Notre-Dame é maior do que você

Apagadas as brasas da catedral, varrida a poeira de suas pedras quase milenares, da floresta secular de vigas de seu telhado e as ruínas de seu pináculo, após os grotescos e quimeras pararam de rir e dançar enquanto o fogo aquecia suas costas do alto de suas torres e as gárgulas de jorrar incessantemente a água vinda dos bombeiros, resta-nos Notre-Dame ferida, queimada, mas a pedra resiste ao tempo, desafia a frieza de Cronos e o poder de Tânatos; permanece no centro de Paris, imperiosa, machucada, verdade, mas ainda coroada com a imponência que a torna a rainha das catedrais, como diria Victor Hugo.

Por falar no autor que deixou a catedral famosa, é importante notar algo já apontado por Hugo: o Homem destrói mais do que a natureza. Todas as construções humanas sofrem do terrível destino da destruição pela natureza. Ela é lenta, ocorre desde o primeiro momento em que a primeira pedra é assentada, mas é tão real quanto o ar que respiramos, no entanto, nada supera as mazelas do Homem. Despida de parte de sua arte gótica pelos arquitetos contratados por bispos e reis, na era moderna, Notre-Dame perdeu uma grandiosa parte de sua essência: sua escadaria que a elevava, seu altar gótico, suas decorações sagradas internas. Muito do barroco a maculou, manchando o simbolismo religioso medieval, mas algo pior a acometeu: a Revolução.

Os revolucionários destroçaram todo o legado Histórico de Paris. Conventos, mosteiros, o palácio do rei, os túmulos das principais figuras da França, dos grandes reformadores das leis, política aos salvadores do reino, como Carlos Martel; estátuas e relíquias de santos, igrejas… e também suas catedrais. O românico e o gótico não foram poupados. Neste tempo, o maior golpe contra Notre-Dame foi feito: a igreja que era para ser para a Mãe de Deus, a principal intercessora e guia para Cristo – algo que era bem espelhado no próprio edifício – cedeu forçosamente o lugar para a “deusa da razão”, um símbolo canhoto de um anticlericalismo disforme, assassino, que retirou Cristo do centro de adoração da catedral. Mas a Notre-Dame sobreviveu. As ideias puras da Revolução Francesa morreram, seus autores e atores morreram de velhos. Os reis voltaram a reinar, ainda que de modo espaçado, sem a continuidade ideal para uma monarquia, tendo repúblicas sangrentas e dinastias concorrentes e, por fim, a guerra contra a Prússia leva ao colapso final dos monarcas – mas a catedral ainda estava lá, ainda imperava, com Cronos devorando todas as políticas, regimes e ideologias caóticas da França. Notre-Dame de Paris permaneceu de pé, como um bastião da fé católica, mostrando sua presença para todas as novidades que logo veriam suas próprias mortes.

Essa bíblia de pedra era (e é, apesar de sua desfiguração) onde a arquitetura gótica e toda a ornamentação religiosa passa uma mensagem cristã, tal qual um livro transmitindo seu conteúdo, mas de modo superior: com a simbologia de cada escultura e pintura, o arranjo estrutural, até mesmo a mera entrada de luz solar, ressoando cada palavra das Sagradas Escrituras, ecoando a História dos reis hebreus e da Paixão do Salvador da humanidade em sua pedra, vibrando todo o ambiente externo com sua majestade genuinamente cristã, seu verticalismo que leva quem entra aos céus, apontando para o transcendente, para o norte de todo Homem – foi isso o que foi queimado!

Um incêndio, ao que tudo indica, acidental. Talvez uma obra conjunta de Cronos e Adão, mas insuficiente para apagar a Igreja de Nossa Senhora; porém, continuamos com a constatação de que o Homem a depreda mais do que o tempo. “Isto matará aquilo”, dizia Victor Hugo, ao relacionar o surgimento do livro impresso com o desaparecimento da linguagem arquitetônica gótica. As ideias e crenças, faladas pelos prédios que mostravam o céu a humanidade, encontrariam um receptáculo muito mais versátil e expansionista no livro. Se antes um tomo poderia demorar anos para ser composto, fosse pela lenta escrita ou pelo igualmente vagaroso processo de cópia de um manuscrito, com a prensa a velocidade de transmissão do saber abalaria a unidade de uma Europa católica.

O primeiro filho dos livros impressos foi Lutero e a trilha de saques, roubos e destruição do legado católico que quase dizimou a Igreja em toda a Escandinávia, Inglaterra e Escócia, fora em grandes partes dos Países Baixos, França e no Sacro Império. O livro, solto, já não podia obedecer a uma ordem hierárquica centrada, podia espalhar doutrinas e críticas a tudo e todos, não precisando do respaldo geral de um concílio ou um Papa para a disseminação dessas ideias. Mais de cem anos depois de Victor Hugo notar esse fator histórico, Reinhart Koselleck e Paul Hazard o respaldam na História: foi a Reforma Protestante que criou a crise de consciência europeia geradora do iluminismo e, por fim, da Revolução Francesa – não é para menos. Se Notre-Dame foi pilhada e depredada pelos revolucionários, também devemos nos lembrar de que os protestantes a incendiaram nas Guerras de Religião. O que aconteceu com essa catedral também ocorreu com as mais velhas abadias, mosteiros, conventos, capelas, basílicas e catedrais por boa parte da Europa. O livro de papel assassinava lentamente o de pedra… e se o povo francês não tivesse obrigado a Henrique IV se converter ao catolicismo no século XVI, Notre-Dame possivelmente teria o mesmo desfecho da catedral de Ulm, tomada por protestantes e despojada de sua fé originária, de sua arte, de seu patrimônio sagrado.

Mas essa continuidade degradante foi apenas aumentada com a internet. O pluralismo pelo pluralismo infecta a Civilização Ocidental como um câncer se espalha em um fumante inveterado. É uma infelicidade que acompanha a felicidade da disseminação do saber, um efeito colateral intransponível com a popularização do livro, da notícia, da opinião. Somos calcados e emergidos em uma cultura que, por conta do impulso dado no século XV, não para de avançar, de ter mais heterodoxias, de destruir o passado em nome do futuro incerto.

Notre-Dame será restaurada, no entanto. O mesmo livro que Hugo apontou como causador do desmoronamento do gótico e do simbolismo, foi o mesmo que possibilitou suas próprias ideias ganharem espaço, influenciarem e, por fim, foi um dos fatores que possibilitaram a restauração da catedral no século XIX. De fato, a restauração de construções medievais só se deu por conta do espalhamento, pela escrita, da importância das tradições, da estética, do passado. O livro de papel também salvou o de pedra. Victor Hugo errou ao ser tão alarmista, mas não errou totalmente. Se, em sua época, o autor reclamava da destruição das últimas torres medievais dos edifícios públicos de Paris, também é no mesmo século que os europeus começam a conservar o próprio medievo.

Mas o pessimismo de Hugo não é infundado. Com a queima de Notre-Dame, imediatamente criaram-se canais para angariar fundos para a reconstrução. A igreja mais famosa do mundo encontrou, em poucas horas, quantias que ultrapassavam mais de meio bilhão de euros, porém, não sem um preço: um número incontável de críticos da caridade alheia (!) apareceram. Reclamavam da soma exorbitante para a reconstrução de uma Igreja (!) e do pouco dinheiro dado para vítimas da África. Esse pensamento manco e tonto pode ser facilmente rebatido no simples demonstrar do absurdo que é não cuidar dos prédios históricos; se assim fosse, nada poderia ser mantido com os bilhões reservados para a manutenção de edifícios históricos, pois tudo deveria ir para a caridade. Viveríamos em um presentismo mais esfarelado do que qualquer pesadelo que a mente de Victor Hugo poderia conceber.

O gótico em Notre-Dame, como dito, é uma produção humana que nos eleva aos céus. Fala de algo para além da humanidade, que guia o Homem para o certo, verdadeiro e correto. É a tentativa, nem tão falha assim, do móvel querer falar e replicar o imóvel.

Aquela igreja é maior do que você. Maior do que a insignificância passageira de nosso mundo contemporâneo. Ela abala as mentes e espíritos daqueles que a estudam e visitam; sua história conta a história do Ocidente, do mundo; sua sobrevivência é a marca de que a Bíblia de pedra vive, desafiando a foice do tempo e da morte. Aplique a doentia crítica à caridade de quem decidiu doar para uma igreja a sua própria vida e perceberá que não deveria comprar um mero sofá para sua casa. Notre-Dame, dedicada a Mãe de Deus, é uma joia viva que nos guia para a própria caridade, pois é para Cristo que, em primeiro e último grau, ela aponta. Qualquer um que não consegue perceber isso é apenas um anão aos pés de gigantes – e um que acredita ter mais altura do que as catedrais!

“Isto matará aquilo”, dizia Victor Hugo. Com a disseminação do saber, a expansão da burrice e da falta de caráter veio acompanhada. Quem não sabe dar valor ao que tem valor, quem não tem o senso das proporções, não passa de um pequeno rebelde frente à majestade de uma catedral.

Infelizmente… rebeldes são os que põem fogo nas catedrais. O feio, não raras vezes, macula o belo. O mundo moderno tem efeitos colaterais terríveis.

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As posições expressas em artigos por nossos colunistas, revelam, a priori, as suas próprias crenças e opiniões; e não necessariamente as opiniões e crenças do Burke Instituto Conservador. Para conhecer as nossas opiniões se atente aos editoriais e vídeos institucionais

Hiago Rebello

Hiago Rebello

Graduando em História, Licenciatura, pela Universidade Federal Fluminense, colunista do Instituto Liberal e do Burke Instituto.

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