Jean Paul Sartre: livres, inclusive para nos desumanizarmos

Geralmente, uma condenação vem em resposta a algo de errado cometido. Além disso, a pena aplicada, geralmente, acarreta algum tipo de punição sobre o corpo físico, uma prisão. O condenado perde a liberdade para não poder mais agir como sempre agiu, para deixar de cometer o erro.

Para Jean Paul Sartre, o homem está condenado a ser livre, ou seja, foi abandonado na Terra, não se sabendo por quem, e sem saber se o foi por alguém, menos ainda por Deus. Seu ateísmo contraria o existencialismo cristão e determinações divinas, como também determinismos burgueses de sua época que condicionavam ou fabricavam a sua existência. Segundo o cristianismo, o homem nasce predeterminado, está condenado a ser o que Deus determinou que ele seja. Não me refiro a uma condenação que lhe tire o livre-arbítrio. A referência divina de condenação é a ser o ser humano uma criatura, com seus pecados, suas virtudes, tendenciosamente maldoso. Além disso, binário, essencialmente binário.

Sartre entende que o homem está condenado, sim, mas condenado a uma pena diferente, à liberdade. Inexistem determinações divinas. A existência precede a essência. Ou seja, sua essência não vem de Deus, não é absoluta. O humano existe para ser livre de qualquer imposição natural ou superior, estando livre para escolher a sua essência.

A condenação a que o homem está fadado é não escolher a liberdade, a recusa de sua própria consciência de ser livre, o ser para-si. Existir é ser livre, não tendo que se sujeitar a determinismos. Fora do ser para-si, no ser em-si, só há determinação.

Comentando, Roger Scruton assinala com propriedade:

A premissa que inicia o argumento de Sartre é expressada assim: “a existência precede a essência” – um slogan cuja terminologia medieval é, de fato, fundamental para uma obra de teologia cristã invertida. Não há natureza humana, Sartre argumenta, já que não há Deus para haver uma concepção dela. Essências, como construções intelectuais, desaparecem junto da mente que as conceberia. Para nós, então, nossa existência – nossa individualidade impossível de conceptualizar, cuja realidade é a liberdade é a única premissa de toda investigação, e o único ponto seguro de observação em um mundo cujo significado ainda está para ser dado. Nossa existência não é determinada por nenhuma moralidade universal, e não existe nenhum destino pré-dado que poderia conter uma visão de natureza humana. O homem pode fazer sua própria essência, e mesmo sua existência é, em certo sentido, uma aquisição: ele só existe totalmente quando ele é o que ele se propõe a ser. 

Foi mais ou menos assim, com esses tiros de frases envernizadas, arregimentadas para a decadência moral, que Jean Paul Sartre desferiu mais um golpe mortal na essência humana, fazendo dela um nada em absoluto. Seria mais ou menos pensar que a liberdade é a única coisa que existe de absoluto para o ser humano, já que ele está condenado a ela. De resto, o que existe é nada, porque nada é necessário, só há contingência, inexistem determinismos, positivações. Já deu para perceber aonde Sartre quis chegar, não é mesmo? O homem nasceu para ser livre, sem essência qualquer de nascimento.

Jean Paul Sartre, um dos filósofos da nova esquerda (século XX – 1905/1980), participou ativamente na política da Resistência Francesa durante a 2ª Guerra Mundial. Teve que justificar o homem no mundo contra a coisificação a que estava submetido. Trilhou caminho errado, pois a dignidade humana é considerar a natureza humana tal como ela é, determinada.

Filosoficamente falando, Sartre merece condenação. Seu pensamento é louvável sob o ponto de vista individualista, consagrando o indivíduo livre e singular no mundo e no tempo, cada um decidindo o que é melhor para si e observando as suas necessidades pessoais. Contrariou, assim, Kant e seu imperativo categórico idealista e universalista, Hegel e seu espírito absoluto, universal e redentor, Comte e seu positivismo científico, bem como o próprio Marx e seu “novo homem”, o “proletário redentor”. Mas, ainda assim, o seu individualismo é destrutivo, pois a liberdade cristã, contra a qual Sartre destina toda a sua artilharia, jamais autoriza excessos ou infinitudes. 

O “ser” (absoluto), a ontologia, a metafísica, não existe. Aqui, o seu ateísmo militantemente filosófico.

A racionalidade cartesiana atua em outro sentido.

Enquanto Descartes pensava no dualismo res cogitans X res extensa (coisa que pensa, o homem, e coisa em si, o objeto, ambos seres existentes), Sartre pessoalizou o cartesianismo. Trocou-os por para-si e em-si. O para-si é o sujeito livre, consciente e que existe, enquanto o em-si são as outras coisas, o nada. Logo, só o homem existe. Fora dele nada é absoluto. 

Trocou a metafísica (pensar no “ser”) pela fenomenologia (sentir o imediato), deixando o pensamento metafísico profundo em suspenso, só descrevendo, nunca explicando, o que vê, sente, ouve, escuta, toca. 

O que existe é a contingência, não a necessidade. Não existe nada necessário no mundo, nem no ser humano, que é livre para escolher. 

Enquanto não escolhe, o ser humano está sem razão de viver e de agir. A sua existência não tem significação alguma fora do campo da liberdade de escolha. Como disse, ele está condenado à liberdade, sendo obrigado a alguma escolha.

Segundo ele, quando temos noção da contingência (do nada), em vez de medo (como a religião diz), o que devemos ter é nojo (daí a sua segunda maior obra, A Náusea). 

Negando o ser, ele nega Hegel (“todo real é racional”), já que não existe real ou o real é por nós apreendido apenas imediatamente (de forma fenomenológica). 

Qualquer semelhança com os dias de hoje não é mera coincidência.

Quando vemos crianças em idade escolar sendo submetidas a escolhas  (ideologia de gênero) que não devem fazer parte da essência de seres em desenvolvimento temos a absoluta certeza de que Jean Paul Sartre tem a sua meaculpa nisso tudo. Ora, eis a prova fatídica de uma perseverança diabólica incansável.

Esclarece Roger Scruton, logo que começa a escrever sobre Sartre em seu Pensadores da Nova Esquerda:

Nenhum pensador europeu é mais verdadeiramente representativo da intelligentsia pós-guerra que Jean Paul Sartre, e nenhum atesta melhor a consciência coletiva desta intelligentsia como uma consciência do Inferno. Ao mesmo tempo, os escritos de Sartre são charmosos, mefistofélicos, seduzindo o leitor com um tipo de graça diabólica em direção ao altar do Nada, onde tudo que é humano é lançado às chamas. 

E, concluindo, Roger Scruton novamente:

A peregrinação de Sartre é um exemplo soberbo da busca revolucionária. Como Marx, ele estava cativado por um ideal de emancipação absoluta – de relações entre pessoas que não obedecem lei alguma exceto àquelas que são livremente escolhidas. E, como Marx, ele começou a desafiar a realidade demasiado humana, demasiado empírica e demasiado aprisionante dentro da qual a vida humana e a felicidade são encontradas. Ele comprometeu-se com a destruição e, mais ainda, com a destruição da liberdade limitada e imperfeita que ainda podemos atingir – uma liberdade distante, ainda, da “liberdade total” da qual gozam os sujeitos no império soviético. Desejando somente o que é abstrato e “totalizado” , ele condenou o que é real à miséria e à servidão. A totalidade totalizada é, no fim, o que ela parece ser no início: o compromisso total com a “práxis revolucionária”. 

Sartre confirma que viemos do pó e ao pó voltaremos. Com a diferença de que este tipo de decisão cabe a cada um de nós, assinala Sartre, sem a interferência de Deus ou de acontecimentos naturais que possam nos destroçar em pedacinhos bem pequenininhos, como o pó. Basta termos liberdade para esta decisão.

Com Sartre, voltamos àquela pergunta de sempre: se Deus não existe tudo é permitido?

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Sergio Renato de Mello

Sergio Renato de Mello

Sergio Renato de Mello, brasileiro, casado, Defensor Público de Santa Catarina, residente em Rio do Sul, Santa Catarina.

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