Em 1940, diante de olhares esperançosos, Winston Churchill – inaugurando sua gama de memoráveis discursos como primeiro-ministro do Reino Unido – demonstrou a importância da linguagem. Churchill declarou que nada tinha “a oferecer senão sangue, trabalho, lágrimas e suor”. No auge de sua juventude, aos 22 anos escreveu: “De todos os talentos concedidos aos homens, nenhum é tão precioso como a graça da oratória”. Por ocasião de sua disciplina e cerimonialismo essencialmente britânicos, o grande estadista talvez tenha atribuído demasiada importância ao chá da tarde e tenha diluído junto dele um atributo tão virtuoso quanto a “graça da oratória”, a sinceridade.
Ignorando as regras de etiqueta britânica à mesa, cercado de Ministros de Estado, Bolsonaro ensinou-nos uma lição muito maior. Ensinou-nos que, para um grande estadista, nada é mais valioso do que a virtude da sinceridade.
Após a notícia de que o vídeo seria divulgado, a expectativa da população aumentou na mesma proporção da esperança dos que querem chegar ao fim do dia – depois de ter usado e abusado da virtuosa imparcialidade jornalística – sabendo que quando acordarem, rechearão seus artigos vagabundos com mais frases de um Presidente ditador e totalitário.
O vídeo foi inegavelmente um artifício de marketing, a promoção, ou seja, a estratégia política utilizada para demonstrar o potencial do produto existente no vídeo foi desmantelada. Quanto mais a divulgação da gravação fosse postergada, cresceria a dúvida em relação ao caráter de Bolsonaro. O vídeo certamente precisava ser adiado o máximo possível, criando a expectativa midiática a aumentando insegurança.
Em uma longíssima reunião ministerial, os minutos que seriam responsáveis por macular a imagem de um homem, foram honrados com um apelo à democracia. Já diziam os antigos que os homens revelam seu caráter de maneira mais clara quando não estão sendo observados. Considerando a privacidade que pressupõe a reunião, é salutar o fato de que o único compromisso de qualquer discurso ali feito não colocava à mesa um bom nome ou a preservação de reputação, mas colocava em xeque qual personalidade se manifestaria sem a dependência dos aplausos.
Dado que a promoção do produto não correspondeu à essência do que nele continha, é importante expor aqueles que foram os trechos que fizeram desse “discurso” uma das maiores – quiçá a maior – e eloquente defesa da democracia já feita na República. Portanto, não intoxicarei a transparência do material por palavras ingratas, apenas atrevo-me a tecer um comentário aqui e outro acolá.
No exato momento em que se estabelecem duas ditaduras (uma perpetrada pelos excelentíssimos do STF e outra por governadores e prefeitos) é importante, antes de qualquer coisa, definir a hierarquização das mesmas. O que está sendo feito por governadores (leia-se estrume) tal como João Dória em São Paulo, só é possível porque o Supremo Tribunal Federal considerou uma decisão assertiva a de incumbir os Governadores e Prefeitos de estabelecer medidas para combater o vírus chinês. Lembre-se: a ação foi feita com o pretexto de uma descentralização.
Todavia os mesmos que delegam ações descentralizadoras são os responsáveis por tomar uma decisão – que usurpa das responsabilidades do Presidente – submetendo a ação dos agentes públicos às recomendações da OMS, ou seja, um atentado à soberania nacional. O que é isto se não a submissão ao centralismo de uma entidade internacional?
A subordinação de tudo que acontece no país ao STF, pode ser exemplificada no episódio ocorrido dias após a decisão que outorgava aos prefeitos e governadores a autonomia para definir medidas restritivas no combate ao vírus. A prefeitura de São José dos Campos proibiu a abertura do comércio, mas dias depois a prefeitura autorizou – por meio de outro decreto – a flexibilização de algumas coisas que até o momento se mantinham restritas. Sendo assim os pequenos comerciantes voltariam a trabalhar se não fosse por uma liminar feita por uma juíza a pedido do Ministério Público, que por sua vez decidiu que o Prefeito não tem autonomia.
Digo, o Prefeito tem autonomia sim, mas somente para concordar com o que o Supremo quer. O livro The Federalism, escrito por Alexander Hamilton, John Jay e James Madison, na página 402 considera que “O judiciário […] não tem influência sobre a espada nem a bolsa; e não pode ter nenhuma resolução ativa. […] o judiciário é incomparável o mais fraco dos três departamentos de poder”. E prossegue: “Os tribunais devem declarar o sentido da lei; e se eles estivessem dispostos a exercer vontade em vez de julgamento, a consequência seria igualmente a substituição de seu propósito pelo do corpo legislativo”.
No Brasil, o judiciário influencia sobre a bolsa, a espada, o remédio, o escudo e o batom. Exercer vontade em vez de julgamentos e, portanto, compartilhado da conclusão que chegam os autores norte-americanos, substituem seu propósito pelo corpo legislativo. Aniquilam-se os três poderes, a democracia fica castrada. Vivemos sob uma ditadura judiaria que pariu outra chefiada por governadores.
Assim sendo, como considerar uma afronta a democracia repudiar esse modo de exercer o poder que por si é limitado? Como não se apropriar das palavras do Ministro da Educação Abraham Weintraub e repetir, indignados que por nós, botaríamos todos esses vagabundos na cadeia? É impossível dizer outra coisa.
Ou então compartilhamos da franqueza, lealdade e coragem da Ministra Damares assumindo que neste momento de pandemia a gente tá vendo aí a palhaçada do STF trazer o aborto de novo para a pauta. […] Será que vão querer liberar que todas que tiveram coronavírus poderão abortar no Brasil?”.
A indignação traduz a expressão popular. Qualquer resquício de dúvida quanto ao caráter “ditatorial” ou corrupto foi diluído, esquecido. No apogeu de sua transparência, Bolsonaro materializa um estadista comprometido com a liberdade: “Quem não aceitar as minhas bandeiras: família, Deus, Brasil, armamento, liberdade de expressão, livre mercado; está no governo errado! Esperem pra vinte e dois, né? O seu Álvaro Dias. Espere o Alckmin. Espere o Haddad. Ou talvez o Lula, né? E vai ser feliz com eles, pô! No meu governo tá errado! É escancarar a questão do armamento aqui. Eu quero todo mundo armado! Que povo armado jamais será escravizado. E que cada um faça, exerça o teu papel. Se exponha”.
Sem quaisquer modos à mesa, em falas que a muitos devem escandalizas, a mim e a quem defende o mínimo de liberdade, os palavrões (estimam os contabilizadores metidos à jornalistas que o número de palavras horrendas varia entre 37 e 42) tão repudiados não “sujam” o discurso, mas traduzem com maior “fidelidade os nossos mais fortes e genuínos sentimentos”. Se a colocação que se validava até então era a existência da problemática comunicação pública por conta da transparência, Bolsonaro demonstrou “por trás das cortinas” que é um homem com acento próprio, essencialmente o mesmo independente de aplausos ou votos, reconhecendo a facilidade para implantar uma ditadura no país em que governa a exortação não é voltada para o acanhamento, mas para a exposição que combaterá a cerceamento de liberdades.
A relação da exigida “postura presidencial” e a expressividade sincera é ambígua; nunca a clareza da intuição sincera coincidirá plena ou de maneira permanente com um modelo pré-definido de comportamento. Bolsonaro é uma exceção notável; seu melhor momento como líder e estadista coincidiu com seu melhor momento de transparência. A unidade entre um sujeito que diariamente corre o risco de ser preso por não usar uma máscara – muitas vezes inútil – e o Presidente da República só é possível mediante a identificação mútua – simbolizada pela linguagem. O maior elogio grato que posso fazer a esta reunião é declará-la suficiente. É humano demais. Vívido, deixando-nos adivinhar o que seria o país se lhe tivessem dado a licença de governar.
P.S: adéquo-me aos princípios de limpidez que ainda conservo para agradecer aos dois maiores benfeitores da pátria, os novos maiorais da nação: Sérgio Moro e Celso de Mello, muitíssimo obrigado.