O Anjo e o Filósofo

Se eu tivesse o gênio de pintor, traria à luz em formas belas e estáticas a imagem que se forma na minha imaginação quando transmutada em impressões pessoais o relato da insistência, das broncas e da final complacência do anjo ao professor que insistia, apesar da oposição angélica, em se manter enfurnado nas besteiras intelectualóides da época.* Infelizmente não sei pintar, e assim não posso evitar uma pontada de desgosto ao ver surgir e se desvanecer no reino das abstrações o que tem potencial para vir a ser um belo quadro. Pena eu não poder me agarrar aqui a um piedoso subterfúgio já desmascarado pelo professor anos atrás: quem me dera poder trazê-la à vida ao só imaginá-la!

Não podendo contar com tal habilidade, posto que inexistente, coloco em lugar do pincel, um lápis; em lugar da gravura, a grafia; e tento suprir por meio da escrita aquilo que me faltou para a pintura. Aqui então estará registrado – se bem ou mal escrito, eu não sei – o desenvolvimento dos meus estudos.

Embora eu não possa garantir a qualidade literária de um exímio escritor, espero superar a duvidosa qualidade da escrita com o voto de confiança que peço ao garantir que nestas páginas estará refletido o meu coração. Tento a todo custo evitar o fingimento, mesmo que a forma externa não se apresente com a beleza correspondente ao esforço. Prefiro isto a que os fatores estejam invertidos: antes o sincero maltrapilho ao fingido elegante. Nem mesmo a Verdade em pessoa estava na melhor das aparências quando expressou na cruz a intenção suprema com a qual viera.

Mas mesmo essa passagem da inviável pintura para o mais possível relato pessoal não se deu num salto direto. Houve entre eles uma fase intermediária. O que eu queria ainda era escrever algo sobre a filosofia do professor. Nesse campo fértil de possibilidades, eu tinha um interesse especial na Teoria dos Quatro Discursos. Como eu queria, então, desenvolver uma análise, uma pesquisa que ampliasse os horizontes dessa questão! Mas para isso eu também não tinha capacidade – pelo menos não por enquanto.

Alguns meses atrás eu me deparei com a notícia de que um aluno do professor estava em empreitada semelhante a que eu pretendia, mas nesse caso sobre a sua filosofia inteira. Eu fiquei feliz ao saber. Sinceramente, eu fiquei contente. Seria algo inédito. Mas eu confesso que também tive inveja. O que para mim ainda era uma mera pretensão, já estava a meio caminho andado para ele. Como eu estava atrasado nos estudos! Como eu queria que tivesse sido eu a escrever um tal livro! Mas que se deixe de lado as afetações, não é lá coisa muito digna de ocupar tantas linhas. E se a contei aqui, foi apenas porque prometi a sincera expressão do meu coração, mesmo em casos vergonhosos, e também porque ela revela um estado ainda precário da minha alma que eu não posso simplesmente fingir que não existe sob o risco de cair precisamente naquele fingimento que eu tento evitar.

Eu não tenho como fazer uma pintura ou uma análise, mas pequenos relatos da minha própria experiência, isso eu posso contar. Mas não pense o leitor que o que tem diante dos olhos agora seja trabalho de terceira mão, aquele recurso evasivo que se usa quando tudo o mais dá errado. Não é isso em absoluto! O mais, aqui, não deu errado – sequer foi tentado –, apenas exigirá um tempo maior e um interesse correspondente, exigência menor para uns textos pessoais. Não podendo agora executar uma pintura ou obra analítica, posso, entretanto, falar dos meus estudos e do que venho aprendendo.

Antes de terminar, deixo aqui algumas ressalvas: que não se tome por verdades últimas o que vier a aparecer por aqui. Não é nem mesmo com essa pretensão que aceitei o convite de um amigo para escrever. Em tudo quanto escrevo, tenho em mente apenas quatro coisas: exercitar a minha escrita por meio da imitação do estilo do professor; registrar idéias avulsas que tenho ao longo do tempo para, quem sabe no futuro, retomá-las e tirar delas uma unidade; exercitar a coragem de expressar as minhas impressões, independente da forma como elas serão recebidas; e exercitar a humildade de corrigir essas impressões ou outros defeitos caso eu venha a ser advertido dos erros.

Por isso mesmo, ainda me mantenho na dúvida se fiz bem em aceitar o convite ou se o melhor seria ter recusado e me limitado a escrever em meios mais informais, como um caderno, que não transmitiriam aos textos uma imagem de autoridade que eles não pretendem ter. Não escrevo aqui nada com a fingida atribuição de quem se acha o senhor da razão, mas apenas naquele sentido de responsabilidade autoral mínima de quem está aprendendo a perceber e a dizer o que percebe.

Uma segunda ressalva: que não se pense que lanço mão da imagem do professor já neste primeiro texto com a intenção oportunista de atrair leitores pelo peso que a sua figura evoca, mas sim porque não haveria testemunho algum de estudos a ser registrado se não fosse por ele. Assim como esconder os relatos vergonhosos seria um fingimento, o mesmo aconteceria se eu escondesse ou minimizasse a importância da figura do professor por receio de vir a ser chamado de oportunista ou ser alvo de outros tipos de escárnios

Veja bem, eu sempre tive uma inclinação aos estudos, embora o foco de interesse tenha variado desde o estado germinal ao estado atual. Quando ainda estava em germe, esse interesse era exclusivamente escolar. Eu não me interessava por literatura, da brasileira não conhecia quase nada e esse pouco que conhecia era apenas aquilo que a escola obrigava a ler – e com que má vontade eu a lia! Mas das demais disciplinas eu gostava muito. Estudava-as com dedicação e tirava sempre boas notas. Nisto se resumia minha vida intelectual: a sombra de uma caricatura.

Foi só mais tarde, quando eu entrei em outros assuntos, que a projeção de sombra tomou vida própria e forma concreta e se transmutou numa caricatura. Sim, ainda uma caricatura, pois, não tendo quem me guiasse nesse início da minha vida intelectual, eu lia o que se tomava por consagrado por aí. Não tendo quem me mostrasse o que era importante ler, eu, perdido, acabei enfurnado na leitura do que não prestava e, neste caso em particular, não havia anjo para me alertar sobre onde eu estava me metendo.

Se fui privado da figura do anjo para me guiar, a Providência mandou no lugar dele a figura do filósofo. E foi só depois disso que minha vida de estudos finalmente deixou de ser uma mera caricatura e eu pude desenvolver as estruturas básicas para uma vida intelectual verdadeira.

E, por fim, se lançou mão também desde já da figura do professor, é simplesmente porque tomando-o como um mestre, meu horizonte de consciência ainda está todo delimitado por ele. Não assumo isso com sentimento de vergonha ou de inferioridade, mas sim com uma sincera tomada de consciência da minha posição nos estudos. Tampouco assumo isso com desespero ou pressa de me livrar logo dos domínios da sua figura, mas com a tranquilidade de quem percebe o tanto que precisa ainda estudar para só então, quem sabe, dar um passo adiante e ver a linha do horizonte a frente se projetando para mais além, com um campo maior a ser abrangido. Pois é só assim que se supera o mestre: dominando todos os campos que ele domina e, em seguida, enxergando para além do que ele viu.

Relato descrito no Prólogo do Prólogo de “O Imbecil Coletivo”, de Olavo de Carvalho. É a este último que os termos “professor” e “filósofo” ao longo do texto se refere.

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