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O problema da definição – como a política de cotas PODERIA colapsar

Em janeiro de 2014 escrevi um texto chamado “O problema da definição. Como a política de cotas poderia colapsar”, cuja profecia estava correta em sua essência, mas falhou devido a minha pouca fé na loucura humana com motivações ideológicas.

Segue o texto, com comentários novos e frescos logo na sequência:

“Também circulou por esses dias na internet um vídeo de um sujeitinho muito tosco (custei a acreditar que a história do vídeo era real) chamado Craig Cobb e tido como “supremacista branco”, onde o próprio está num programa de TV em que, após ser submetido a um teste de DNA, descobre que tem uma porcentagem razoável de ascendência africana, jogando sua “branquitude” pura por água abaixo:

 

A despeito da imensa estupidez do indivíduo, pensemos na seguinte conclusão, perfeitamente legítima e razoável: na medida em que Craig Cobb possui em torno de 20% de ascendência africana, pode ser considerado um “afrodescendente”, certo? O depoimento genético é ainda mais firme que uma mera impressão visual ou uma declaração subjetiva. Ou pelo menos deveria ser assim.

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Richard Dawkins em The Ancestor’s Tale afirma uma obviedade: para um visitante alienígena não há diferença étnica visível entre Colin Powell (“afrodescendente”) e George Bush (“caucasiano”). Jogando areia no moinho dos racialistas que afirmam que é tudo uma questão de fenótipo e não de genótipo.

 

Enquanto certamente um afrodescendente, Craig Cobb poderia se beneficiar das políticas sociais e de ações afirmativas para negros?

Se não, qual seria a justificativa OBJETIVA para tanto? É afrodescendente e isso é um fato objetivamente atestado.

Se sim, por que simplesmente TODOS não podem se declarar afrodescendentes e se beneficiar das ações afirmativas? O percentual da população com 0,0% de ascendência africana deve ser mínimo; no Brasil, talvez, nulo (a composição étnica oferecida pela wikipédia indica 50,7% de negros e pardos, ou seja, afrodescendentes. Considerando as origens brasileiras e o caso Cobb, certamente a metade dos 47% de brancos “restantes” poderiam se declarar afrodescendentes de maneira legítima).

E, na verdade, a coisa é ainda pior: se tudo é uma questão de se DECLARAR afrodescendente, sob quais bases (objetivas) seria rejeitada uma declaração em massa de afrodescendência? Qual a definição objetiva de “afrodescendência”? Colin Powell se encaixa nela? Obama? Os “mulatos” e “pardos”?

Como acredito que todas essas políticas são criadas com o exato propósito de falhar, pois seus proponentes são especialistas na velha estratégia política de fomentar o caos e a desordem de maneira que só o aumento de poder na mão deles próprios será capaz de sanar o problema. Após anos de suas políticas, os problemas se mantêm, só que muito mais graves que antes e as soluções são, é claro: mais Estado e o poder nas mãos dos “gênios” recém-saídos dos departamentos de Humanas. Como afirma Thomas Sowell, exceto para exceções que confirmam a regra, um sujeito que recebe uma péssima educação a vida inteira, invariavelmente fracassará numa universidade de elite.”

Escrevi o texto acima em 2014, afirmando que cedo ou tarde a política de cotas colapsaria e, com o tempo, encontraria seu fim (ou seria convertida em definitivo em cotas sociais, algo bem mais objetivo). Meu argumento era simples e se mostrou parcialmente correto: as pessoas AUTODECLARAM seu pertencimento a determinada raça e então se beneficiam de cotas raciais. Como autodeclaração é, por definição, subjetiva, pessoas não-negras poderiam se declarar negras e se beneficiar (veja um exemplo recente aqui e o justiçamento esquerdista entrando em ação); assim que muita gente percebesse isso, todos se autodeclarariam negros (algo não completamente errôneo considerando o grau de miscigenação do brasileiro comum) e fariam a ideia de cotas perder sentido e simplesmente colapsar, pois o crescente número de autodeclarados variaria o coeficiente da nota de cotistas para cima, ficando pareado ao de “ampla concorrência” e removendo a vantagem de ser cotista.

Estava implícito no meu raciocínio que a política de cotas colapsaria porque o Estado não ousaria instituir nenhuma espécie de “tribunal racial” para conferir se os autodeclarados negros eram “de fato” negros ou não. Nesse aspecto, minha previsão se mostrou falha. Os burocratas já montaram até uma tabelinha lombrosiana para avaliar tamanho do crânio, nariz, lábios, dentes, tipo de cabelo etc. etc para medir a negritude de cotistas:

 

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Como podem ver, a arrogância das políticas progressistas e o ódio de justiceiros sociais nunca deve ser subestimado. A USP já instituiu sua política de cotas, portanto, é questão de tempo para a maior universidade do país passar a sofrer do mesmo. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul já capturou mais de 240 “fraudadores” (não são e não podem ser enquadrados como tal, quem leva os casos aos tribunais retoma suas vagas) de vagas destinadas a cotistas.

O problema também já chegou a concursos públicos que instituíram as cotas raciais como política afirmativa:

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O dilema que postei em 2014 segue vívido, o que eu – e toda pessoa de bom senso – não poderia imaginar, é que a “solução” para o dilema seria ainda mais à esquerda e ainda mais radical. Ao mesmo tempo que autointitulados progressistas defendem a desconstrução do sexo humano, dizendo que se trata de pura construção social, são obrigados a estabelecer rígidos e objetivos critérios de avaliação racial, na esteira do que o século XX produziu de pior no quesito (e são os mesmos que consideram um sacrilégio a mera menção a correlação entre QI e raça).

A única objeção que encontrei a respeito de tudo isso é que não se trata de genótipo – até mesmo porque caso se tratasse, no Brasil, praticamente todos teriam direito a cotas e a política não faria sentido – mas de fenótipo, isto é, de “parecer negro” (ver imagem de Colin Powell acima) e, portanto, sofrer todos os males sociais do racismo. Ou seja, a objeção dependeria amplamente da narrativa de que o Brasil é um país racista, que vivemos na própria África do Sul do Apartheid. O que deixa diminui o apelo à “compensação histórica”, pouco importando o lastro genético que conecta o indivíduo a eventuais antepassados vitimados pela escravidão, mas sim a aparência dos indivíduos e as supostas consequências sociais vivenciadas pelos que têm essa experiência.

Essa objeção, evidentemente, não supera, por exemplo, o dilema econômico: um negro rico sofre as mesmas consequências sociais que um negro pobre, se fazendo merecedor da ação afirmativa com base na sua pele apenas? E mais: um negro rico é mais merecedor da ação afirmativa que um branco pobre (o Brasil é um país vastamente pobre, como a esquerda não nos deixa esquecer). E, na verdade, não supera nem mesmo a minha objeção primordial à política de cotas: como medir o sofrimento com o racismo que supostamente grassa livre pela sociedade brasileira para saber quem é merecedor e quem não é? Como medir o grau de negritude fenotípica de um pleiteante a cotas com objetividade e justiça? Todas essas armadilhas foram pensadas pelos arquitetos das políticas de cotas: o único meio de fugir disso é acatar à autodeclaração de candidatos e cada um se autodeclara o que bem entender, C.Q.D. Voltamos ao princípio.

 

Adendo:

Estourou na mídia americana em 2015 o curioso caso de Rachel Dolezal, uma professora e militante do movimento negro que até então era considerada ela própria uma negra, mas cujos pais resolveram revelar o verdadeiro genótipo da mulher. Segue a foto do antes e depois de Dolezal:

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De certa forma meu texto inicial de 2014 alertava que esse tipo de histeria se instalaria muito em breve. Na medida em que SENTIMENTOS passaram a ser o critério absoluto para questões como gênero e raça, o que impede qualquer um de se declarar membro da raça/gênero que bem desejar? Uma gorda parcela de cientistas sociais fez crescer essa bobajada pseudocientífica, o que se somou a uma longa marcha militante, particularmente da beatiful people – e também saída dos escritórios de “cientistas” sociais, para convencer a sociedade que no fundo no fundo todos nós somos racistas e preconceituosos e que devemos respeitar todo e qualquer sentimento das ditas minorias, inclusive sentimentos que firam a lógica, a razão, a física e a biologia.

No Brasil, a discussão sobre cotas em universidades já está ultrapassada, as discussões hoje circulam muito mais em torno da hipótese da existência de cotas para praticamente todo e qualquer cargo público, o que implica a criação de um possível caos jurídico sem precedente. Se a exigência é por autodeclaração de pertencimento à raça X ou Y, quem vai contraprovar a autodeclaração (o que já destrói a própria noção de autodeclaração, se o critério for esse, cada um é livre para se autodeclarar o que bem entender) e como?

Conforme venho afirmando, isso é só a ponta do iceberg. Caso as coisas eventualmente melhorem (algo que não apostaria muitas fichas), ainda vão piorar bastante. Os casos dos chamados “justiçamentos sociais” estão apenas começando a emergir do mundo universitário para a realidade cotidiana. Como disse G.K. Chesterton, chegará um dia em que precisaremos provar às pessoas que a grama é verde. Mais uma vez temos evidência que esse dia chegou.

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As posições expressas em artigos por nossos colunistas, revelam, a priori, as suas próprias crenças e opiniões; e não necessariamente as opiniões e crenças do Burke Instituto Conservador. Para conhecer as nossas opiniões se atente aos editoriais e vídeos institucionais

André Assi Barreto

André Assi Barreto

Bacharel, licenciado e mestre em filosofia pela Universidade de São Paulo. Licenciado em História. Professor de Filosofia e História das redes pública e privada da cidade de São Paulo. Pesquisador da área de Filosofia (Filosofia Moderna - Dercartes, Hume e Kant - e Filosofia Contemporânea - Eric Voegelin e Hannah Arendt) e aluno do professor Olavo de Carvalho. Trabalha, ainda, com a revisão de textos, assessoria editorial, tradução e palestras. Coautor de “Saul Alinsky e a anatomia do mal” (ed. Armada, 2018).

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