Imagem: Reprodução

Entre chineses, globalistas e trapalhões

O jornalista Jaime Spitzcovsky publicou na Folha de São Paulo um artigo intitulado “Legado de Deng Xiaoping assombra ‘antiglobalistas”, em que, ao menos a mim parece, as coisas estão um pouco fora de lugar. Faz-se necessário tentar repô-las em seus devidos termos, e é o que tentarei fazer a seguir.

Spitzcovsky parece ser mais um exemplo, entre os jornalistas e pensadores brasileiros, a confundir os conceitos de “globalismo” e “globalização”. Não poderia ser outra a razão para dizer que os “antiglobalistas” – rótulo com que ele identifica uma lista vasta de “apóstolos” de uma “onda populista na qual surfou o mandatário norte-americano” Donald Trump – são criaturas retrógradas que “remoem-se de medo do século XXI”.

Isso é típico: acusar todos os críticos da meta globalista de arcaísmo esclerosado é sinônimo de acreditar que o alvo deles, ao contrário, é a globalização. O conceito de “globalização” significa nada além da possibilidade social e material de interligação entre os diversos pontos do globo, facultando-se a intensificação das trocas econômicas e também, por que não, das contribuições culturais e intelectuais. Somente, de fato, radicais obtusos, como os nossos socialistas empedernidos, das esquerdas xenófobas de que falava Roberto Campos, embebidos em ódio inveterado contra o fantasioso “imperialismo americano”, poderiam ser contrários a essa dádiva dos tempos modernos.

Não apenas os socialistas, ortodoxos e heterodoxos; ao seu lado, é verdade, entram alguns saudosistas de estilos de vida agrários, idílicos, que lançam pedras intransigentes contra o mundo moderno e gostariam que toda a humanidade abandonasse o “espírito burguês” e se enclausurasse em organizações sociais perdidas de uma hipotética “era de ouro” – que nunca foi, a bem da verdade, como eles a idealizam, tal como eficazmente denunciado na obra de Mark Lilla sobre o pensar “reacionário”, A Mente Naufragada.

Entram também alguns intervencionistas e idólatras do Estado travestidos de antiglobalistas, que combinam em um mesmo pacote o ódio aos dois conceitos e facilitam a confusão feita em textos como o de Spitcovsky. Esta seria, aliás, uma crítica sensata a iniciativas como a de Steve Bannon, outrora estrategista-chefe do presidente Trump, de suscitar uma “onda nacionalista mundial” contra o globalismo: o problema é que, adotando-se apenas o critério da oposição ao globalismo para considerar todos parte da mesma “turma”, podem-se abrigar sob a mesma égide correntes políticas ou partidárias e lideranças que de fato voltam seus torpedos contra a globalização em si, defendem “democracias iliberais” ou vivem no colo do “eurasianismo” de Putin.

O que Spitzcovsky e a grande maioria dos intérpretes brasileiros da realidade internacional mais praticam, no entanto, é o contrário: simplificar a crítica ao globalismo e a defesa do patriotismo e do Estado-nação como automática adversidade à globalização. O autor parece, com efeito, considerar populista a declaração de Trump na Assembleia Geral da ONU de rejeição à “ideologia do globalismo” e de apreço pela “teoria do patriotismo”. Dedica todo o resto de seu texto a descrever as famosas reformas econômicas de Deng Xiaoping na China, que conduziram o país à posição de relevância econômica no mundo que adquiriu modernamente, a despeito de seguir capitaneado pela ditadura do Partido Comunista originado aos tempos do maoísmo.

Para Spitzcovsky, os “antiglobalistas” se sentem incomodados com a desidratação de uma fase histórica de prevalência dos europeus e a ascensão de países asiáticos, especialmente os chineses, fatos que seriam “traços indeléveis do século 21”, contra os quais poderiam “espernear, mas não podem mudar o rumo da história”. Como Ocidente e Europa são conceitos que se confundem, devendo o conceito de “Ocidente” tradicionalmente entendido às elaborações que foram dadas na Europa a suas matrizes formadoras, as declarações de Spitzcovsky dão margem ao puro e simples preconceito de ocidentais contra o próprio Ocidente. É como se o “antiglobalismo” fosse apenas o ressentimento dos ocidentais porque os justos e dignos chineses estão ganhando destaque (!!).

Ora, isso é uma simplificação grosseira dos fatos! A teoria do globalismo, em primeiro lugar, não é a tese conspiratória de que alienígenas reptilianos, forças demoníacas ou um clã secreto perfeitamente integrado detêm todo o controle do mundo e avançam, passo a passo, em um perfeito projeto para estabelecer um absurdo governo mundial e abolir os Estados-nações. Trata-se, isso sim, do encaminhamento ideológico-prático de teses e medidas que conduzem à cessão de autoridade a instituições supranacionais, de modo a esvaziar ao máximo possível a relevância da ideia de Estado-nação. O socialista fabiano H. G. Wells já defendia essa ideia em seu livro A Conspiração Aberta, de 1928. Até mesmo Hans Morgenthau, conhecido na área das Relações Internacionais por ser ícone da escola “realista”, idealizava a ideia de um Estado mundial. Esse direcionamento, de forma menos ostensiva, aparece também no pensamento do megainvestidor George Soros, para quem é indispensável que forças internacionais tenham maior controle sobre a economia para se sobrepor aos países – e, consequentemente, aos locais e indivíduos.

É evidentemente falso que não exista nenhuma corrente política disposta a submeter decisões que seriam mais adequadas no âmbito das jurisdições internas a burocracias supranacionais cada vez mais inchadas e dispostas a extrapolar suas mais justas dimensões, identificadas como baluartes de um cosmopolitismo “progressista” que ultrapassa todas as fronteiras do razoável. Sustentar o patriotismo contra o globalismo é tão-somente sustentar a naturalidade do sentimento de afeição pela própria cultura, pela “identidade histórica e a lealdade” que une as pessoas no “corpo político” (como diria Roger Scruton), e sustentar que, a despeito das interligações, das redes, de todos os intercâmbios globais que o mundo contemporâneo nos oferece, essas lealdades e distinções ainda são concretamente relevantes e que devem ser postos limites às estruturas supranacionais que declaradamente pretendem se sobrepor a elas.

A União Europeia poderia ser um núcleo harmônico de relacionamento entre as nações europeias, mas assumiu contornos de uma burocracia centralizadora que despertou reações nacionais. O “antiglobalismo” pode consistir simplesmente em constatar isso e desejar um piso no freio.

Não equivalem, como quer fazer parecer Spitzcovsky, a demonizar a China – nem tampouco, é claro, a desconhecer o fato de que Xi Jinping, seu atual “presidente”, disse com todas as letras que seu país tem o propósito de propagandear seu – nefasto e ditatorial – modelo de “socialismo de mercado”, algo a que todos devemos prestar atenção, a fim de não sermos no futuro pegos desprevenidos, à maneira de trapalhões, e demonstrarmos sempre com firmeza, a despeito da manutenção de trocas econômicas pragmáticas e imperativas com países como a China, a natureza dos nossos valores e da nossa organização social.

Gostou desse artigo? Apoie o trabalho do Burke Instituto Conservador virando um assinante da nossa plataforma de cursos online.

As posições expressas em artigos por nossos colunistas, revelam, a priori, as suas próprias crenças e opiniões; e não necessariamente as opiniões e crenças do Burke Instituto Conservador. Para conhecer as nossas opiniões se atente aos editoriais e vídeos institucionais

Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Lucas Berlanza é carioca, editor dos sites “Sentinela Lacerdista” e “Boletim da Liberdade” e autor do livro “Guia Bibliográfico da Nova Direita – 39 livros para compreender o fenômeno brasileiro”.

Compartilhe

Compartilhar no facebook
Facebook
Compartilhar no twitter
Twitter
Compartilhar no whatsapp
WhatsApp
Compartilhar no email
Email

Comentários

Relacionados