Política x Família

O amor e a política

Nas mais diversas relações amorosas que a natureza humana pode estabelecer, uma delas é aquela que fixa os pequenos laços familiares entre pais, filhos e outros parentes. De forma sanguínea ou meramente afetiva, é bem possível afirmar que estes elos essenciais são a base de sustentação de uma sociedade minimamente saudável e com a possibilidade de florescimento. Mesmo sem qualquer pretensão de estruturar uma gênese dos primeiros agrupamentos humanos ou dos núcleos mais básicos de compartilhamento de experiências, pode-se declarar que as alterações no processo do estabelecimento dos vínculos de amor entre os membros de uma família é um fator primordial para compreender a desagregação contemporânea. Afinal, é público e absolutamente notório que a fragmentação e a desvalorização das relações familiares é um dado responsável pelo estágio caótico da ausência de bons valores em parcela considerável da sociedade ou da total inversão de princípios que deveriam guiar os seres humanos.

Nos últimos tempos, frente a uma clara polarização política existente no Brasil, houve um reforço abrupto da ocupação do debate político nas mais diversas áreas da vida. Não que os temas de interesse público, sobre agremiações partidárias, governos ou governantes seja uma novidade na vida cotidiana nacional. Mas é bem possível constatar que diante do estabelecimento de duas linhas de pensamento muito marcadas pela influência mundial, quais sejam, a do progressismo e a do conservadorismo, ocorreu uma rápida difusão da política nas rodas de conversas sociais. Um país que era muito marcado (e ainda é) por uma pluralidade partidária e de visões de mundo, passou a ficar imerso em uma pequena bifurcação “ideológica”: a esquerda e a direita voltaram com toda a força para demarcar seus territórios.

Tais movimentos “orgânicos” que estabelecem polos antagônicos passaram a ser extremamente criticados por intelectuais travestidos de eruditos, políticos profissionais, pensadores de gabinete e especialistas em coisa alguma. A razão? Mal acostumados com um verdadeiro embate de ideias e uma efetiva diversidade, esses agentes totalitários do progressismo, disfarçados de democratas, não toleram o que é diferente. E só por essa razão, a polarização política já representa algo bom e necessário.

Acirrar um posicionamento político e assentar valores para que saibamos os rumos de uma sociedade é fundamental para que possamos compreender qual futuro almejamos. Se não existe um antagonismo verdadeiro, criam-se falsas oposições, adversários políticos imaginários e os Poderes Legislativo e Executivo passam a estabelecer uma ditadura democrática. Na fake democracy do progressismo, não há disputa de ideias, mas unicamente uma disputa pelo poder. Ao contrário disso, quando há polarização política, valores e princípios morais são colocados em evidência no mercado das ideias para que os “compradores” possam verificar a qualidade do produto. E não existe melhor forma de desenvolvimento humano do que em um mercado livre, plural e aberto.

Por outro lado, esse resgate a uma dicotomia “ideológica” traz algumas consequências para as relações humanas. Amizades podem ser desfeitas, discussões acaloradas podem ser travadas, perseguições sociais podem prejudicar vidas e até mesmo rompimentos familiares podem ser gerados. Por mais que a opção política de alguém possa ser um forte indício acerca de seus valores humanos ou de seu respeito pelo próximo, é bem provável que muito daquilo que ocorre em nosso país ainda é fruto de uma “futebolização” da política: há uma cega torcida para alguns políticos como se fossem times de futebol. Poucos compreendem o verdadeiro espaço da política, a forma com que o ambiente público pode se diferenciar do privado ou a maneira com que as liberdades podem ser exercidas em diferentes esferas sociais. Na maior parte dos casos, há uma espetacularização de torcidas organizadas políticas em torno de preferências carismáticas que se transformam em um exercício vibrante das massas por meio dos mais rebaixados instintos.

Desta maneira, qualquer singela discordância política pode ser uma grande “faísca” para enormes “explosões”. E esses embates podem ser instigados por idiotas úteis, ideólogos hipócritas, relativistas morais ou até mesmo por paladinos da verdade. Nunca é demais supor que alguns estimuladores do entretenimento bélico da política podem ser membros de partidos políticos que buscam suprimir a democracia em nome de utopias que nunca deram certo. Tudo isso existe, é real e não pode ser esquecido.

O problema é que nem todos que se envolvem em alguma contenda “ideológica” têm plena consciência das razões profundas de suas causas. Muitos advogam por motivos desconhecidos. Inúmeros destes ativistas de causa qualquer são como doutorandos defendendo teses que não são de sua autoria. E por vezes a defesa é feita perante uma banca de analfabetos funcionais. Aqui surge um ponto central: criticar agressivamente a inconsciência do estúpido que age sob as obscuras ordens de uma “ideologia” pode gerar mais recrudescimento em torno deste torpor político. Por consequência, alguns preferem o agrilhoamento em torno da ignorância como a última salvaguarda moral que protege o indivíduo diante de seu inimigo “ideológico”. Todavia, com canalhas, patifes e todos os tipos de indivíduos que possuem uma efetiva consciência de sua linha de “raciocínio”, a dureza no apontamento dos erros pode ser um remédio profilático e pedagógico. Um pai que repreende uma criança de 2 anos de idade não pode ter a mesma postura quando repreende um filho de 12 anos de idade.

O problema é que quando todas estas nuances políticas invadem as relações amorosas familiares, muito do que foi construído pode ser desfeito como um sopro. Em razão de sua natureza, uma guerra política não é feita para ser travada no âmbito privado. Se os conservadores sabem que as coisas boas devem ser preservadas porque são boas, por qual razão permitiriam a destruição do amor? Ora, Roger Scruton disse, de forma lapidar, que a mente conservadora trabalha com a ideia de que “as coisas admiráveis são facilmente destruídas, mas não são facilmente criadas”, algo que pode suscitar a seguinte pergunta: o amor é algo admirável ou não? Uma relação de pais e filhos, em que houve efetiva entrega e abnegação no processo de criação e desenvolvimento de seres humanos, com trocas de momentos alegres e superação de dificuldades, pode ser destruída por uma questão de divergência política?

Claro que a fase que envolve a infância é muito mais romântica do que o drama da adolescência, ao mesmo tempo que nada é mais chocante do que o realismo (em alguns casos melancólico) da fase adulta. Portanto, não se pode esquecer que existem mudanças nas relações interpessoais familiares que também dependem e se adaptam a alterações cognitivas, sociais e de desenvolvimento de cada um destes momentos. No entanto, o amor não pode superar determinadas divergências?

Diante de um mundo em que mesmo os supostos coletivistas são inundados pelo individualismo, não resta dúvidas de que o amor familiar, algo que deve ser compartilhado, não encontra mais o mesmo espaço no lar. Se ao longo dos tempos o amor foi domesticado para florescer no terreno familiar, a nossa época não poupou esforços para desertificar o campo e devolvê-lo à vida selvagem. Causa alguma surpresa que determinados acontecimentos que invadem a convivência intrafamiliar, hoje ocupem os grandes holofotes das redes sociais? Afinal, em um tempo hiperconectado, uma tragédia silenciosa é pouco trágica.

Em virtude da disputa das últimas eleições presidenciais, um apoiador do atual presidente da República, Jair Bolsonaro, fez uma publicação nas redes sociais que alcançou grande repercussão e espantou algumas pessoas. Marcos Souza Castro, pai de Iara Moreira de Castro, fez severas críticas à sua filha por apoiar Fernando Haddad e se declarar contrária a Bolsonaro. Em um dado momento, expõe que não poderia imaginar que algum dia teria “uma filha tão idiota”, afirmando que as universidades transformaram os jovens em “um monte de estrume perfumado pela catinga de Vênus”, enfatizando que caso a mãe da moça estivesse viva, “vomitaria de desgosto vendo tanta falta de discernimento” e clamando para que sua ira política fosse amplamente divulgada. Menos de um mês após o ocorrido, Marcos faleceu em um acidente automobilístico.

E como esquecer o caso da escritora e jornalista Tati Bernardi? No final de 2019, no programa Roda Viva, ela queria extrair dos entrevistados Leandro Karnal, Luiz Felipe Pondé e Mario Sergio Cortella, “dicas de como perdoar” o próprio pai por ter votado em Bolsonaro, na medida em que o Natal se aproximava. Mesmo recebendo uma resposta razoavelmente instigadora da parte de Karnal, é bem provável que Tati ainda não tenha superado os traumas dessa situação. Há poucos dias, em sua coluna no jornal Folha de S. Paulo, ela publicou um texto intitulado “O pai bolsominion”. Nele, ao se recordar de brincadeiras de infância com seu pai, ela afirma que é impossível compreender como um “homem divertido, afetuoso e zero autoritário é hoje um dos maiores defensores do Bolsonaro” que ela conhece. Bem, talvez o pai de Tati esteja preocupado que as futuras gerações não se espelhem em sua filha, mas é só uma hipótese…

Ainda no artigo, a eterna adolescente Tati seguiu destilando um ódio público contra aquele que lhe ofertou o máximo de carinho. De acordo com ela, na página da rede social de seu pai, há “uma avalanche de absurdos, machismo e fake news”, tais como críticas à suposta pedofilia de Joe Biden, elogios a Donald Trump, menção a ideia de que o coronavírus é parte de um plano chinês para criar uma crise mundial, a afirmação de que o PSOL é um partido que deseja implantar uma ditadura “gayzista”, críticas ao Movimento Sem-Terra e elogios a Bolsonaro. Ora, exatamente o oposto de Tati, algo que ela tanto abomina. E como detestar o pai que tanto lhe amou? Em virtude de ideias? Eis sua crise juvenil, mesmo que já tenha ultrapassado os 40 anos de idade.

Mas é claro que os dois casos acima não são excrescências de uma época. Eles fazem parte de um caldo cultural e político que cresce no Brasil. Mais e mais famílias dissolvem suas relações em ácidos “ideológicos” para tentar purificar feridas que são vistas como desvios de um padrão. Esquecem que o ácido político corrói tudo que vê pela frente, inclusive o afeto entre os envolvidos. Em nome de opções políticas, irmãos rompem laços e impedem que os tios visitem os sobrinhos, encontros festivos se transformam em palanques “ideológicos” e grupos de contatos em aplicativos são facilitadores para imputar a alcunha de “fascista” em seu algoz.

Se para os progressistas a politização de todas as áreas da vida é uma necessidade para comprovar a tese da onipresença de opressores e oprimidos, os autointitulados conservadores que reforçam a paranoia da politização das relações familiares caíram no “canto da sereia” ao aceitarem as regras de um jogo que não lhes deveria pertencer. Mesmo que Scruton tenha razão ao afirmar que “pessoas normais não são de esquerda”, conservadores que se comportam como esquerdistas não compreendem o papel da prudência. E também não são normais…

Não existe harmonia entre a sacralidade da família e a política profana. Quando os laços familiares são vistos como tentáculos das disputas políticas, quando a politização dos vínculos afetivos é o que justifica consensos e dissensos entre aqueles que convivem ou quando o amor familiar pode ser submetido a vontades “ideológicas”, o totalitarismo político já cumpriu seu objetivo de intromissão em todas as áreas da vida.

O progressismo transformou as famílias contemporâneas em uma extensão dos combates políticos. Se em todos os âmbitos da existência humana existe um espaço para uma relação de imaginária opressão, na família isso não seria diferente. Ao aceitar essa linha de raciocínio, o conservador prostra-se moralmente diante de seus antagonistas e auxilia na derrubada da instituição familiar. Se a política é instável por natureza, conduzi-la aos aposentos do amor familiar é como passar a andar de mãos dadas com um psicopata: a destruição é questão de tempo. Sem remorsos.

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João L. Roschildt

João L. Roschildt

Professor do curso de Direito do Centro Universitário da Região da Campanha (Urcamp). Além de articulista e ensaísta, é autor de “A grama era verde”. Site: www.joaoroschildt.com.br

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