Está a nascer um pós-conservadorismo?

A mística do progresso sempre espalhou suas promessas sobre as sociedades. Afinal, são desejáveis as tentativas de aprender com os erros do passado para melhorar o presente e tornar o futuro mais justo. A aspiração pelo aprimoramento, enfim, é natural.

Porém, esse sentimento difuso se tornou uma ideologia desde o advento do iluminismo, passando a adotar a ortodoxia e a fé que são matérias-primas fundantes dos projetos de arquitetura social. Passou a chamar-se “progressismo”, transcendendo os restritos gabinetes dos filósofos iluminados até ganhar representação na política venal. Se o liberalismo de Locke foi seu primeiro vetor, o “socialismo científico” de Marx o cooptou de maneira acabada. Para o marxismo, é possível forjar um futuro perfeito para a humanidade, e há uma fórmula disponível para que esse objetivo tido como inevitável seja atingido. Uma vez superada a tradição por meio cinzel da revolução que lapidaria um novo homem, instaurar-se-ia o paraíso na Terra. A redenção vem da política.

Sob múltiplas feições, o progressismo gradualmente se assentou no Ocidente. Muitas vezes prescindindo das revoluções, instalou-se nas legislações, nas instituições e – o que é mais importante – nas mentes, delineando uma cultura social que tende a considerar reacionárias e obscurantistas as forças que se lhe opõem. Assim, o “proibido proibir”, a contracultura, os arranjos de governança global, a agenda diversitária e o “politicamente correto” são apenas os mais recentes emblemas do progressismo em sua marcha plurissecular.

Contra essa marcha levantou-se o conservadorismo. Identificando-se como uma anti-ideologia, o conservadorismo de Burke e seus continuadores receita, em síntese, a prudência, a moderação, a ojeriza à ruptura impensada, o ceticismo em face das abstrações políticas, a preservação das tradições sem recair em imobilismo.

E por muito tempo o progressismo (moderado ou radical) e o conservadorismo (igualmente composto por alas mais ou menos moderadas) protagonizaram a grande disputa pelas preferências da opinião pública nas democracias.

No entanto, dessa moldura escapa um problema sempre latente: o conservadorismo, dada sua natureza conciliatória, tende a acolher, mesmo que a contragosto, boa parte das mudanças que sopram os ventos das massas e o discurso vindo da militância de seus adversários. Com efeito, Burke opôs-se às rupturas produzidas pela revolução francesa de seu tempo, mas já não defendia a política e o modo de vida que anos antes espelhavam a ordem social.

É coerente. Embora sejam defensores das tradições e arranjos já testados pelo tempo (lembremo-nos de Oakeshott), os conservadores – diferentes que são do regressismo impermeável – amortecem os impactos gerados pelas mudanças. Cedo ou tarde, contudo, elas se instalam, tornando-se novos legados e conquistando a adesão dos próprios conservadores.

Logo, o conservador de hoje é o progressista de ontem, e o conservador de amanhã será o progressista de hoje. Porque o tempo passou sob a constante influência do progressismo, a sociedade e os valores que se deseja preservar no presente já são muitíssimo diferentes daquilo que existia no passado. O que atualmente concebemos como “tradicional” chocaria o mais moderado dos nossos antepassados. Ao fim e ao cabo, o progressismo sempre vence de algum modo. Soa incontornável.

Se considerarmos que os aperfeiçoamentos são desejáveis e que as alterações são inerentes ao processo evolutivo das sociedades, não se pode flagrar aí grandes problemas. Porém, a dinâmica que move tal processo chegou agora ao seu zênite e está à beira de transformar as tradições em ruínas. O que ainda há para preservar? O que a civilização ocidental ainda pode mudar sem perder sua identidade, a alma de sua cultura?

Sobrevivem apenas os pilares abalados de certos signos morais, uns pálidos sentidos de consciência histórica, alguns princípios daqueles “acordos fundamentais” mencionados por Alasdair MacIntyre. Se quase todos os legados se extinguiram em nome de neofilias, vanguardas, odes ao progresso e assimilações comportadas, basicamente subsistem, acossados e questionados, os pilares (mas não o edifício inteiro) da religião, da terra e da família. Sob cerco, a direita cerra fileiras nesta última trincheira. Não pode negociar mais do que isso sem deixar de ser direita. É uma guerra visceral pela sua própria sobrevivência.

Mas os velhos conselhos do conservadorismo talvez não sejam mais suficientes, uma vez que a moderação encontra diante de si adversários que já são a maioria, alguns deles nada moderados. Por incrível que pareça, o progressismo é o próprio status quo e está a forjar a democracia ocidental à sua imagem e semelhança. Nesse embate que tem na cultura o seu núcleo mais importante, há pouco espaço para as conciliações e para os estadistas respeitáveis em suas gravatas-borboleta. Tudo sugere que os tempos estejam a exigir novas atitudes por parte das direitas, eis que as mudanças batem às portas do essencial e chegam ao coração de tudo o que realmente importa. Para as direitas, em suma, ceder daqui em diante é a receita para a capitulação.

Na esteira dessa realidade, o conservadorismo precisará transcender a si próprio para se manter como player viável. Seria, em verdade, um pós-conservadorismo, e a chamada “nova direita” que agora o instrumentaliza parece ter compreendido o redemoinho que a circunda. Com sinceridade ou não – pouco importa –, seus atores insistem em manter Deus na realidade pública apesar do secularismo, pelejam para resgatar a soberania nacional diante do “globalismo” e investem em antigos valores familiares como alternativa à agenda diversitária. Religião, pátria e clã. São os últimos bastiões.

O pós-conservadorismo que talvez esteja a nascer só dispõe do suporte que dorme no imaginário das populações que ainda transitam nas franjas do cosmopolitismo e do desencanto do mundo. No povo comum está seu amparo e no status quo reside seu oponente. Logo, não pode causar surpresa que o pós-conservadorismo deseje mais reagir e erigir uma ordem diferente do que preservar. Não pode espantar que os métodos que utilize sejam justamente o populismo e os rompantes anti-establishment. Paradoxalmente, o conservadorismo é a nova subversão.

            Essa conjuntura traz à tona dois divórcios. O primeiro se dá no seio da direita, entre dois conservadorismos. O clássico será estritamente intelectual ou prosperará em locais nos quais o progressismo se instalou com menos vigor, de sorte que o sentimento de perda é pouco presente. As acomodações, nesses casos, ainda são aceitáveis porque a alma da cultura não foi alvejada frontalmente. O novo conservadorismo ainda tem a tradição como guia, mas se vale de instrumentos inéditos que a polidez dos clássicos não digere, como a imoderação, o populismo e as afrontas às instituições. Ele é mais reativo e radical, quer uma ordem diferente, porque os ambientes sociais nos quais está inserido isso reclamam.

            O segundo divórcio se funda nas tensões entre (pós)conservadorismo e liberalismo. As incompatibilidades irão se aflorar devido a posicionamentos contrastantes no que diz respeito a pauta dos costumes, já que os liberais toleram ou promovem comportamentos e escolhas que o grosso da direita tende a considerar inaceitáveis. No porvir, a aproximação dos conservadores com o tradicionalismo será mais pacífica do que com o liberalismo. Como consequência, o novo conservadorismo poderá vir a assumir feições francamente iliberais que se irradiariam também para a esfera econômica. Para ele, os apelos coletivos atávicos falarão mais alto do que o individualismo, a ordem terá mais peso que a permissividade, a proteção nacional importará mais do que a “mão invisível” do livre mercado.

            Muitos rejeitarão ou não compreenderão a natureza da guerra na qual se envolveu esse outro conservadorismo, mas é o que resta para a direita em vários países. É possível, e mesmo provável, que a luta se mostre inócua diante da força que arrasta a mística progressista em sua cauda, mas é igualmente provável que se fundem novos feudalismos culturais/morais, como pedras nos sapatos do modelo liberal-progressista. O futuro jamais será consensual, porque talvez seja verdade que “as raízes profundas não gelam”, como diria J. R. Tolkien.

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