Não essencial

Qualquer reflexão prática necessita de um contexto. Em abstrato, atitudes, ações e princípios gerais de ação podem soar simplistas quando inseridos em uma realidade concreta. Por mais que abstrações e teorias sejam extremamente úteis para estabelecer padrões de condutas para que o homem sensato e prudente possa saber como agir quando um problema surge, é inegável que as ciências práticas, tais como a política, a ética e até mesmo o direito, necessitam de aplicações reais para que possam possibilitar o exercício das virtudes.

Em outras palavras: na teoria os homens se comportam de uma forma; na prática, pode ser de outra. Isso funciona mais ou menos como uma excludente de ilicitude no direito penal. Como regra geral, ninguém pode matar outrem, mas em um dado contexto e frente a determinadas circunstâncias, é possível aceitar que uma atitude não mereça ser punida, como, por exemplo, no caso da legítima defesa.

E tal acessório da contextualização é de extrema utilidade para uma ampla gama de questões humanas. Pelo menos enquanto se deseja compreender as atitudes humanas, é fundamental entender as circunstâncias que motivaram um comportamento qualquer. A mera lembrança da cabeçada aparentemente despropositada de Zinedine Zidane em Marco Matterazzi, na final da Copa de 2006, ilustra bem o que foi dito: o que motivou “Zizou”, justificou sua agressão?

Mas o que isso tem a ver com a ideia acerca do que é essencial? Essencial para uma comunidade? Essencial para um indivíduo? Essencial para um animal? Essencial para um partido político? Essencial para um time de futebol? Essencial para o cultivo de uma cultura em uma fazenda? Afinal, o que é essencial?

A ideia de que algo é essencial remete a indispensabilidade. Ou pelo menos a impossibilidade de obter qualquer tipo de resultado positivo com alguma coisa quando lhe falta essa “seiva” vital. Poderia se afirmar que é essencial que um time de futebol possua bons jogadores para que possam vencer um campeonato? Na maior parte dos casos, creio que sim. E creio que muitas pessoas concordarão com isso, mesmo que debatam quais critérios podem definir o que é um bom atleta neste esporte.

Da mesma forma, pode-se dizer que é essencial para que um grupo de balé seja reconhecido internacionalmente que ele possua bons bailarinos. Mais uma vez, a busca por um critério definidor para catalogar quem dança bem é a grande questão, mas não se duvida da afirmação, em abstrato, daquilo que é essencial para um grupo de balé. De forma resumida, mesmo que a questão guarde algumas controvérsias típicas de cada área de análise, o essencial é uma condição sine qua non para que algo obtenha sucesso ou possa existir com razoável desempenho.

No entanto, se o assunto ingressa na busca por critérios que possam conceituar o que é uma vida digna, tentando estabelecer bens materiais e espirituais que possam definir o que é essencial ou não para tal vida, o grau de complexidade ganha novos contornos. Em teoria, pode-se imaginar características universais para todos os indivíduos; na prática, o contexto social ou econômico de um dado país pode afetar a ênfase em certo aspecto tomado como essencial, em detrimento de outros igualmente importantes. Bem, é essencial que todos os seres humanos tenham atendidas minimamente suas necessidades fisiológicas para que possam viver de forma saudável. No entanto, o essencial para um dinamarquês pode ser muito diferente daquilo que se entende como essencial para um cidadão da Líbia.

Uma economia pujante ou em frangalhos, instituições políticas sólidas ou corrompidas, laços sociais de auxílio mútuo ou uma severa luta pela sobrevivência egoísta e um sistema de justiça probo ou instituições jurídicas carcomidas podem ser fatores que determinam o que é essencial para um indivíduo viver bem ou não. Mesmo que existam padrões universais para os seres humanos, ainda é possível afirmar que resta um considerável espaço para que as variáveis do contexto no qual alguém está inserido possam informar o que é fundamental para o bem viver.

Em razão da pandemia da Covid-19, o governador do Estado do Rio Grande do Sul (RS), Eduardo Leite, estabeleceu um decreto, em 05/03/2021, que buscava conter a expansão do coronavírus em território gaúcho. Dentre as medidas, o governador resolveu definir (assim como outros governadores e prefeitos já fizeram) de forma arbitrária que os estabelecimentos que estavam autorizados a funcionar e comercializar seus produtos não poderiam vender produtos não essenciais.

Como no RS já existia uma restrição quanto ao horário de abertura dos estabelecimentos comerciais, o decreto resolveu ir além: caso um supermercado comercializasse um produto não essencial em horário de funcionamento reservado às atividades exclusivamente essenciais, ele poderia ser alvo da ação punitiva do Estado. Em outros termos, em um horário exclusivo para o funcionamento de atividades essenciais, aquelas que não são, não poderiam ser executadas. Um supermercado, durante o horário exclusivo para atividades essenciais, poderia vender produtos de alimentação, higiene e limpeza; a oferta de aparelhos eletrônicos (tomados como não essenciais) estava proibida. Isso para não falar no fechamento de bares, restaurantes, lancherias, sorveterias, salões de beleza, barbearias, academias de musculação ou na “eficaz” proibição de banho de mar ou prática de esportes aquáticos (mesmo que de forma individual – seria uma prevenção para que um indivíduo não transmitisse o vírus a si mesmo?).

O ilustríssimo governador do RS, amigo de João Dória e que já compartilhou sorrisos e conselhos ao lado de Barack Obama, disse que no caso dos supermercados haveria uma redução quanto “a circulação, a entrada e a permanência nesses estabelecimentos”. Ora, nem é preciso dizer que, na prática, o que mais afeta a circulação, entrada e permanência (o que, em outros termos significa mais ou menos aglomeração de indivíduos) é a questão da maior ou menor restrição quanto ao horário de abertura e fechamento de qualquer atividade comercial. Se ela pode ficar aberta 24h por dia, provavelmente tenha um menor número de pessoas aglomeradas em seu espaço físico; se tem de fechar suas portas com 2h de antecedência do que era habitual, provavelmente mais pessoas sejam conduzidas para dentro do estabelecimento em um mesmo horário.

A partir destas e outras medidas draconianas (pobre do Drácon!), muitas críticas surgiram nas redes sociais. Entre os protestos mais indignados estavam aqueles que afirmavam que políticos não eram essenciais. Ou seja, aqueles que representam a sociedade (mal ou bem, com aprovação ou rejeição) no espaço do poder público político, ao tomarem medidas do calibre de Leite, mostravam o quanto eram nocivos a sociedade, devastando uma economia que já estava em dificuldades e criando decretos que não auxiliam em nada na contenção do novo coronavírus. Mas quais foram as razões “sientíficas” que embasaram este decreto e outras medidas drásticas? Os grilos responderam que…

Ora, mas se políticos não são essenciais, o que faz com que o cidadão médio aceite as medidas impostas por governantes como Leite? Qual a crença popular que não vislumbra como essencial quem gera renda e sustenta sua família com o esforço diário, mas ao mesmo tempo louva e aceita os ditames de políticos que são sanguessugas do erário público, pagos por aqueles que empreendem diariamente?

As razões podem ir de uma busca por um paternalismo estatal que proteja os indivíduos das oscilações da vida, até o famoso patrimonialismo brasileiro. Independentemente disso, os políticos são essenciais?

Depende. Dentro do contexto da crítica levantada, contra os irracionais e injustificáveis decretos estaduais e municipais que não resolvem nada, mas estragam tudo, é óbvio que os políticos que determinam tais medidas são absolutamente inúteis e maléficos para a sociedade. Não são nem um pouco essenciais. No entanto, em um contexto mais abstrato, calcado na noção de que instituições públicas precisam ser geridas para que o bem viver da pólis permita o florescimento humano dos indivíduos, é inegável que políticos são essenciais para um sistema social.

E aqui há uma firme ressalva: não se está a falar de quaisquer políticos e de instituições que “sufocam” as liberdades humanas. O ponto é pensar o papel do político como um sujeito com firme propósito público, que não glorifique sua vida privada com o status público conferido pela tarefa que executa e que as instituições respeitem os bens humanos básicos que cada indivíduo tem como direito para que possa gozar de uma boa vida.

Assim, surge outro aspecto relevante: como mensurar qual estabelecimento comercial pode ou não abrir, restringindo a capacidade econômica das pessoas de sobreviverem em meio a uma já deficiente economia? Como um produto é classificado como não essencial simplesmente por ser eletrônico? Qual o motivo científico que justifica a restrição no horário de funcionamento como eficaz no combate a disseminação do coronavírus? Como Leite, um não essencial por natureza, definiu quem não pode trabalhar?

Se um dos pilares do conservadorismo pode ser expressado pela política da prudência, na antessala dos problemas reais é obrigatório acessar o tempo presente com um caderno de anotações que liste as possíveis consequências que a atitude de hoje acarretará no futuro. Leite sequer imagina o que é isso. Como uma marionete guiada por um sistema que faz as leituras erradas da realidade, ele supõe que suas medidas tenham o poder de conter aquilo que não depende de decretos. Caso ocorram melhorias, seu decreto será visto como a chave que guiou os gaúchos para a luz; caso não diminua a disseminação viral, a culpa será do povo que não tomou as medidas de higiene e distanciamento necessárias. Não existe ego maior do que aquele que crê somente em si. Detalhe: em julho de 2020, mesmo com discursos e práticas que buscavam limitar a expansão do novo coronavírus, Leite contraiu o vírus. Mas o que ele fala e estabelece por decreto, funciona ou não?

É absolutamente compreensivo quem afirma que políticos desse naipe não são essenciais. É um fato. Também é razoável afirmar que os políticos, em geral, são bem menos essenciais do que marceneiros, lixeiros, barbeiros, trabalhadores de petshop ou de restaurantes. Mas não se pode tomar o todo pela parte, mesmo que as partes sejam abundantes no todo. Políticos são essenciais para gerir instituições políticas. E ponto final. Não são essenciais para gerir a vida alheia tolhendo a liberdade e liquefazendo a economia.

Se os clássicos servem para alguma coisa, é importante lembrar do zoon politikon aristotélico. Se somos animais políticos, fadados ao convívio público na pólis em razão da nossa faculdade que possibilita o uso da razão e da fala, é inegável que políticos são essenciais. Cortar a atividade política decretando-a como não essencial significa cortar parte significativa da natureza humana. Portanto, Leite e seus símiles é que devem receber a pecha de não essenciais.

Apesar de críticas ferozes ou elogios fervorosos, é interessante acompanhar a fala do presidente da República, Jair Bolsonaro, sobre o que é uma atividade essencial. Em um Brasil assolado por decretos que brincam de definir o que é essencial ou não, Bolsonaro ousou e resolveu “inovar” ao seu estilo. Para ele, “atividade essencial é toda aquela necessária para um chefe de família levar o pão para dentro de casa”. Dentro da estrutura das atividades laborais honestas e lícitas, alguém, de maneira razoável, discordaria dessa afirmação?Se não concorda, tome um leite em seu home office e comece a matutar sobre isso. Mas não se esqueça do contexto de um pai desempregado ou que está impedido de trabalhar em razão desses decretos estúpidos e compare com o de um político que adora gravar lives no conforto do Palácio Piratini na companhia de seu cão Schnauzer de nome Bento, como é o caso de Leite. Nesse momento, Prenda, minha amiga Pequinês rosnou. Quem é não essencial?

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As posições expressas em artigos por nossos colunistas, revelam, a priori, as suas próprias crenças e opiniões; e não necessariamente as opiniões e crenças do Burke Instituto Conservador. Para conhecer as nossas opiniões se atente aos editoriais e vídeos institucionais

João L. Roschildt

João L. Roschildt

Professor do curso de Direito do Centro Universitário da Região da Campanha (Urcamp). Além de articulista e ensaísta, é autor de “A grama era verde”. Site: www.joaoroschildt.com.br

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