No final do mês de janeiro, em uma entrevista para o Valor Econômico o atual ministro da educação Ricardo Vélez Rodríguez, afirmou: “A ideia de universidades para todos não existe. As universidades devem ficar reservadas para uma elite intelectual, que não é a mesma elite econômica.” A declaração corajosa do ministro provocou certa polêmica; os intelectuais e jornalistas de esquerda prontamente buscaram de todos os modos e vias associar o posicionamento com uma particular forma de elitismo que, na visão neomarxista, é uma manifestação específica do pensamento conservador e reacionário. Sem entrar propriamente no mérito desta discussão, sublinho que esta controvérsia é mais um indício da predominância em importantes e significativos círculos culturais de uma mentalidade igualitarista e homogeneizadora, fortemente propensa a rechaçar qualquer forma de meritocracia, seleção e distinção social baseada em critérios morais e espirituais. Como outras noções, o termo elite é visto por nossas classes falantes progressistas como um palavrão, algo repugnante e pecaminoso que precisa ser evitado e repelido a qualquer custo.
Para a nossa iluminada intelligentsia, fazer parte das elites – ser de elite – entendo aqui esta categoria num sentido amplo, é alguma coisa de essencialmente ruim e condenável. Mas, por outro lado, posar como defensor do povo, das massas, e advogar, ao menos da boca para fora, pela eliminação de qualquer tipo de diferenciação social, e lutar contra os “privilégios de classe” e as hierarquias é uma prova inequívoca de evolução cultural e tolerância. Noções como povo, massa, igualdade e inclusão são sob certo aspecto mitificadas, assumindo um halo de sacralidade e de intocabilidade na gramática politicamente correta dominante. É um imperativo categórico de nossa época ser popular, ou pelo menos parecer popular, agradar as massas e levantar com entusiasmo juvenil a bandeira da igualdade.
Ora, o preconceito e o desprezo pelas elites é um sintoma. De algum modo, a transformação do significado primário de uma palavra é um sinal de uma mutação mais ampla e profunda que ocorre inicialmente no campo dos valores e na visão do homem e do mundo. Em geral, a revolução semântica é precedida por uma revolução cultural que altera o senso comum. O sentido originário e primigênio do conceito elite foi completamente desfigurado e pervertido. Elite, ao contrário do que apregoam com contumácia os bem-pensantes e os grandes meios de desinformação e massificação, não significa propriamente um pequeno grupo de homens inescrupulosos que, movidos unicamente pela ambição e a vontade de poder, buscam dominar e explorar as massas. Isto é na verdade uma pseudo-elite, ou melhor, uma oligarquia, uma corrupção e deformação de uma autêntica elite. O Dicionário Caldas Aulete assim define com clareza e precisão o sentido primordial do termo elite: “o escol, a flor de uma sociedade. Minoria mais apta, ou mais forte, dominante no grupo”. Com efeito, é no mínimo um erro de percepção e julgamento identificar a existência de verdadeiras elites e aristocracias com um vil maquiavelismo e uma vontade titânica de poder e dominação fundada na vaidade, na ganância e no orgulho exacerbado. Uma elite genuína não apresenta estas características.
Em termos históricos e sociológicos, não é possível imaginar e constatar concretamente uma comunidade, um povo, sem uma “classe diretora”, sem a presença em sua configuração social de elites, “ minorias seletas” e de pequenos grupos humanos que se destaquem por sua coragem, honestidade, inteligência, sabedoria e força anímica. Uma sociedade sem grupos dirigentes, distinções e hierarquias é uma utopia, um exercício de pura abstração, uma mera especulação de gabinete.
Importantes sociólogos e cientistas políticos como Robert Michels, Vilfredo Pareto e Gaetano Mosca demonstraram que, apesar da fachada igualitária e pluralista, mesmo nas modernas sociedades com democracias representativas o poder político, o aparato governamental, concentra-se nas mãos de “elites”, de uma classe dominante minoritário que decide, comanda e manipula a opinião pública e os destinos coletivos. Estas elites de poder formam um grupo privilegiado, uma estrutura de dominação que, para além do sistema nominalmente democrático, detém um efetivo e real controle social, cultural e econômico. Estes autores perceberam que as massas não são governadas por si mesmas; de fato e concretamente não governam as maiorias, mas as minorias astutas e organizadas. Vigora, portanto, nos sistemas políticos parlamentares e partidocráticos o que Michels definiu como a “lei de ferro das oligarquias”. Em todas as sociedades contemporâneas há um grupo minoritário e restrito que governa e manda e uma maioria – o povo – que é governado e obedece as regras e normas impostas pelo núcleo dirigente. As oligarquias dominantes, no entanto, não se eternizam no poder; há o que Pareto descreveu como o princípio da “circulação das elites”. As diversas e múltiplas pseudo-elites políticas e econômicas nos sistemas sociais modernos disputam poder e privilégios. Existe uma alternância permanente entre grupos minoritários que buscam conquistar a máquina governamental e posições estratégicas. Antigas e desgastadas elites são, deste modo, substituídas por novas, dinâmicas e ambiciosas elites. Resumidamente, estes cientistas sociais apontaram para a realidade inelutável da presença de classes dirigentes e dominantes mesmo nas estruturas políticas baseadas na ideia de democracia representativa. Estas elites controlam os principais recursos e mecanismos de poder econômico, cultural, social e político formando o que, atualmente, é chamando de “sistema”, ou melhor, o establishment.
Há uma relação direta entre o declínio dos estamentos aristocráticos, a crise e o enfraquecimento das elites espirituais, intelectuais e morais, e o domínio da vida política e social por oligarquias e classes dirigentes constituídas por arrivistas maquiavélicos destituídos de qualquer preocupação comunitária. Constata-se, especialmente em razão do vácuo deixado pelo esfacelamento das antigas nobrezas, a preeminência do poder do dinheiro e dos interesses mercantis nas nações modernas, assim como o sequestro da esfera política por lobbies, grupos de pressão e organizações subversivas. Se em outras épocas e culturas, em particular no Ocidente durante o Medievo e no cunhado Antigo Regime, existia uma sociedade de ordens e estados formada fundamentalmente pelo clero, a nobreza e o povo, conforme assevera o historiador Roland Mounier (1974), com a prevalência de elites espirituais e aristocracias guerreiras, é notável na modernidade e no mundo contemporâneo a ascendência das classes econômicas e tecnocráticas.
Neste sentido, a lição do pensamento político clássico, principalmente Platão e Aristóteles, permanece atualíssima: a primazia das oligarquias está intimamente vinculada à corrupção e decadência das aristocracias. A oligarquia é uma aristocracia degradada, uma minoria dominante egocêntrica e plutocrática que só pensa em manter e maximizar seus interesses materiais e de domínio, olvidando por completo do bem comum e dos valores do espírito.
As verdadeiras elites:
O que distingue e caracteriza uma autêntica elite, como também uma verdadeira aristocracia, não são tanto os direitos, privilégios e honrarias, mas o sentido do dever, e o senso das obrigações e responsabilidades. A tradicional máxima noblesse oblige (a nobreza obriga) revela os compromissos, preceitos, exigências e as limitações que as elites aristocráticas e dirigentes do passado tinham que seguir de maneira inflexível. O filósofo espanhol Rafael Gambra (1947), lembra que as antigas aristocracias europeias não podiam exercer determinadas ocupações profissionais e atividades, como, por exemplo, àquelas relacionadas ao comércio, aos negócios mercantis e ao trabalho manual e mecânico, proibições estas relacionadas com o ideal e a vocação específica da nobreza que, orientada por determinadas hábitos e uma ética particular, deveria dedicar-se integralmente ao serviço público, e a atividades ligadas à guerra, ao cultivo do espírito, às artes e ciências, à religião e à direção política de uma comunidade.
As legítimas elites formam uma nobreza do espírito, minorias seletas e excelentes tão bem descritas por Ortega y Gasset em sua grande obra A Rebelião das Massas:
Quando se fala de “minorias seletas”, a velharia habitual costuma tergiversar o sentido desta expressão, fingindo ignorar que o homem seleto não é o petulante que se supõe superior ao demais, mas o que exige mais de si que os demais, embora não consiga cumprir em sua pessoa essas exigências superiores. E é indubitável que a divisão mais radical que cabe fazer na humanidade é esta em duas classes de criaturas: as que exigem muito de si e acumulam sobre si mesmas dificuldades e deveres, e as que não exigem de si nada especial, mas que para elas viver é ser em cada instante o que já são, sem esforço de perfeição em si mesmas, boias que vão à deriva (Ortega Y Gasset, 1971, p.52).
Com o seu duro e rigoroso código de conduta, com a sua austera e severa formação, seu forte sentido de honra e dignidade, assim como seu peculiar estilo e modo de vida, as antigas elites aristocráticas eram para o povo como um arquétipo, um espécie de espelho daquilo que, realmente, necessitava ser valorizado e estimado. As aristocracias exerciam certo magnetismo, cumprindo uma função cultural de paradigma antropológico a ser imitado pelas pessoas mais simples. Na realidade, todas as grandes civilizações do passado possuíam um modelo humano, um tipo representativo, um ideal do homem pleno e realizado que se alçava como norma de orientação e critério de medida. Este é um ponto decisivo. De acordo com o filósofo belga Marcel de Corte (2005):
Para além das pequenas sociedades de fins limitados e de virtudes quase sempre ligadas a um ofício ou profissão, existe aquilo que se pode chamar de “a grande sociedade”, o conjunto dos homens que participam da civilização comum e possuem uma mesma concepção do homem. As civilizações passadas tiveram elites que encarnavam certo ideal humano; todas se propuseram a concretização dum tipo humano cuja essência se conformava à sociedade; para alcançar tal fim, cultivaram virtudes propriamente humanas. É impossível compreendermos a civilização grega sem conhecer o kalos kagathos, “o belo e o bom” de que se compunha a flor dos cidadãos; a civilização romana sem o vir bonus dicendi peritus ou sem o civis romanus; a civilização medieval sem o santo, o cavaleiro, o hidalgo; a civilização francesa do séc. XVII sem o honnête homme; a civilização inglesa anglo-saxã sem o gentleman. Uma civilização não se limita a ser um repositório de obras literárias, artísticas, científicas e religiosas: é antes certo modo de vida, de atitudes e de hábitos que distingue o homem do animal, e cuja perfeição e maturidade é alcançada pelos melhores, i. e., pelas elites. Por isso, as grandes civilizações puseram em relevo certo tipo humano e de modelo humano que talvez não exista, mas cuja atração ordena os esforços dos que se beneficiam de seu esplendor.[1]
Considerações finais:
O sentido original da palavra elite, bem como as concretas e autênticas aristocracias do passado, pouco tem a ver com o mero poder econômico e a riqueza. Ademais, há que se estar atento ao perigo de perceber e conceber as “minores seletas” em sentido exclusivamente intelectual, de erudição e cultura livresca. O surgimento e a constituição de falsas elites exclusivamente baseadas no poder material e no dinheiro, ou então em qualidades unicamente de ordem intelectual e “cerebral”, é algo que se consolida apenas na modernidade que, como bem observou Marcel de Corte (2005), tende a hipertrofiar de maneira teratológica os valores materiais e a racionalidade abstrata desvinculada da vida e do real. Uma elite cultural de “pensadores sofisticados” e “gênios da ciência” exclusivamente estribada em modismos doutrinários, ideologias exóticas e noções rebuscadas em nada poderá contribuir com a tarefa de restauração dos princípios e instituições tradicionais que configuraram a civilização ocidental.
Como sublinha Rafael Gambra (1947), em uma genuína elite o elemento decisivo e basilar é o valor moral, a qualidade espiritual e a integridade do caráter, que, resumidamente, se caracteriza por ser uma síntese do espírito religioso e do sentido social de servir à comunidade. As autênticas e verdadeiras aristocracias e elites dirigentes cumprem o importantíssimo papel de guardiãs das tradições culturais e religiosas de um povo e de protetoras da ordem política e da harmonia social.
Diante da massificação despersonalizadora e do predomínio na pós-modernidade de um “espirito plebeu” mesquinho e vulgar, é cada vez mais necessário formar novas elites que encarnem valores superiores e que exerçam uma efetiva ação pedagógica, formadora e orientadora. Elites e aristocracias que através de condutas, gestos e do seu ethos peculiar exemplifiquem uma vida marcada pela disciplina, lealdade, franqueza, gravidade, autodomínio e ascetismo.
Referências bibliográficas:
Corte, Marcel de. L’homme contre lui-même. Éd. de Paris, 2005; págs 107-137. A Crise das Elites. Tradução: Permanência. Disponível em: http://permanencia.org.br/drupal/node/1367. Acesso em: Acesso em: 20/10/2018.
Gambra, Rafael, El problema de las clases directoras en la sociedad contemporánea, en Revista Internacional de Sociología 18 (Madrid), 1947, pp. 364-367.
Ortega Y Gasset, José. A Rebelião das Massas. Livro Ibero- Americano: Rio de Janeiro, 1971.
Mounier, Roland. As Hierarquias Sociais. Publicações Europa-América: Lisboa, 1974.
[1] Disponível em: http://permanencia.org.br/drupal/node/1367. Acesso em: 20/10/2018.