O Cristo no Deserto

No romance de Dostoiévski, O Idiota, há um momento em que um dos personagens, Hipólito, vê uma pintura de Cristo sendo descido da cruz e se pega contemplando-a por alguns minutos. A imagem prende a atenção de Hipólito e lhe provoca algumas reflexões não pela beleza com que os pintores costumam retratar o Cristo mesmo nos momentos de martírio e de agonia e devido a qual os espectadores costumam se admirar, mas pela indiferença, pelo vazio que aquela pintura retrata.

Nela, como percebe o próprio Hipólito, não há nenhum vestígio da beleza suprema da qual aquela própria pessoa retratada é a personificação, nem mesmo de uma beleza mais sutil que contrastasse levemente com o cenário da tragédia ao redor, transparecendo aos olhos de quem mirasse o quadro o vestígio indicando que havia ainda um chama suave de vida apesar da aparente totalidade de morte que a tentou extinguir. A imagem não transmite nada da natureza transcendente e divina da pessoa que, apesar das marcas de tortura e de morte, é ainda o próprio Deus encarnado.Nela há apenas um cadáver como de um homem qualquer. Um homem qualquer que apesar da beleza da mensagem que transmitia a todos ao seu redor, que apesar da inspiração que lhes despertava, que apesar da vontade de arrependimento,  perdão e santidade com que alimentava tantas almas, e que apesar da promessa de vida eterna que anunciava aos ouvintes, não pôde vencer a dona absoluta de todas as existências passadas, presentes e futuras: a morte. Ali retratado está o ponto final de toda esperança a que tantos acreditaram e se agarraram. Ao contemplar essa pintura, Hipólito imagina que a aparência de Cristo e a sensação que ela transmitia no momento da descida do Seu corpo morto da cruz devia ser precisamente aquela.

Hipólito se pergunta por fim se caso os Apóstolos e outros fiéis tivessem visto seu Messias naquele estado em que ele, Hipólito, via no momento, se ainda conseguiriam acreditar que Ele ressuscitaria.

Eu não sei se a referência que Dostoiévski usou para essa situação do livro veio de uma experiência que ele próprio vivenciara ao se deparar em algum momento da sua vida com uma pintura tão desoladora quanto a descrita no romance, não sei também sequer se a pintura em questão existe de fato ou se foi tudo fruto do esforço imaginativo do autor, mas eu tenho uma referência de pintura do Cristo cuja beleza imensa me comove precisamente pelas qualidades opostas que ela destaca: a feiúra, a sujeira, a humilhação, a desonra, a dignidade infinita infinitamente ferida. É a imagem de Cristo no Deserto, pintura de Ivan Kramskoi.

Apesar de outras pinturas que retratam algum momento do período de Cristo no deserto representarem-n’O em bom estado, bonito e limpo, essa de Ivan Kramskoi O retrata sujo, com os pés descalços feridos e imundos, as vestes puídas nas partes que roçam o chão árido, os braços apoiados sobre as pernas, a frente os dedos entrelaçados num forte aperto que faz ressaltar facilmente por sob a pele as veias das mãos devido à magreza e desnutrição. Desse aperto, como que consolando a si mesmo, ele parece tirar a motivação para continuar aguentando tudo aquilo.

E nesse estado mesmo, sentado sobre uma pedra em meio ao deserto, exposto ao calor e a luz que Lhe incide diretamente do Sol a pico e também irradiados das rochas ao redor, Nosso Senhor possui a barba e os cabelos desgrenhados, o rosto cadavérico, as olheiras fundas. E todo aquele vazio que Hipólito vira na imagem inteira do corpo cadavérico, aqui estava todo condensado no Seu olhar. Ao contemplar essa pintura, imagino que a aparência de Cristo no momento no deserto, expondo-Se voluntariamente a todo tipo de provação, devia ser precisamente essa.

Mas, diferente de Hipólito (que não era Cristão), os aspectos degradantes da imagem não alimentam em mim a desesperança, a sensação de derrota, de perda aparente. Ao contrário, eles fazem ressaltar a beleza da missão suprema pela qual Ele se entregou àquilo tudo por vontade própria, e me desperta não a desolação, mas a compaixão. Quando olho essa imagem, ainda que por apenas alguns minutos, me pego com a vontade imensa de estar ali ao Seu lado, compadecendo-Lhe as dores. Nesse breve momento, por alguns breves segundos, minha vontade se desprende de toda amarra que a deixa ainda prisioneira deste mundo e assume a decisão definitiva: eu quero largar tudo por Ele.

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