A sopa de letrinhas ideológica e a Fábula das abelhas

Quando escrevo “todes” ou “todxs”, “dili” ou “delx”, no meu computador aparece uma linha vermelha embaixo da palavra. Erro de grafia? Problema de software? Será que acontece em outros também? Ou simplesmente um alerta do corretor?

O Estado de Santa Catarina provou que pensa em todos e em todas, não apenas em “todes”. Por meio de Decreto que entrou em vigor na última quarta-feira, 16 de junho, proibiu que um palavriado bárbaro invadisse a boca e o coração de estudantes das escolas públicas e privadas do Estado, como falar “todes” ou “todxs”, em vez de “todos” e “todas”. 

A higidez do vernáculo e seu correto uso deveria ser preocupação de todos, mas nem todos pensam desta forma. Este é o recado do ente estatal barriga verde (apelido para Santa Catarina). 

Esta sopa de letrinhas é pura ideologia, além de imprudência e hipocrisia.

Hipocrisia? Perguntem para algum comunista ou socialista o que as crianças, a família, a sociedade ocidental e seu legado significam para ele. Significam tudo, diriam os caras de pau! Respondem mais: “Vale tudo para uma sociedade igualitária e democrática”. Hipócritas! Banham-se com verniz de democracia, mas guilhotinam aqueles que são contra suas fantasias de felicidade coletiva.

Esta artificialidade linguística é prova cartesiana – sobreviveu a todos os testes céticos imagináveis até chegar na certeza de sua irracionalidade – de que essa gente não está nem aí para todos (e “todos” e “todas”). Para eles o que interessa é só a eficácia do “todes” ou “todxs”.

Imprudência? Quanto aos que acham que esta infâmia é inofensiva ou insignificante, sabem que isso tudo tem algo de muito errado. Sabem ou pelo menos sentem. Não passa em branco. Todavia, alguns nem dão bola para a consciência. E é aí que mora o perigo.

Enquanto escrevo sobre o acontecido no Estado barriga verde vem um paradoxo: há males que vêm para o bem ou de boas intenções o inferno está cheio?

Pensando na frase do parágrafo anterior, lembro do recado que me dá o trabalho das prudentes e organizadas abelhas, personagens atemporais e hoje consagrados na literatura e filosofia ocidental, da sátira já reconhecida do escritor Bernard Mandeville, no séc. XVIII, em 1714. O nome da obra é A fábula das abelhas ou vícios privados, benefícios públicos.

O boom espiritual da época em que a fábula referida foi escrita era o Iluminismo, ou seja, a humanidade parecia ter aprendido a pensar e a caminhar com as próprias pernas. Se livrou de Deus, enfim, emancipou-se. 

Trocando em miúdos, era o seguinte. A tradição era preconceituosa, mística, medrosa, misteriosa, desigual e tirânica. Além disso, pensava muito, se preocupava em refletir sobre coisas que, ao ver dos recém-chegados racionalistas, não levavam a lugar nenhum. A tradição da época era o que hoje podemos falar de establishment. Era disso que os tais novos pensadores científicos queriam se livrar. 

Na Inglaterra, o Iluminismo se propagou mais para o lado da moral. Daí o surgimento de questões atreladas à moral e à religião ou embate entre as duas. Nesse campo entra a obra acima citada, a da fábula. Vamos, enfim, ao enredo, à fábula.

Existia um enxame próspero de abelhas que viviam felizes com o que tinham. O governo era bom e sábio. No entanto, havia muita desigualdade. O trabalho árduo da maioria delas servia para manter o luxo de metade do enxame. Alguns setores era viciado e corrupto (“cavaleiros da indústria”, “parasitas”, “cafetões”, “jogadores”, “ladrões”, “falsários”, “magos”, “padres”, e em geral todos os que viviam misteriosamente, sem revelar suas práticas obscuras). Outro setor de trabalhadores era mais respeitado, apesar do trabalho ser não menos corrupto e imoral. Além, outra parcela de trabalhadores exercia algum encargo cuja função era, digamos, bem característica. Assim, os jurisconsultos se encarregavam de manter a animosidade para lhes conseguir os bens, os médicos só queriam reputação, o que conseguiam com seus olhares altivos e de doutos. Eles trabalhavam apenas para conseguir a simpatia dos farmacêuticos, das amas de leite, dos padres e de todos que conseguiam tirar dinheiro dos nascimentos ou dos funerais. Os padres eram “tão presunçosos quanto ignorantes”, preguiçosos, avarentos e vaidosos. Mas escondiam tudo isso do público. Alguns soldados, mesmo exonerados e ilesos da batalha, eram mais bem recompensados do que outros que perdiam partes do corpo. Os ministros roubavam o rei. A justiça era feita somente em cima das abelhas pobres e sem recursos, com condenação de pessoas que praticavam crimes por necessidade, “procurando proteger o poderoso e o rico”.

Apesar de todos esses vícios, pondera Mandeville que a sociedade das abelhas era feliz e próspera. Isso porque os vícios de cada integrante contribuíam para a felicidade geral. 

Ele escreveu este trecho:

Desde quando a virtude, instruída pelas malícias políticas, aprendera os mil felizes golpes de astúcia, e a partir de quando se unira em amizade com o vício, também os mais celerados faziam algo para o bem comum.

Conclui Mandeville:

a harmonia num concerto resulta de combinação de sons diretamente opostos. Assim, os membros daquela sociedade, seguindo caminhos absolutamente contrários, se ajudavam quase a contragosto [ … ]. O luxo faustoso ocupava milhões de pobres. A vaidade, essa paixão tão detestada, proporcionava trabalho para um número ainda maior. A própria inveja e o amor próprio, ministros da indústria, faziam florescer as artes e o comércio. As extravagâncias no comer e na diversidade dos alimentos, a suntuosidade no vestuário e na mobília, apesar de serem coisas ridículas, constituíam a melhor parte do comércio. Sempre inconstante, esse povo mudava as leis como as modas. [ … ] Todavia, alterando também as antigas leis e corrigindo-as, as abelhas se preveniam dos erros que nenhuma previdência teria podido prever. Desse modo, dado que o v?cio produzia a astúcia, e a astúcia se prodigalizava na indústria, viu-se a colmeia pouco a pouco abundar de todas as comodidades da vida. Os prazeres reais, as doçuras da vida, as comodidades e o descanso tornaram-se bens tão comuns que os próprios pobres viviam então mais prazerosamente que na vida anterior. Não teria sido possível acrescentar nada ao bem-estar dessa sociedade.

Mas, como nem tudo são flores quando se convive socialmente, o desgosto apareceu em determinado grupo de abelhas, que começou a amaldiçoar “as políticas, os exércitos e as frotas”, e espalharam tal indignação para todas as outras. Um certo comerciante gritou: “Bom Deus, dai-nos somente a probidade!”. 

Júpiter, indignado e atendendo o pedido, livrou a sociedade das abelhas do vício e da fraude. Aquela colmeia passou a ser honrosa, honesta e justa. Só que, como tudo na vida tem o seu preço, as consequencias vieram. É aquela velha história de arrumar um problema aqui e surgir outro ali, não tem jeito. Nosso otimismo serve para vencer as lutas, não tanto para se escapar de batalhas. Os que pensam o contrário estão enganando. 

Com efeito, os advogados ficaram sem empregos, as cadeias se esvaziaram e com elas um numeroso grupo de trabalhadores restaram inúteis (ferreiros, carcereiros, guardiães e auxiliares). Também o carrasco, “o sargento, os arrumadores e os domésticos”. Os médicos abandonaram o luxo, os eclesiásticos passaram a ser mais caridosos. Alguns que não se sentiram capazes de exercer algumas tarefas pediram demissão. 

Outra consequencia:

o preço das fazendas e dos edifícios veio abaixo. As encantadoras mansões, cujos muros, semelhantes às muralhas de Tebas, haviam sido erguidos com harmonia musical, tornaram-se desertas. Os poderosos, que antes teriam preferido perder a própria vida em vez de ver cancelar seus títulos faustosos esculpidos em seus soberbos pórticos, escarneciam agora dessas vãs inscrições. A arquitetura, essa arte maravilhosa, foi totalmente abandonada. Os artesãos não encontraram mais ninguém que os quisesse empregar. Os pintores não se tornavam mais famosos com suas pinturas. A escultura, a inscrição, o cinzel e a estatuária não foram mais renomadas na colmeia. 

Pior ainda é que “as poucas abelhas que sobreviveram viviam miseramente”. 

Em pouca quantidade, as abelhas sobreviventes conseguiam se defender dos ataques, mas com um custo muito alto. Milhares delas pereceram. O pouco resto sobrevivente, entregue ao ócio e ao descanso, para se precaver de qualquer recaída, viveu apenas da honestidade num oco de uma árvore.

Em suma, eis o recado do doutor Mandeville: Vivendo em sociedade, será que somos capazes de prever todas as consequencias de nossas ações, se serão elas boas ou más para o todo (e não apenas o “todes” ou “todxs”)? Ou, por outro lado, sendo mais grosso e politicamente incorreto, bastante cético, mais hobbesiano e menos rousseauniano, podemos confiar no ser humano sempre, na boa intenção de suas ações?

Em alusão ao conservadorismo, é difícil fazer mentes naturalmente imprudentes ou insanas acreditarem que a causa do conservadorismo não é atrapalhar a vida de ninguém. O objetivo do conservadorismo é o mesmo das abelhas, organização e prudência. Mas existem abelhas que agem dolosamente ou assumem o risco de botar tudo a perder.

Como em qualquer lugar, existem sempre “as ovelhas negras da família”. No caso, as abelhas negras do enxame. Família? Claro, estamos no mesmo barco. O ocidente não é só de um ou de um grupo. O que se faz repercute em outro. Ao contrário do que é apregoado, o conservadorismo tem essa consciência e, do que os fatos testemunham, não posso falar a mesma coisa dos progressistas.

Isso é até instintivo, mas no pequeno grande Breve manual do conservadorismo, Russel Kirk explica melhor. 

Colhe-se valioso escrito:

Ao longo do século XX, radicais têm tentado convencer o pensamento público de que os conservadores são inimigos da consciência. O conservador é um monstro do egoísmo, de acordo com o propagandista radical: o conservador acredita no ditado “cada um por si e Deus por todos”, o radical insiste; ele acredita em ganância como princípio, seu coração está endurecido contra o pobre e desafortunado na jornada da vida e quando fala de direitos e deveres, não passa de mero verniz para os próprios interesses egoístas. Os conservadores, o radical proclama, são de alguma forma moralmente impuros, cruéis e avarentos, dedicados à afirmação de que “os conservadores tomarão o poder e manterão os seus poderosos acima dos demais”. No entanto, a verdadeira posição do conservador inteligente é o oposto dessa caricatura radical. É claro, há conservadores egoístas e sem coração, assim como há radicais egoístas e sem coração: a persuasão política não pode por si mesma produzir a virtude privada, e todos nós somos pecadores em algum grau, seja qual for o nosso partido. Dito isso, a teoria do conservador pensante e sua prática comum remam a favor da consciência privada, retendo diante de Deus e da humanidade os direitos e os deveres que a consciência diligente exige em qualquer sociedade de qualquer época. Pelo contrário, é o radical doutrinador dos tempos modernos que nega a fonte divina da consciência, o senso de responsabilidade pessoal e o dever tradicional que dá significado à consciência. Alguns que se dizem conservadores sofrem do vício do egoísmo, do orgulho e da arrogância das posses, assim como alguns radicais professos padecem do vício da inveja, da cobiça dos bens do próximo. Apesar de tudo isso, estamos falando de princípios sociais, e não de falhas individuais.

A Fábula das abelhas teve enorme repercussão. Ela foi interpretada de diversas formas. Uns até dizem que ela é libertária, valorizando a imoralidade. Filosoficamente ela implica em uma dupla viés interpretativo. Ou não sabemos ou não podemos prever as consequencias de nossos atos. Ou de boas intenções o inferno está cheio. 

Encarando a referida fábula como um espelho em nossa frente, podemos concluir que: somos prudentes, organizados ou políticos (no sentido de associados); somos néscios ou imprudentes; ou, por fim, somos total ou parcialmente malvadões, não estamos nem aí para o todo. Ou seria para “todxs”?

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Sergio Renato de Mello

Sergio Renato de Mello

Sergio Renato de Mello, brasileiro, casado, Defensor Público de Santa Catarina, residente em Rio do Sul, Santa Catarina.

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