Subministérios da verdade

Com grande ironia e certo humor, acredito que o conservadorismo deveria abrir uma agência de checagem de informações. Poderia ser uma empresa de fact-checking no estilo das que já existem no mercado, mas com uma marca que a distinguiria das demais: a seriedade. Tal agência também deveria se pautar pela absoluta isenção na análise de afirmações ou juízos de valores que não condizem com a realidade dos fatos. Vontades, utopias e politicagens não seriam permitidas nessa instituição. Aliás, como ela seria assumidamente conservadora, nem seria necessário cobrar tais características, afinal, elas já estão presentes no “pacote” do conservadorismo.

Com viés racional, prezando pela razoabilidade e que buscasse a preservação do bom senso do senso comum, conceitos odiados por “intelectuais” e “especialistas” contemporâneos, essa agência não admitiria qualquer ofensa contra a liberdade de expressão. Todavia, não aceitaria a propagação de fake news. Tudo isso poderia ser endossado por uma simples afirmação de Roger Scruton: “Nós conservadores somos chatos. Mas também estamos certos”. Como isso é verdadeiro, tal agência poderia esparramar filiais por diversos países, estabelecer um padrão de abordagem único e globalista que tivesse o condão de disseminar a verdade única para os cidadãos obscurantistas que ainda habitam o planeta Terra.

Sem nenhum tipo de duplo padrão moral que escolhesse qual notícia ou informação mereceria uma “checagem”, essa empresa prestaria o maior e mais precioso serviço pelo qual todos os seres humanos deveriam ansiar: a busca pela verdade. O que, por consequência, abominaria o relativismo moral. Também seria proibido que os membros responsáveis pela verificação da verdade dos fatos pudessem prestar reverência a políticos em suas redes sociais: qualquer indício de idolatria colocaria em xeque a honestidade da agência. Um bom nome para essa agência seria “Conserve sua mente”.

Ideologia de gênero existe? Racismo estrutural é algo presente no Brasil? Vivemos em uma sociedade patriarcal? A “homofobia” é algo real em nosso país? Pronome neutro é a salvação para o respeito a tod@s? Cotas para mulheres na política são necessárias para que elas sejam representadas? No Brasil pode-se falar que existe uma cultura do estupro? Uma empresa que se dedicasse a verificar a verdade destes questionamentos sem estar a serviço de uma ideologia e que recebesse o selo de qualidade dos grandes veículos de comunicação obteria sucesso imediato.

Claro que as insanidades distópicas acima apresentadas só fariam parte de um mundo que buscasse a purificação. Ou de uma “realidade” que tivesse como objetivo uma desinfecção moral que extirpasse o mal do mundo. Um conservador sabe como isso é impossível. Já um progressista imagina que isso é possível. Aliás, como se comportam as agências de fact-checking existentes?

Mesmo que seja tentadora a ideia de uma “contra-agência” de checagem de fatos, afinal, são bastante conhecidas as intenções ideológicas que colonizaram as instituições que dizem atestar a verdade de forma “isenta” e “neutra” do que ocorre no mundo, o único remédio viável para a tentação é afastar suas seduções. Agências de checagem são um erro e enfrentá-las com a mesma moeda significaria cair em tentação. Se Oscar Wilde estivesse certo quando diz que “a única maneira de se livrar de uma tentação é ceder a ela”, o mundo estaria em uma encruzilhada: “pecaríamos” em nome da liberdade ou viveríamos constantemente entre os “grilhões” da resistência aos erros morais que desejamos? Todavia, pelo menos parcialmente Wilde está certo, afinal, não ceder à tentação significa viver na fronteira dos ilusórios prazeres que ela oferta. No limite, resistir à tentação é um ato de mera intimidação àquele espectro fascinante e desestabilizador que ronda a mente dos seres humanos. Infelizmente, os que lutam contra as tentações são eternos vigilantes que precisam ameaçar e fustigar o mal como um marinheiro que contorna um mar agitado: como não existe marinheiro sem mar, ele só prova seu valor se sabe enfrentar suas ondas, sem se confundir com elas.

Em meados deste ano, as agências de checagem de fatos, “Aos Fatos” e “Agência Lupa”, ambas encarregadas “divinas” para a “verificação da verdade”, divulgaram informações encantadoras que justificariam algumas ideias que navegam entre utopias e distopias. Como são emissárias que traduzem a verdade dos céus para o povo estúpido que habita abaixo de seus pedestais, estas instituições prestam um enorme desserviço à informação. No dia 1º de julho de 2020, as duas estimadas agências divulgaram que seria falso (ou “não é verdade”) a ideia de que o presidente Jair Bolsonaro estaria proibido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de tomar medidas para impedir o avanço da pandemia do Covid-19. Tal fact-checking se deu em razão de inúmeros comentários e posts nas redes sociais que buscavam isentar o presidente de qualquer responsabilidade pela expansão do vírus no Brasil, aliado ao fato de que Bolsonaro já havia afirmado repetidas vezes que prefeitos e governadores seriam os responsáveis por imposições restritivas à liberdade individual durante a pandemia.

Boa parte disso se deu em virtude da famosa Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 672, movida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), no qual o ministro do STF, Alexandre de Moraes, decidiu que os governos estaduais, distrital e municipais podem tomar variadas medidas que limitam a liberdade dos cidadãos em época de pandemia, sem que o Poder Executivo federal pudesse afastar quaisquer destas medidas: “imposição de distanciamento/isolamento social, quarentena, suspensão das atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas”, por exemplo. E aqui está o nó da questão: se a administração pública federal não pode fazer nada contra as decisões dos outros poderes executivos, como pensar que Bolsonaro ainda teria autonomia para decidir questões estratégicas no combate ao novo coronavírus e de suas consequências?

E o problema aqui é sutil. Por mais que o STF não tenha afastado do presidente a possibilidade da tomada de decisões para combater a pandemia, ao ampliar drasticamente a autonomia dos poderes executivos estaduais, distrital e municipais para decretar medidas no intuito de combater o Covid-19, enfatizando como o presidente da República não poderia reverter tais decisões arbitrárias de forma unilateral, na prática, o STF retirou qualquer poder de Bolsonaro. Mas não teria o presidente uma espécie de poder residual? Sim, mas com governadores e prefeitos criativos, que inventaram decretos que restringiram diversas liberdades em nome da “saúde pública” e do “bem-estar de todos”, referendados pelo STF e sem que o Poder Executivo federal pudesse contrariar nada, como pensar que Bolsonaro poderia tomar as rédeas dessa situação? A agência Lupa, em seu site, chega a afirmar categoricamente que o STF “não afastou o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) do ‘controle’ das medidas estratégicas contra a pandemia […]”. Tal agência não deveria ser alvo de checagem diante de flagrante jogo de linguagem que deturpa a verdade?

Sabidamente inclinadas ao progressismo (ou uma afirmação deste teor sofrerá fact-checking?), tais agências são sedentas pela reconstrução de uma realidade que possa se apegar a detalhes no uso da linguagem que não possam ser questionados. Ou seja, tais grupos jornalísticos têm a plena consciência de que suas afirmações não poderão receber a pecha de falsas. Afinal, na construção da decisão do ministro Alexandre de Moraes, na ótica dos “especialistas” jurídicos que a grande mídia endeusa e para “Aos Fatos” e “Agência Lupa” não foi afirmado em momento algum que Bolsonaro não pode realizar medidas de combate ao Covid-19. O que foi declarado, nas entrelinhas, e não nas manchetes, é de que ele não pode contrariar o que governadores e prefeitos decidem. E que tudo o que estes líderes estaduais e municipais decidirem é (quase que a priori) constitucional. Ou seja, é falso dizer que Bolsonaro está impedido de tomar ações contra o Covid-19, mas é verdadeiro afirmar que ele não pode fazer nada contra os decretos arbitrários de governadores e prefeitos que são ineficazes, inconstitucionais e geram um caos econômico que destrói vidas, o que lhe retira o poder. Um joguinho linguístico que brinca com a racionalidade humana…

Mesmo que qualquer um dos “colaboradores” destas agências nunca tenha ouvido falar em Peter Kreeft, todos eles conhecem, por formação progressista, a leitura que este professor de Filosofia fez da realidade: “Controle a linguagem e você controla o pensamento; controle o pensamento e você controla a ação; controle a ação e você controla o mundo”. Nesse sentido, as agências de checagem de fatos não passam de instrumentos para mascarar a verdade assim como salões de beleza que maquiam e travestem indivíduos para parecerem o que não são. Em respeito à tradição filosófica que deixou a herança da racionalidade e preservando o uso da liberdade de pensamento, é um imperativo moral dizer que não é preciso de lupa alguma para ir aos fatos.

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João L. Roschildt

João L. Roschildt

Professor do curso de Direito do Centro Universitário da Região da Campanha (Urcamp). Além de articulista e ensaísta, é autor de “A grama era verde”. Site: www.joaoroschildt.com.br

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