Não sejais gado! Sem preconceito não há liberdade

“Nossa, mamãe, como essas casas são feias!”

Como você pode imaginar, essa sentença partiu de uma criança, no auge de seus 4 anos de idade. Mais especificamente, da minha segunda filha Helena. O contexto era o seguinte: estávamos indo visitar minha sogra, em Sabará/MG, e passamos por um caminho que cruza uma pequena favela, com casas beirando a estrada. Como toda favela, as casas não tinham reboco, muito menos pintura, e foi exatamente isso que chamou a atenção da Helena: “os tijolos estão todos aparecendo”. Por impulso, eu e a mãe dela rapidamente a repreendemos, mesmo que não tivesse como aquilo chegar aos ouvidos de ninguém além de nós mesmos dentro do carro: “não se pode falar assim, minha filha”. Que pecado o nosso.

Uma das primeiras habilidades desenvolvidas por uma criança é a capacidade de discernir o belo do feio. Existem pesquisas que demonstraram reações de apreciação e de repulsa em bebês recém nascidos à pessoas belas e feias, respectivamente. Outro exemplo: quando li para elas uma pequena fábula chinesa intitulada “a moça que queria comer no leste e dormir no oeste”. A história é de uma menina que tem diante de si dois pretendentes a escolher para se casar: um – que morava no oeste – era bonito, porém pobre; o outro – que morava no leste – era feio, porém muito rico. Sem conseguir resolver o dilema, a moça apresenta ao pai sua “solução”: quer comer no leste (com o homem rico) e dormir no oeste (com o homem bonito). As duas riram muito e acharam a ideia da moça absolutamente genial. Então eu quis saber delas: se fosse com vocês, o que vocês escolheriam? Depois de refletir por 5 segundos, ambas responderam categoricamente: escolheria o pobre. Por que? Perguntei eu. Ora, porque ele é bonito. Muitos podem entender a resposta como resultado do fato de que as crianças não ligam para dinheiro. Eu acredito, contudo, que não seja esse o caso. Exatamente por ser criança, ela não tem um arcabouço de experiências e de hierarquização de bens que faça com que ela não ligue para algo em particular. Tendo a crer que o real motivo não seja um não ligar para dinheiro, mas sim de entender que a beleza é importante.

Preconceito é uma daquelas palavras que, de tanto serem mal empregadas, acabaram por perder totalmente o vínculo com seu significado original. Etimologicamente, a palavra preconceito denota um conceito prévio (pré conceito), normalmente admitido de forma irrefletida, que o indivíduo tomará como fundamento primeiro para desenvolver suas opiniões e convicções posteriormente. No entanto, não espere encontrar uma definição imparcial dessa palavra em qualquer dicionário, pelo menos nos atuais. Todos temos preconceitos, inclusive quem odeia todo e qualquer preconceito. E só a título de informação, é a esse significado que faço referência nesse texto, que é o real significado da palavra.

E o “preconceito da beleza”, a capacidade de discriminar entre o que é belo e o que é feio é um dos movimentos mais naturais e espontâneos que existem. Dentre outras coisas, ele é a base para outros níveis de discernimento: entre o bom e o mal; e entre o justo e o injusto. Não por acaso, classicamente, as histórias sempre nos apresentaram vilões feios, e quando surge uma narrativa onde o belo e o mau coincidem na mesma pessoa, surge em nós um sentimento de indignação profunda.

Em sua obra “Em Defesa do Preconceito”, Theodore Dalrymple nos apresenta um sistemático ataque aos principais argumentos pós-modernos a favor de uma vida e uma convivência social sem preconceitos. No primeiro capítulo, ele refuta o argumento principal: “O preconceito é um equívoco, portanto, a sua inexistência é um acerto”. Isso é um tabu, um verdadeiro dogma: quanto menos preconceito alguém tiver, melhor é essa pessoa. O caminho para elevação moral passa (quase exclusivamente) pela capacidade de se desfazer de seus preconceitos. Tal conclusão se deve ao fato de atualmente a palavra “preconceito” estar quase indissociavelmente ligada à ideia de “raça”. Nas palavras do autor:

“O preconceito arquetípico é aquele que se relaciona com a noção de raça. De fato, os termos ‘raça’ e ‘preconceito’ caminham de mãos dadas da mesma forma que as palavras ‘Mercedes’ e ‘Benz’, ou ‘Dolce’ e ‘Gabbana’. (…) Isso contribuiu para que se criasse uma atmosfera moral na qual a simples enunciação de sentimentos virtuosos (e de abjuração da crueldade) fosse confundida (ou tomada como) a virtude em si. Portanto, tudo bem se alguém for um crápula inescrupuloso, pois desde que expresse as palavras certas, isto é, demonstre não ter preconceito, tudo estará bem.”

Mais adiante, Dalrymple identifica o fator interpretativo chave de todo o discurso antipreconceito de nosso tempo: o nazismo. O método é simples: caracterize o nazismo como um movimento primordialmente preconceituoso e racista. Não importam suas vinculações políticas, suas alianças originais, o conteúdo ideológico do discursos de seus agentes, nem mesmo as ações concretas que estes realizaram uma vez estando no poder. A única coisa que importa é mostrar como Hitler, representante máximo do Nazismo, era um sujeito movido pelo ódio, mas não qualquer tipo de ódio, um ódio motivado quase que unicamente pelo preconceito racial (nem precisa enfatizar que o alvo principal dele eram os judeus, afinal, não interessa muito à esquerda a defesa dos judeus). Repita isso por algumas décadas e chegamos aos século XXI, onde um dos maiores medos é o de ser reconhecido como alguém que carrega algum tipo de preconceito, pois uma vez que você o demonstre, é questão de tempo até ser rotulado como racista e depois, nazista/fascista. E veja bem (preciso repetir), quando digo preconceito estou me referindo ao que mais comumente se refere como “ter opinião formada”.

Só tem um problema com esse raciocínio: vincular o preconceito ao genocídio é tão inválido quanto desonesto. Citando mais uma vez o autor:

“É certamente verdadeiro dizer que, se o preconceito fosse condição necessária para o genocídio, então ao curar a humanidade de seus preconceitos veríamos também a cura para o genocídio; mas nem tudo aquilo que se deseja, ao menos nesse quesito, apresenta-se necessariamente como possível. E um objetivo inalcançável não pode ser visto como desejável”.

O problema é que são poucos os que se dão conta que a extinção do preconceito é um objetivo inalcançável, e que prometer o seu atingimento é prometer uma mentira. Ora, será possível que alguma sociedade se ver livre de preconceitos? E nem estou me referindo ao preconceito tomado em seu sentido real – de idéia pré-concebida -, mas sim em seu sentido pejorativo. Será possível que exista um lugar onde todas as pessoas alcançaram o nível de virtude necessário para olhar seus semelhantes de forma neutra, sem julgamentos errados por qualquer característica sua? Difícil, não é mesmo? Principalmente quando se quer fazer isso ao mesmo tempo em que se incentiva a liberdade individual (que não raro dá lugar à todo tipo de perversão) sem os freios morais dos mandamentos cristãos.

Bom, se o poder mundano não consegue converter os corações, ele pode, pelo menos, calar as bocas. E esse é isso que sempre se omite, esse é o segredo do engano diabólico. Todos os movimentos revolucionários surgem com a promessa de libertação, e sempre acabam por controlar, censurar e oprimir. Por quê? Por que é o que dá para fazer. Só Deus pode mudar os corações. Um governo só consegue punir as condutas que ele define como socialmente indesejáveis, mantendo vigilância policial para tentar prevenir seu cometimento. A partir do momento em que não apenas as condutas, mas as opiniões passam a estar sob vigilância, surge uma sociedade dominada pelo medo e pela covardia.

Temendo ser taxado de preconceituoso, é quase impossível hoje alguém admitir publicamente ter algum tipo de preconceito. A não ser que isso ocorra num contexto confessional, onde a pessoa demonstrará profunda vergonha e sincero arrependimento. Isso provoca um aleijamento coletivo muito difícil de se reverter. Dentre outros efeitos colaterais, essa mentalidade antipreconceito simplesmente acaba com a prática religiosa. A única expressão religiosa aceitável é aquela que se aproxime de um enredo de Malhação ou de uma pauta do programa da Fátima Bernardes: a religião da (falsa) aceitação relativista de tudo, da opinião permitida, do sorriso pastel e do ódio mortal aos “intolerantes”. O espírito humano é abafado e sufocado até não sobrar mais nada. Somos constantemente pressionados a deixarmos de ser humanos e sermos menos, sermos gado.

A baleia pode dar saltos grandiosos, um beija-flor pode encantar pela sua delicadeza, um leão pode evocar nobreza. Mas não pra eles. Só o ser humano pode apreciar tudo isso. Um peixe pode viver toda sua vida circundando um lindo coral no Caribe e nunca irá acha-lo bonito (ou feio). Esse atributo humano é o que o aproxima de Deus. Nós, como Deus, somos afetáveis pela beleza, e podemos admirá-la, contemplá-la. O relato bíblico da criação mostra um Deus que, durante o seu trabalho, constantemente para, aprecia o que fez e julga: é bom. Nenhum outro animal tem esse dom. Reprimir isso é reprimir sua própria humanidade. Para Platão, crescer sem treinar esse discernimento é crescer desnutrido e incapaz de alcançar a plenitude da razão. Ser livre para chamar o belo e o feio do que eles realmente são é ser livre para ser humano. Perder essa “prática” ou reprimi-la é desumanizar-se. Não por acaso nosso tempo testemunha um grotesco culto à feiura em todas as áreas culturais. Desde a chamada “arte contemporânea” até o funk carioca, quanto mais baixo o nível da produção cultural, mais aplausos ela receberá, exatamente por que isso seria uma expressão genuína e livre do ser humano.

Por isso é que justo aqueles que esbravejam pela defesa da liberdade do indivíduo “ser o que quiser”, são os primeiros a perseguir e legitimar as ações mais absurdamente totalitárias de censura e silenciamento. A liberdade que eles defendem tem objetos bem definidos: você é livre para dar pra todo mundo, para achar que é homem sendo mulher – e vice versa-, ou um cachorro, um jacaré ou uma criança – sendo quase um idoso (e exigir que os outros te tratem como tal). A liberdade só serve para a depravação e para a loucura. Agora, ter opinião contrária, discordar ou mesmo condenar tais práticas? Nem pensar. Aí já é abuso.

Viver nessa época exige muita coragem, para manter sua posição como um soldado num campo de batalha. Jesus Cristo disse a seus discípulos: “Observai! Eu vos envio como ovelhas entre os lobos. (…) E, por causa do meu Nome, sereis odiados de todos.” Bom, imagino, ser contra o politicamente incorreto já dá uma dor de cabeça danada.

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Igor Moreira

Igor Moreira

Editor do Burke Instituto Conservador. Professor e palestrante.

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