Ahmad. Prophet Muhammad in French and English Literature: 1650 to the present. Leicestershire: ed. The Islamic Foundation, 2011.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. São Paulo: ed. Martins Fontes, 1989.

VOEGELIN, Eric. A Nova Ciência da Política. Brasília: ed. UnB, 1982.

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André Assi Barreto

André Assi Barreto

Bacharel, licenciado e mestre em filosofia pela Universidade de São Paulo. Licenciado em História. Professor de Filosofia e História das redes pública e privada da cidade de São Paulo. Pesquisador da área de Filosofia (Filosofia Moderna - Dercartes, Hume e Kant - e Filosofia Contemporânea - Eric Voegelin e Hannah Arendt) e aluno do professor Olavo de Carvalho. Trabalha, ainda, com a revisão de textos, assessoria editorial, tradução e palestras. Coautor de “Saul Alinsky e a anatomia do mal” (ed. Armada, 2018).

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