O amor e a política II

O amor e a política II

Enquanto o amor é um ato civilizacional, a política é a barbárie institucionalizada. O amor é “fim em si mesmo”, ao passo que a política é “meio para”. O ato de amar é inegociável, em contrapartida a política não tarda em mercantilizar. Se o amor não se confunde com a paixão, a política facilmente se funde com a emoção. Aquele que se entrega ao amor não fica entregue à política.

Se é belo afirmar que o amor não tem limites, uma política desmedida é péssima por natureza. Aliás, é extremamente curioso como as palavras “amor” e “política” provocam sensações imediatas no interlocutor: da primeira não se espera algo diferente de um bem inestimável nas relações humanas; já quanto a segunda, é absolutamente normal que despontem diversas impressões que oscilam entre percepções que a classificam como algo bom, ruim, necessário ou desprezível. Portanto, não é exagero algum afirmar que o amor e a política apresentam essências distintas: uma é inerentemente sublime e a outra é ordinária. Nem é preciso dizer qual delas se enquadra nos atributos mencionados, pois mesmo o apreciador mais fervoroso da política sabe que sua preferência inebriante não passa de algo indigno perto do que o amor representa na vida humana.

O assombro e a felicidade que invadem o coração daquele que ama não tem a menor possibilidade de se equiparar ao entusiasmo daquele que vivencia a política. O amor é celestial, a política é terrena. A devoção do ato de amar vincula as almas para a eternidade, enquanto a idolatria política revela uma triste dependência mesquinha por aquilo que é efêmero.

O amor sempre inspira, mas a política só transpira. A beleza e o amor não precisam de contratos para selar sua união. Já a política é uma ilustre decrépita que não consegue embelezar-se: por mais que tente mostrar atrativos que busquem o êxtase, não passa de um ardil para seduzir os indivíduos. Caso analogias contundentes ainda fossem permitidas, poderia se dizer que um homem travestido de mulher não deixa de ser homem. Ou seja, a suposta “beleza” da política nunca pode se equiparar a verdadeira beleza do amor.

Em uma época mentalmente entorpecida, em que a racionalidade foi suspensa e os instintos são vistos como fármacos para curar o torpor de vidas sem significados profundos, não surpreende que sejam travados mais debates sobre a política do que reflexões sobre o amor. Com a perda de uma estética que possa ofertar um conceito de beleza, é natural que a simples perspectiva que busque resgatar ponderações razoáveis sobre a importância do amor seja vista como bastante deslocada no tempo. Se a política se apoderou da vida, como pensar em um ideal romântico que busque o amor sem que as disputas sociais entrem no cenário da intimidade? Ora, no mundo moderno, a tirania da política preenche o vazio deixado pela falta de amor. Vidas desprovidas de laços de união que possam constituir uma família ou estabelecer vínculos duradouros, frequentemente encontram na política a bengala necessária para se sentirem vivos em um mundo de mortos.

Como a política é pragmática, instintiva e rigorosamente passageira, quanto mais esta ocupa o espaço público e privado, menores são as preocupações com o que é belo. E, consequentemente, mais obsoleto se transforma o amor, afinal, não há amor sem beleza. Em “tempos líquidos”, em que “nada é feito para durar”, conforme disse Zygmunt Bauman, parece ser uma consequência lógica que a política, dado seu caráter fugaz, tenha tomado o espaço do lirismo e enlevo que as derivações do amor poderiam sugerir nas vidas humanas. Basta acompanhar um pouco daquilo que é produzido pelos principais veículos de comunicação para constatar que a ideia de amor é um objeto desconhecido para aqueles que acreditam no monopólio da política sobre as vidas humanas. Se tudo deve ser breve, não se pode esperar qualquer aproximação com a imortalidade do amor.

Recentemente, um amigo próximo me relatou que estava conhecendo uma moça. E que nos primeiros contatos a paixão tomou conta de seu coração. Exageradamente e com certa dose do bom humor que atiça indivíduos encantados com a possibilidade de encontrar-se em “estado de graça”, ele declarou que poderia ter achado o amor de sua vida. Adianto que sua ilusão se encontrava em um contexto peculiar: ele havia passado por inúmeros relacionamentos conturbados que afetaram seu emocional. Mulheres que não se mostravam muito bem ajustadas, que estavam desalinhadas com o bondoso coração de meu amigo ou que se mostravam excessivamente egoístas e possessivas inundaram suas relações sentimentais. O resultado disso foi que diante de sucessivos relacionamentos que naufragaram, ele sentia-se descrente no amor. Apesar de não ser daqueles sujeitos que vivencia a política, ele conhece muito bem o mundo dos problemas públicos que o circunda. E tem uma visão de mundo.

Enfim, quando conheceu a moça, no auge do encanto, descobriu um detalhe que o fez arregalar os olhos: ela era uma progressista ferrenha, uma árdua defensora do feminismo e uma militante do esquerdismo. Exatamente o oposto de suas visões políticas. Enquanto conversavam sobre as vidas privadas, gostos e preferências individuais, tudo fluía da melhor forma possível. No momento em que ele descobriu essa peculiaridade política, disse que ficou muito assustado, afinal, como poderia se relacionar com alguém com valores públicos opostos? E a moça, igualmente curiosa com essa situação, não sabia como estava apaixonada por alguém que havia votado em Jair Bolsonaro e era simpatizante do conservadorismo. E acrescentou em um tom tragicômico: “Como alguém tão inteligente pode ter votado nesse genocida? Como posso estar gostando de alguém assim?”. E foi desta forma que o início de uma afinidade anunciava seu fim.

Antes disso, algumas tentativas foram levadas adiante. Em um dos encontros, ambos resolveram expor suas posições políticas prometendo certa trégua após tal nudez “ideológica”. Afinal, aquele que não compreende que a vida não pode ser resumida a um único interesse, é alguém que desconhece a riqueza do manancial da existência humana. Por exemplo, um monomaníaco político, idiotizado por uma linha de raciocínio e que vislumbra em cada oportunidade de diálogo uma forma de pregação “ideológica”, está fadado a ser um triste títere de seu político de estimação sem o encanto e status que o político original possui. Ou seja, sem glamour, transforma a sua vida em uma vivência parasitária de uma aparição fantasmagórica política, que habita seu imaginário. Em suma, vive uma vida que não é sua com a doce ilusão de que todos deveriam pensar como o líder carismático de sua preferência.

Enquanto meu amigo só havia votado em Bolsonaro, sua “amiga colorida” endeusava incessantemente o esquerdismo, notadamente nas figuras de Lula, Dilma, Haddad, Manuela D’Ávila e companhia limitada. Segundo meu estimado “camarada”, mesmo que ele tentasse exaustivamente provocar assuntos dos mais variados, que fugissem das questões políticas, invariavelmente seu affair fazia questão de politizar tudo que via pela frente. Como no progressismo tudo pode ser interpretado como uma relação de opressão não faltaram momentos para o desenvolvimento de pautas nesse sentido. Tudo poderia ser machismo, racismo, homofobia, discriminação de minorias, discurso de ódio ou qualquer coisa semelhante que tanto sacia a mente da nova esquerda. E se as mulheres vivem em uma sociedade “patriarcal” em que homens constantemente abusam de seus privilégios, como compreender os limites de um galanteio ou de uma investida conquistadora que possa compartilhar de um beijo sem que isso represente um abuso sexual ou até mesmo estupro? E tal sentimento de perplexidade, agregada a inúmeras dúvidas sobre como proceder com a relação, foi tomando conta do polo masculino da “relação”.

Mas existiu um outro aspecto que chamou ainda mais a atenção de meu simpático e cordial amigo. Sempre que sua possível amada iniciava um “discurso” sobre os direitos das mulheres, invariavelmente ela se manifestava na primeira pessoa do plural. Ou seja, “nós mulheres, isso”, “nós mulheres, aquilo” e “nós mulheres, tudo”. Apesar de ser questionada sobre isso, visto que é uma mulher individual e não um coletivo do PSOL em campanha para ser eleito como vereador de alguma cidade, ela sempre disse que era muito solidária a todos os dramas que incomodam as mulheres e que era impossível não pensar como um corpo social feminino coeso. Nem é preciso dizer que de nada adiantou meu amigo ter dito que existem mulheres que não comungam das mesmas ideias políticas dela, o que desfaria o passe de mágica do “nós mulheres”, pois contra isso havia um remédio: “são mulheres dominadas mentalmente pelo machismo”. Algo como mulheres sem consciência, irracionais e que precisam das luzes do esquerdismo para refletirem adequadamente. Claro! O feminismo só serve para as mulheres engajadas…

Para quem quer dar uma chance ao amor, a política não é o melhor caminho. Sem surpresas, a curtíssima convivência dos “enamorados” naufragou sem glória alguma. Nos últimos tempos, cada vez mais os indivíduos devem carregar identificações sociais que exponham suas visões políticas para atrair ou afugentar possíveis relações sociais mais profundas, como no caso de um interesse amoroso com vistas a um namoro. Caso contrário, pode haver grande decepção. Claro que os “indiferentes” políticos gozam de uma maior vantagem, pois podem se adaptar as preferências de polos opostos ou até mesmo encontrar outros “indiferentes ideológicos”. Mas o fato é que a fragilização do amor é diretamente proporcional ao totalitarismo da política. Quanto mais espaços a política ocupa no mundo da vida, menor é o ambiente dominado pelo amor. Quando a política domina uma relação amorosa, o amor é um mero reboque conceitual.

Sem desmerecer a área da política, visto que, por diversas vezes ela expressa valores individuais sobre a compreensão das relações estabelecidas no espaço público, o que pode ser um fator que une ou desagrega indivíduos, o fato é que a politização de uma relação fragmenta o elo racional e sentimental que pode unir as pessoas. Em um mundo excessivamente egoísta, em que a satisfação pessoal é o foco de existência e no qual tudo é extremamente passageiro, a possível eternidade do amor mostra-se démodé, ao passo que o pragmatismo político está absolutamente enquadrado dentro dessa moldura cultural.

Bauman, ao falar sobre o amor na contemporaneidade, foi bastante perspicaz ao afirmar que “se levarmos em conta que amar outra pessoa não é amar o que projetamos nela e sim a sua humanidade e singularidades, não será difícil compreender que o amor é um desafio nos tempos de modernidade líquida”. Ora, se a política é um jogo de projeção daquilo que se deseja para uma sociedade, e não uma aceitação passiva e caridosa das preferências e particularidades alheias, e se as agendas “ideológicas” controlam as relações privadas, resta impossível amar as especificidades do par, afinal, o “outro” sempre estará idealizando que a sua visão política seja a base dominadora da relação. Em uma época marcada pela tentativa incessante de satisfação individual e pela eterna fantasia do encontro com uma “perfeição” que seja um reflexo exclusivo de devaneios egocêntricos, qualquer ideia de amor compartilhado soa ultrapassado.

A veneração por políticos, ideologias, partidos ou teorias impede a veneração por resquícios do sagrado na vida humana. A grande varanda do amor, construída de frente para a graça, para a beleza e para a perfeição, em hipótese alguma pode ser confundida com a basculante da política. Quem julga que é possível vislumbrar o universo existencial a sua volta pela fresta de uma pequenina janela, é incapaz de ver a imensidão dos traços sublimes que podem guiar a busca por um significado profundo nas relações humanas. O ser embebido da política, não o animal político de Aristóteles, é um flagelo humano que deseja escravizar todos para seu deleite intelectual. Incapaz de separar o público do privado, ele também é incapaz de amar incondicionalmente. Adestrado politicamente, o viciado político quer domar o amor pelas rédeas da ideologia. Para esse servo de profecias utópicas, o único amor possível é aquele que está devidamente harmonizado com a órbita da política. Para os ativistas contemporâneos, o amor engajado é a única distinção que merece destaque no espírito humano.

Por mais que a política seja importante para a definição de princípios sociais caros ao tipo de sociedade que construímos, nenhuma pessoa racional escolhe o amor de sua vida com base em um sentimento político. Aliás, nenhuma pessoa razoável ajusta sua vida pela variabilidade de emoções políticas. O carente por amor busca a salvação para uma vida de insuficiências. O carente político busca a perversão para uma vida de deficiências. Quem politiza, não ama. Quem ama, não politiza. O amor é simples. A política é complexa.

Creio ser muito difícil o florescimento de uma relação amorosa quando visões políticas antagônicas inundam o imaginário dos amantes. O choque de valores pode ser crucial na manutenção de um convívio pacífico. Se conservadores estão mais afeitos à estabilidade, o que os aproxima da preservação daquilo que importa, progressistas não veem mal algum na instabilidade que oscila conforme os humores, o que os liga umbilicalmente com o devastador espírito revolucionário.

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João L. Roschildt

João L. Roschildt

Professor do curso de Direito do Centro Universitário da Região da Campanha (Urcamp). Além de articulista e ensaísta, é autor de “A grama era verde”. Site: www.joaoroschildt.com.br

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