“Elus” estão “alucinades”

A linguagem não é uma entidade privada. A maneira com que as pessoas se comunicam não é inclusiva, democrática ou revolucionária. A língua, em sua essência, não tem a obrigação de representar coletivos, grupos sociais ou até mesmo vontades políticas. O estabelecimento de laços de comunicação não pode estar submetido aos ditames de agendas políticas específicas. A linguagem não é a encarnação de uma ideologia.

Claro que para os herdeiros de Marx isso não é verdade. Aliás, essas afirmações não passariam de um jogo supostamente ideológico que busca legitimar os opressores em uma sociedade que é marcada por uma eterna luta de classes. No caso em questão, qualquer tentativa de modificação da linguagem iniciada por grupos que buscam quebrar a tradição, funciona como um elixir que revigora o marxismo contemporâneo.

No momento em que coletivos buscam a privatização de um fenômeno linguístico que ocorre no cotidiano, nas ruas, na imersão da literatura e no melhor uso da capacidade de comunicação que os indivíduos possam construir, há a substituição do natural pelo artificial. Para os soldados da revolução cultural progressista, que vislumbram construção social em todos os aspectos da vida, o tema do uso de uma língua é um prato cheio para demonstrar que estão corretos, afinal, é inegável que a linguagem é um produto cultural elaborado através dos tempos.

Todavia, o grande problema reside em um ponto: a naturalidade versus a artificialidade. Quando o uso da linguagem obedece a padrões estabelecidos pelas necessidades de uma época ou até mesmo pelas razões insondáveis de uma prática cultural, existe certa aura mental apaziguadora que permite a elaboração de palavras, termos, gírias e novos significados que acabam por naturalizar um determinado processo de comunicação. As pessoas inseridas nessa realidade não estão sujeitas as vontades de uma ideologia, ao arbítrio de um grupo ou sequer buscam elogios nas fileiras das agendas políticas de grupos de poder. Elas simplesmente, em virtude do contexto em que estão inseridas, seja de uma época ou de uma cultura, fixam novas formas de comunicação que se adaptam às antigas com o intuito de simplesmente facilitar a comunicação.

Mas, para aqueles que buscam inserir a política dentro da linguagem, imaginando que a língua é mais um espaço aberto que pode ser ocupado pela incessante e insaciável revolução cultural, qualquer modificação nas estruturas de comunicação deve necessariamente atender aos requisitos das pautas políticas dos agentes coletivos que supostamente são alvo de opressão. Assim, a modificação linguística ocorre de fora para dentro: a ideologia informa o desejo de um grupo.

Mais uma vez, para os paladinos da revolução cultural progressista, a busca pelo rompimento das boas tradições que estruturaram nossa forma de comunicação é só mais uma etapa disruptiva que pode trazer o sonho de uma utopia redentora. Se é bem verdade que a língua não é uma estrutura imóvel e paralisada pelo tempo por meio de usos consagrados, é igualmente verdadeiro que uma transformação que atende exclusivamente anseios coletivistas não passa de um processo de privatização de algo necessariamente público.

A ordem ou as regras de linguagem não existem para excluir pessoas. Elas são fatores que potencializam o senso de unidade que permite a todos os partícipes da língua a construção de elos que os colocam em patamar de igualdade. A desconstrução arbitrária da linguagem destrói a unidade. A desconstrução arbitrária da linguagem aniquila sentidos comuns. A desconstrução arbitrária da linguagem é um projeto totalitário em que a comunicação é invadida pela política.

Na caixinha de surpresas do mundo contemporâneo, um dos grandes cavalos de batalha que auxilia no impulsionamento da agenda revolucionária está na linguagem. Pelo menos é o que este “fim” dos tempos nos apresenta. Na escada para o sucesso do movimento progressista, o degrau da comunicação é vital para que suas políticas possam ter algum objetivo. Sem uma nova linguagem, não existe modificação cultural. Se o uso de uma língua estabelece a comunicação e pode ofertar novos significados, o domínio da linguagem equivale a descoberta do fogo para estes primitivos progressistas.

Claro que para o pacote disruptivo cultural ficar completo, basta aliar uma modalidade de um esporte de massas dentro de um evento mundial. Pronto! Eis a fórmula mágica para atingir milhões de mentes e (pelo menos tentar) causar um grande estrago.

Logo nos primeiros momentos das Olimpíadas de Tóquio 2021, em partida de futebol feminino realizada entre Canadá e Japão, Natália Lara, narradora do SporTV, e o comentarista Conrado Santana se apresentaram como os novos avatares da pauta linguística. Para se referir à jogadora de futebol do Canadá Quinn, Natália não poupou esforços em assassinar a língua portuguesa ao reproduzir aquilo que já está difundido no ambiente progressista, mais progressista: a ideia de que ele ou ela podem ser “elu”. Assim, quando Quinn foi substituída por Deanne Rose, a narradora apelou para a ideia coletivista de neutralidade: “Agora vou usar o pronome ‘de’ Quinn para a entrada ‘da’ Rose. Quinn, que é uma pessoa trans não binária, por isso a gente fala com pronome neutro. Então, saindo Quinn para a entrada da Rose”. Como se a tristeza linguística não fosse suficiente, o comentarista Conrado Santana declarou que “‘elu’ tá saindo e ‘elu’ jogou muito bem no meio campo […]”, o que atiçou os neurônios da narradora para ofertar um complemento ainda mais contundente: “‘Elu’ está saindo e entrando ela”, enfatizou Natália. O portal Gshow, ligado a Globo.com, declarou, em sua manchete, que a narradora e o apresentador “deram aula e a gente precisa aprender!”, o que foi repetido pelo site UOL. Ou seja, quem ousa discordar?

Quinn, que nasceu Rebecca Catherine Quinn, ao se declarar transgênero não binária, adere aquela salada de frutas típica da natureza humana: somos seres naturalmente plurais, diversos e que apresentam variáveis e (por vezes) insondáveis formas de participar fisicamente do mundo que nos cerca. E a jogadora em questão se identifica como transgênero, ou seja, ela não se vê como pertencente ao gênero de nascimento, mas com um adendo: ela é não binária. Em outras palavras, Quinn não se vislumbra como mulher, mas também não se identifica como homem, pertencendo a uma espécie de “limbo” dos gêneros.

Mas dentro dessa opção, inclinação ou determinação biológica “sentida” por Quinn, surge um “pequeno grande” problema: se Quinn é transgênero, mas não se enquadra na modalidade binária (o que fatalmente a faria “pertencer” ao gênero masculino), por qual motivo ela compete em uma modalidade esportiva feminina? De forma muito franca, é possível dizer que não existem esportes para um “terceiro” gênero ou para aqueles que se compreendem como neutros. No entanto, Quinn optou por praticar o futebol feminino por qual motivo? Mesmo sendo transgênero? E não binária? Será que as limitações biológicas não pesaram em sua decisão? Mas, ao mesmo tempo, Quinn não se vê totalmente enquadrada com a condição de mulher, apesar de praticar futebol feminino? Não poderia tentar carreira no futebol masculino?

Reparem que o esporte é um pano de fundo para essa questão. Imaginem, dentro das hipóteses imprevisíveis que a vida pode criar, se Neymar se declarasse transgênero (nem acrescentarei o não binário para não problematizar) e optasse pelo futebol feminino. Seria justo com as mulheres? É evidente que não. Qualquer modificação de uma condição imposta pela natureza quanto a prática esportiva, retira o nível de mensuração que possibilita uma razoável condição de competição entre pessoas distintas, mas que estão em adequada igualdade de gênero. E Quinn deve saber disso, apesar de suas escolhas.

A linguagem, assim como o esporte, não é necessariamente inclusiva. Muito menos excludente. Mas quando a política invade estas áreas da vida, ela exclui as possibilidades de inclusão. Se as práticas esportivas foram desenvolvidas por homens e as mulheres buscaram participação, ao longo dos anos julgaram por bem o desenvolvimento da modalidade feminina para que possam competir em alto nível entre “iguais”. Um transgênero biologicamente homem representa o início do fim de uma modalidade essencialmente feminina. É um acinte para com as mulheres. E isso não significa discriminar (negativamente), achincalhar ou impossibilitar que transgêneros possam praticar esportes, mas sim delimitar suas possibilidades de espaços dentro da realidade que a natureza oferta.

No campo da comunicação, a língua é fator de união que possibilita a congregação das mais diversas pessoas em torno de uma cultura. Modificações, inclusões e exclusões de termos, usos, gírias, palavras e conceitos são absolutamente legítimos frente as modificações da vida. A linguagem é viva? Óbvio que sim e é um fato que ela não deve ficar encastelada nos muros que envolvem a academia ou até mesmo dentro das capas de grossos livros. Seria uma imbecilidade pensar que a manutenção das regras gramaticais passa pelo seu enclausuramento.

Todavia, incorre na mesma estupidez aquele que imagina uma língua à imagem e semelhança da luta de classes. A linguagem submetida a uma ideologia se torna escrava das vontades momentâneas dos grupos políticos. O processo de desnaturalização das práticas de comunicação, do estabelecimento de vínculos linguísticos culturais ou da construção de símbolos de fala e escrita, não equivale a uma pasteurização da linguagem com o objetivo de que se afastem ideias antiquadas da realidade presente. O desprezo da naturalidade linguística provoca uma artificialização ideológica da comunicação.

A linguagem é viva porque respeita o tempo. Ela é viva porque obedece a uma dinâmica histórica curiosa: respeita o passado para refletir sobre o presente e pensar no futuro. Algo simples e bem conhecido por não revolucionários. A criação totalitária de termos como “elu”, “todes”, “alunxs”, “querid@s” ou qualquer coisa equivalente é um constrangimento mental que elimina o senso de razoabilidade linguística.

Essa luta travada no campo da linguagem não é estabelecida entre imaginários opressores excludentes contra pessoas que buscam sua representação social por meio da expressão da língua. O curso da guerra é cultural: entre os que desejam preservar a boa tradição contra aqueles que agem em nome de ideologias coletivistas, revolucionárias e que detestam qualquer tradição. No meio de tudo isso ainda existem os idiotas úteis que repetem inconscientemente os mantras ideológicos. Entre elas, eles e “elus”, existe uma grande certeza binária: civilização versus barbárie revolucionária. Ou seria “revolucionarie”?

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As posições expressas em artigos por nossos colunistas, revelam, a priori, as suas próprias crenças e opiniões; e não necessariamente as opiniões e crenças do Burke Instituto Conservador. Para conhecer as nossas opiniões se atente aos editoriais e vídeos institucionais

João L. Roschildt

João L. Roschildt

Professor do curso de Direito do Centro Universitário da Região da Campanha (Urcamp). Além de articulista e ensaísta, é autor de “A grama era verde”. Site: www.joaoroschildt.com.br

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