Os Dramas do Martírio

O martírio é, no o Cristianismo, caminho para a santidade. Foi por meio da recusa em negar Deus, seguida da plena aceitação dos castigos subseqüêntes, que a santidade brotou no mundo ao longo de dois milênios. Foi precisamente por meio do martírio que o próprio Cristianismo surgiu e se expandiu. Mas parece haver uma peculiaridade para a qual duas obras chamam a atenção. E é sobre ela que vou tentar falar aqui, não com ares de apologética leiga, mas como mera reflexão pessoal que se mostrou inevitável diante de um dado curioso.

O final do filme Silêncio demonstra um detalhe importante do Sermão da Montanha: quando Jesus Cristo manda oferecer a face esquerda a quem tinha batido na direita, é a face do seu próprio rosto, não a de uma outra pessoa. O martírio verdadeiro é o que se sofre na própria pele, não o que se aplica a um outro em nome de si mesmo. O próprio governante do Japão percebeu isso e, vendo que não adiantava nada torturar e matar os jesuítas, passou a torturar e matar inocentes em seu lugar. Aí então a situação mudou de perspectiva. Uma coisa é um cristão não renunciar a Cristo quando é a sua própria vida que está em jogo, outra é quando um terceiro está sendo torturado por ele. Essa é uma das principais revelações que o advento do Cristianismo contrastava com as religiões pré-Cristãs: enquanto nestas se sacrificava animais ou outras pessoas em nome das divindades, o Cristianismo demonstrou que a salvação está no seu próprio sacrifício, não no de outrem. E isto foi demonstrado diretamente pelo próprio Deus que se fazendo criatura na pessoa de Jesus Cristo não exigiu para si o sacrifício de um terceiro, mas sacrificou-se a si mesmo.

Quando o Inquisidor Inoue passou a torturar outros cristãos no lugar dos padres, nisto é que havia se transformado o cenário: aquelas pessoas não estavam mais sofrendo por Deus — muitas já haviam mesmo O renegado e ainda assim continuavam sendo torturadas —, estavam sofrendo por causa dos jesuítas. Então o martírio que cabia aos jesuítas nesse momento era num outro nível, num nível espiritual. As dores que afligiam os corpos dos primeiros jesuítas no Japão ao mesmo tempo que purificavam suas almas inverteram de sinal e passaram a afligir diretamente as almas desses últimos jesuítas enquanto lhe tranquilizavam a carne: eles tiveram que apostatar. Esse era o martírio que lhes cabia naquele momento, o martírio da alma, o sacrifício do espírito. A cena em que o padre jesuíta tomba no chão após pisar o ícone de Cristo, comprovando aos perseguidores japoneses a sua apostasia, pode muito bem ser entendida como o momento da sua morte. Essa foi a tortura lhe que foi imposta e assim foi efetuado o seu martírio. Ali ele morreu no espírito tal como tempos atrás os outros jesuítas haviam morrido na carne.

Mutatis mutandis, esse parece ser o mesmo drama que acometeu a personagem Sônia de Crime e Castigo quando, testemunhando a miséria vivida pela família, abre mão da própria honra para impedir que eles – pai, mãe e irmãos – sucumbissem de todo. Mesmo sendo uma menina jovem, sabia entretanto da gravidade tanto social quanto espiritual da prática a qual se entregara, mas preferia que os danos maiores e mesmo irreversíveis caíssem sobre si se com isso pudesse dar uma alento, ainda que pequeno, a quem ela amava. E mesmo quando o suicídio lhe parecia a saída mais fácil daquele sofrimento, escolheu a permanência neste mundo e o prolongamento do martírio para que a família não ficasse de todo abandonada e que a irmã mais nova não viesse a ser acometida pela mesma sorte.

O martírio de Sônia parece ser o mesmo tipo de martírio sofrido por aqueles jesuítas: tendo todo o potencial para a santidade, a provação pela qual ela teve que passar foi justamente a de abrir mão da própria pureza para salvar a família a que amava. E a partir de então, ter a salvação totalmente ancorada na promessa do perdão. Talvez esse seja um estágio de verdadeiro abandono à Providência; talvez seja realmente uma manifestação contraditória daquela livre escolha em perder a própria vida que resulta, paradoxalmente, em ganhá-la. Manifestação tão contraditória que faz Raskólnikov, mergulhado na raiva resultante da incompreensão do que testemunhava, perguntar indignado: “como pode essa baixeza viver em ti ao lado de outros sentimentos tão opostos, sentimentos sagrados?”

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