Ponto de partida: a sedutora ideia igualitarista

Recentemente acompanhei um pequeno debate nas redes sociais. Dentre tantos, um acabou me chamando atenção pela peculiaridade: um professor que recentemente saiu do armário intelectual versus um aluno razoavelmente inclinado ao conservadorismo.

Quando digo que o docente saiu do armário intelectual, isso significa que durante a pandemia ele se revelou um militante progressista com bastante afinco. As razões? Não vem ao caso, mas desconfio que seja por conta de alguns interesses escusos que visam benefícios na ampla teia de contatos acadêmicos que concedem títulos de ostentação universitária por laços de afinidade, não por capacidade. Quanto ao aluno que defende o conservadorismo, ele é mais um indivíduo que luta para sobreviver e preservar os bons valores de nossa sociedade.

Bem, o fato é que as redes sociais são propícias para as mais variadas loucuras do pensamento. Travessuras, magias e gracejos teóricos se prestam a tentar encantar, emocionar e sensibilizar os interlocutores, mesmo que sejam rigorosamente avessos aos fatos. Ao mesmo tempo, as redes sociais expõem demasiadamente aqueles que desejam se expor: para a glória ou para o ridículo.

Apesar de saber que a idiotice é onipresente nos seres humanos, é inegável que existem visões de mundo que são mais propícias para a estupidez. O progressismo, com sua falsa robustez argumentativa e com seu apelo emocional, é uma fumaça tóxica para a sociedade. E isso, por si só, atrai sujeitos despreparados no uso da racionalidade, falsos profetas, desonestos, ignorantes e adeptos da má-fé. Não é exagero algum afirmar que o progressismo é uma fábrica de suplicantes sentimentais gerenciada por burocratas entorpecidos pelo que há de pior no pensamento Ocidental.

Quanto ao debate, é importante pontuar que ele foi protagonizado por dois sujeitos de um Curso de Direito deste vasto Brasil. Como todos sabem, o Direito é um campo muito propício para longos discursos e enfadonhas apresentações de razões. Claro que com a proliferação de Cursos de Direito semelhante a reprodução de coelhos e com a realidade intelectual brasileira, é inegável que existem diplomas demais para cérebros de menos, o que rebaixa o nível de qualidade.

E o que acontece quando um professor é corrigido por um aluno? Ou melhor: quando o aluno expõe a hipocrisia de um professor? No caso em questão, tudo começou com uma postagem em que o professor se mostrou extremamente sensibilizado com a situação dos entregadores de comidas que trabalham por aplicativos durante a pandemia, falando na precarização daquele serviço e toda aquela lenga-lenga contra o sistema capitalista e os bancos. Não que as condições laborais das pessoas que prestam tais serviços sejam as melhores do mundo, mas, muitas vezes, é a maneira com que o mercado se organiza para ajustar possibilidades de renda para alguns. Com o passar do tempo, se necessário, podem ser louváveis que surjam regulamentações buscando estabelecer melhorias para tais trabalhadores.

Diante daquela crítica tão ácida contra o “sistema”, afinal, progressista que é progressista sempre culpa um ente “abstrato”, o aluno não perdeu tempo e sugeriu ao sensível professor que quando fizesse seu “delivery”, fosse buscar pessoalmente o pedido para não ter problema moral na conta. E a resposta do professor? O termo da moda que sai da boca de todo aquele que não tem argumento: pediu para que o aluno tivesse “empatia”.

Quando li pela primeira vez essa altercação de dissabores virtuais, recordei-me que no fundo a esquerda romantiza a proteção do trabalho como alguns homens traídos idolatram suas devassas esposas. Existem alguns mantras no progressismo que mereceriam estudo aprofundado em razão do grau de descolamento da realidade. Para essa visão de mundo, a simples “proteção legal” de um trabalhador, com a consequente demonização do mercado que permite a existência de grandes empresas sem penalizá-las em razão de suas grandes fortunas, seria suficiente para transformar a vida de um indivíduo. Discurso fácil para encantar desavisados como as sereias tentaram encantar Ulisses.

Além disso, a crítica ácida e desmedida contra grandes corporações, na maior parte dos casos não passa de um ranço presente em igualitaristas. Mas há de se atentar para não cair na generalização barata: desconsiderar que existem empresas que possuem uma voracidade descabida para controlar o mercado consumidor como se fossem entes estatais e não levar em consideração os danos de tal postura, é um erro crucial, afinal, isso equivale a negar fatos como um… progressista!

Desconfiado de que aquele professor tinha algo mais para falar do que “empatia”, fui investigar brevemente seu perfil nas redes sociais. Mesmo que tal exercício de curiosidade tenha sido uma perda de tempo intelectual, acabou mostrando como esse docente se expõe ao público e como existe ressonância na sua forma de pensar. Lembrando o fato de que ser um professor universitário lhe garante certo prestígio de fala e “autoridade” comunicativa.

Na minha “viagem” insólita pelo perfil do professor, descobri algo que confirmou minhas expectativas: o problema da igualdade era o pano de fundo do cidadão. Com posts que elogiavam o ex-presidente do Uruguai, Pepe Mugica, o pensamento de Marx e otras cositas más, o docente ainda apresentava em uma postagem um vídeo muito conhecido que foi traduzido pelo “Quebrando o Tabu”. Nele, uma corrida por uma nota de U$ 100 é organizada com todos os participantes na mesma linha de largada. A partir disso, o organizador declara que o primeiro indivíduo que cruzar a linha de chegada ganhará o valor em disputa.

Pois bem, antes disso ele propõe uma pequena “reflexão” sobre a realidade de cada um dos participantes. Assim, o instrutor avisa que fará algumas declarações com a condição de que caso elas se apliquem a algum dos participantes, eles devem dar dois passos a frente. Na sequência, ele pede que aqueles que ainda têm os pais casados deem dois passos a frente; se a pessoa cresceu com a figura paterna em casa, mais dois passos; se teve educação privada, idem; se nunca teve que se preocupar com a conta de telefone, da mesma forma; se nunca teve que ajudar nas contas domésticas, o participante deveria dar mais dois passos; e finalizou declarando que aquele que nunca teve de se preocupar com sua refeição, deveria avançar ainda mais. Após, pediu aos que estavam a frente, que virassem para trás e olhassem aos demais; e indicou que ponderassem criticamente a respeito de todos aqueles “privilégios”, afinal, não tinham nada a ver com seus esforços ou decisões, mas sim em razão de benefícios herdados. Ou seja, na ótica do “ilustre” instrutor o ponto de partida diferente seria a grande justificativa para mostrar como uma sociedade desigual permite que algumas pessoas devam se sentir culpadas por estarem mais próximas da nota de U$ 100 do que outras. Isso é a base e a essência do igualitarismo ideológico mais tosco e bizarro que existe.

O apelo emocional, a indução ao sentimento de culpa em razão de uma realidade social melhor, a perspectiva de que a loteria dos benefícios (afinal, ninguém escolhe onde vai nascer) é uma maldade do sistema que pode ser revertida pela ação de políticas públicas que visam a igualdade, tais como cotas, é o norte do vídeo. E essa visão é predominante na academia e é repassada, sem qualquer senso crítico, como se fosse uma verdade absoluta. E como se inexistissem sérios autores, como Thomas Sowell e Walter Williams, por exemplo, que criticassem acidamente essa ideia juvenil e revolucionária sobre como a vida acontece.

Se o fundamental é estabelecer um lugar de igualdade de condições como ponto de partida, uma visão romântica daquela apresentada por Ronald Dworkin, em “Levando os direitos a sério”, existem pontos que devem ser severamente questionados diante destes clichês distribuídos tresloucadamente por militantes que se travestem de professores. Para ficar em uma pergunta, poderia se questionar: qual o grau de igualdade de condições desejável?

Reparem que a abstração da ideia de igualdade e a necessária especificação dos critérios das “condições” podem encontrar inúmeros problemas no mundo real. Pensem na seguinte situação hipotética: imaginemos que o divórcio passe a ser proibido nesse exato momento para que as crianças não cresçam com pais separados; que caso um pai venha a faltar em uma família (em razão da morte), o Estado imediatamente estabeleça um substituto para esta tarefa; que o Estado proíba a educação privada e tenha um planejamento central de todo o modelo educacional; e que o Estado cubra todas as contas de telefone, domésticas e distribua refeições “gratuitamente” para todos.

Mesmo assim, algum ser humano com uma dose mínima de racionalidade pode imaginar que o ponto de partida pode ser igual para todos? Mesmo com as hipóteses absurdas criadas, é possível sustentar que essa é uma verdadeira igualdade de condições? Mesmo em um mundo utópico, pessoas diferentes não fariam coisas diferentes com cérebros e corpos diferentes, o que resultaria necessariamente em desigualdade de condições?

Ora, analisem o modelo educacional. No caso do Brasil, muito se fala em uma educação pública e de qualidade para que todos possam ascender socialmente e tenham igualdade de condições para “lutar” contra os mais abastados. Isso é o senso comum que foi muito disseminado dentro da ideia de que a educação liberta, o que é uma verdade parcial.

Agora, para que esse experimento ganhe os ares do que foi realizado no vídeo, fantasie a ideia de que os melhores professores possíveis estariam esparramados por todo o Brasil, lecionando em todos os recantos com a maior dedicação possível e com as mesmas condições tecnológicas e de acesso aos materiais de ensino e livros. Mesmo com isso, ainda assim teríamos a desigualdade (de ponto de partida, inclusive) em razão da natural desigualdade das capacidades humanas.

Inegável que o igualitarista mais moderado poderia dizer que isso sim seria uma ideal meritocracia, pois testaria as capacidades das pessoas em razão de pontos de partida iguais. Como contraponto, facilmente poderia se declarar que não existem pontos de partida iguais quando se fala de seres humanos, dado que cada indivíduo é único e já apresenta vantagens e desvantagens inerentes a sua natureza. Com isso, dentro da seita do igualitarismo, com toda certeza não faltariam aqueles que alegariam privilégios físicos ou intelectuais de indivíduos dotados de capacidades extravagantes ou fora do comum, o que causaria uma aversão a diferença e a excelência, algo comum em… igualitaristas!

Para exemplificar de forma mais clara e sem grandes divagações teóricas, em um passado não tão distante já ouvi um comentarista esportivo reclamar que as competições entre seleções de basquete estavam ficando chatas e injustas com a participação dos jogadores profissionais da NBA (National Basketball Association), a liga norte-americana de basquete, em razão da discrepância na qualidade destes atletas. Seriam estes jogadores uns privilegiados esportivos pelo nascimento, pela cultura ou pelos incentivos sociais? E isso deveria barrá-los de competições para que os menos afortunados pudessem ganhar algo e sentirem-se “abraçados” pelo aconchegante sistema competitivo, criando a falsa ilusão de vitoriosos?

Mais uma vez, a falácia da igualdade de condições só serve para provar que igualitaristas, esquerdistas e progressistas odeiam fatos, diferenças e pessoas. Sim! Pessoas! Afinal, pessoas são diferentes e em algum momento de suas vidas tiveram sorte ou reveses.

Pensar em um sistema que possa amparar os desafortunados ou auxiliar os necessitados não é um crime intelectual e pode ser uma necessidade para que uma sociedade possa florescer de maneira sadia. Isso não é nenhum erro. Mas tentar responsabilizar um privilegiado pelos seus benefícios, vitimizar um desafortunado por seus problemas e imaginar um mundo em que um ponto de partida utópico possa ser criado a imagem e semelhança do que pensam burocratas em suas bolhas intelectuais, é a insanidade travestida de empatia.

Ainda creio que os progressistas tenham plena convicção de que suas ideias não correspondem aos fatos, como diria Cazuza. Em alguns casos, é bem provável que o crente ideológico acredite de maneira ingênua em sua ideologia igualitarista, seja ele refinado intelectualmente ou um mero militante. Na maior parte dos casos, há um misto de ignorância e maldade que estrutura a marionete espiritual que adere ao habitáculo corporal progressista.

De toda forma, quanto a tão idolatrada ideia de igualdade, os progressistas sempre encontrarão muitas dificuldades para explicar racionalmente a noção de que a meritocracia só encontra subsídio moral razoável se as pessoas estiverem em um mesmo ponto de partida. Isso pode ser lindo, sentimental, utópico e agradável aos olhos e ouvidos de um despreparado mental. No entanto, a mera reflexão sobre as inúmeras variáveis da vida mostra como isso é um absurdo conceitual impossível de ser atingido.

Mais uma vez, um único indivíduo é único. Um único indivíduo é resultado de suas particularidades, inclinações e habilidades, inerentes a si ou estimuladas pela cultura.

Acreditar na possibilidade de um mesmo ponto de partida é como crer em unicórnios. Acreditar no progressismo é como ser um devoto de duendes. Acreditar no igualitarismo é como ver um lado positivo no totalitarismo. Se um mesmo ponto de partida é uma fantasia defendida por ignóbeis, loucos e por malfeitores, tenho certeza de que todos eles sabem qual o resultado prático que o igualitarismo apresenta como ponto de chegada para uma sociedade.

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João L. Roschildt

João L. Roschildt

Professor do curso de Direito do Centro Universitário da Região da Campanha (Urcamp). Além de articulista e ensaísta, é autor de “A grama era verde”. Site: www.joaoroschildt.com.br

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