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O atrevimento do STF e a lição de Roberto Campos

Já estamos bastante exaustos de denunciar o atrevimento do STF. Pessoalmente, já empreguei, em referência a esses pseudomonarcas absolutos de toga, todos os insultos até agora viabilizados pela minha imaginação – e tenho certeza de que, como esses competentes aspirantes a ditadores não dão sinal de que cessarão seus privilégios e pretensões, o destino ainda oferecerá outras oportunidades de exercitar a criatividade que porventura ainda me restar para criar outros.

Desta vez, porém, optamos por retirar algum proveito dessa tragicomédia representada pelos inimigos do Brasil que ocupam aquele órgão para resgatar a lição de um importante autor brasileiro. Primeiro, ao contexto: os noticiários deram destaque na quarta-feira (14) às ações movidas pelo Partido Popular Socialista – a legenda de Roberto Freire – e pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transsexuais (senti falta de mais algumas letrinhas, de tantos exotismos que estão inventando agora) para cobrar indenizações do Estado por atos de discriminação enquanto o Estado não reconhece a homofobia como um crime específico.

A reclamação é que o Congresso se recusa a votar o projeto de lei para criminalizar a homofobia. O Congresso, não custa lembrar, reúne os representantes eleitos pela sociedade – a despeito de todas as disfunções do nosso sistema político, o conceito é esse -, cujas atribuições e prerrogativas lhe conferem liberdade para deliberar se e quando vai discutir determinado projeto, e se vai aprová-lo ou não. É mais uma esdrúxula situação em que um poder da República se comportará como se lhe coubesse a tarefa de tutor de outro, substituindo-lhe as obrigações de ofício.

O STF é atrevido, imoral, pedante, autoritário, nocivo e indigno do respeito público. Entretanto, é forçoso dizer, em certa dose em benefício dele, que o que o PPS e a Associação fizeram é reconhecido pela Constituição Federal de 1988. Chama-se “mandado de injunção”. Sabe quem já sabia que isso daria em titica? O mais icônico crítico desse texto obeso, repleto de superfluidades e entraves, que nós, brasileiros, nas últimas décadas chamamos de nossa carta magna.

Naturalmente, refiro-me ao grande liberal brasileiro mato-grossense Roberto Campos. No livro A Constituição contra o Brasil – Ensaios de Roberto Campos sobre a Constituinte e a Constituição de 1988, organizado pelo diplomata Paulo Roberto de Almeida, estão reunidos os principais textos publicados por Campos em sua coluna opinativa no final dos anos 80, durante e depois do processo constituinte brasileiro. Suas investidas contra as insanidades de seus colegas parlamentares contemporâneos são espirituosas, sarcásticas, tragicamente divertidas e rigorosamente atuais. É triste constatar o quanto suas lições permanecem aplicáveis aos dilemas presentes. Ainda que tenhamos avançado em relação a alguns aspectos, é de se lamentar a parcela dos comentários que poderiam muito bem ter sido escritos hoje.

O detalhe que interessa aqui está em artigo de 31 de julho de 1988, um dos melhores da coleção, intitulado A Constituição “promiscuísta”. O artigo denuncia a “favela jurídica” em que consiste a Constituição, constrangendo os três poderes a viver em “desconfortável ‘promiscuidade’”. Roberto Campos dá mais destaque ao excesso de atividades corriqueiras do Poder Executivo que dependem de aprovação do Legislativo. No entanto, em um parágrafo, ele dá a chave profética para o que ora se passa:

“Mas não é só o Congresso que invade promiscuamente a seara do Executivo. O Judiciário é convidado para participar dessa partouse. É que se criaram as figuras do ‘mandado de injunção’ e da ‘inconstitucionalidade por omissão’. Através de uma ou outra dessas figuras, o cidadão comum poderá, na falta de norma regulamentativa, pleitear no Judiciário os ‘direitos’, liberdades e prerrogativas constitucionais. O Judiciário deixará assim de ser o intérprete e executor das normas para ser o ‘feitor’ das normas, confundindo-se a função judiciária com a legislativa”.

Senhoras e senhores, já estava tudo, absolutamente tudo, dito aí. Quase 31 anos depois, as consequências são drasticamente sentidas, apenas com o agravante de provavelmente termos a mais nefasta turma do Supremo já vista, com a maioria dos seus quadros empossados durante a era lulopetista – e os que vieram dos governos anteriores não são de estirpe nada melhor.

O tema é o que menos importa. Não concordo em criar nenhum dispositivo a mais para proteger homossexuais, não vejo sentido em uma nova lei de “criminalização da homofobia” e tenho, sim, receio dos usos absurdos que podem ser feitos de projetos como esse contra direitos sagrados como a liberdade de expressão – afinal, quando se recorre ao artifício do “discurso de ódio” como argumento para criminalizar o que quer que seja, abrem-se portas para a total vagueza de critérios em sua aplicação.

Mesmo assim, o mecanismo já é o problema por si só. A lei tem que ser feita pelos representantes eleitos da sociedade. O STF precisa ser detido.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Lucas Berlanza é carioca, editor dos sites “Sentinela Lacerdista” e “Boletim da Liberdade” e autor do livro “Guia Bibliográfico da Nova Direita – 39 livros para compreender o fenômeno brasileiro”.

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