O fetiche do outro

Eu e este texto estamos numa posição delicada, mas não por isso, e nem por outro motivo, desistirei de expor minhas ideias preconcebidas (pegando emprestado a expressão de Theodore Dalrymple). Elas existem. Todos temos preconceitos, até aqueles que dizem não os terem. Quanto a este ponto, tenho que esclarecer uma coisa.

Há uma diferença não muito bem esclarecida entre ter preconceito e ser preconceituoso. Eu, você, nós temos preconceitos, que nada mais são do que ideias pre-estabelecidas a respeito de alguma coisa.

Sobre isso, é curioso que alguns humanos metidos a intelectuais buscam a implantação de um novo ideal coletivo, presumivelmente redentor e felicitário. Mais curioso ainda é saber como eles fazem isso. Primeiramente, eles pensam em zerar a mente humana. Sem qualquer aparelho ou instrumento que se possa colocar ao redor da cabeça, eles entram dentro dela por meio das ideias. 

A índole humana conservadora é contrária a qualquer fetiche com o futuro ou com o passado. Ideias ou sentimentos revolucionários ou reacionários não pegam bem com o conservadorismo. Por isso a pergunta: para que zerar a mente humana?

Mas, antes de entrar no mérito do tema, ainda continuo em relação a este ponto.

Este espírito revolucionário não vem de hoje. Mas, podemos dar graças a Deus que existiram espíritos mais ou menos conservadores espalhados pela história ocidental que sempre ficaram de olhos bem abertos. 

Francis Bacon deu a ideia para uma revolução industrial e profetizou a era científica e tecnológica, mas queria que todos nós nos esvaziássemos do passado. Seu método de purificação mental foi criticado, claro. Até John Stuart Mill, que veio depois dele na sequencia histórica de ideias inovadoras, falou que fatos são mudos. 

Então, considerando a engenharia de “tábula rasa” destes tiranetes envernizados, adianto que minhas ideias aqui são politicamente incorretas. E minha intenção é submeter à prova quem faz do outro uma régua ética, a “medida de todas as coisas” (pegando a frase de Protágoras). Será que os que creem nos dogmas e rituais progressistas amam o próximo como a eles mesmos?

Claro que existiam mais espíritos conservadores que foram contra a destruição do legado, principalmente empírico e tradicional ocidental. Não é objeto deste artigo.

Corro o risco de ser xingado de preconceituoso a fascista. Roger Scruton provavelmente também o foi. Scruton foi o mais ferrenho defensor de um conservadorismo dogmático, dedicou-se a tapar o buraco causado no imaginário popular, este que caricatura o conservador como uma pedra de tropeço ao “avanço” humanitário. Se Russel Kirk dá as razões conservadoras, Roger Scruton explica que elas existem. O conservador tem seus motivos.

Então, será que pode ser considerado fascista aquele que preza pela manutenção de coisas boas e necessárias para todos? No mundo de hoje, absolutamente rivalizado, com o predomínio de um espírito maniqueísta, não é fácil ser simples e direto sem que alguém em algum lugar manifeste ressentimento.

Pois bem, vamos ao que interessa.

Estamos em pleno tempo de contaminação pandêmica pelo novo coronavírus, que iniciou sua devastação mundial em número de mortes já no início do ano passado, 2020. No Brasil, o número de mortes, no dia 26.05.2021, conforme consulta no site do Ministério da Saúde, era de 452 mil. A pergunta mais importante de mais de um ano de sofrimento, a par de tudo o mais que o povo brasileiro carrega nas costas, é como se livrar desta nova praga. Outra coisa. Ano que vem, 2022, tem eleição presidencial. O povo sofre também com a politização da pandemia, que conta com o retorno de Lula às ruas e ao cenário eleitoral como o candidato de oposição.

Os governantes vacilam em fazer o óbvio, que é governar, e se atropelam nas medidas. Uns aplicam a Constituição (federal e estadual) e decretos, outros, mais locais, controlam o povo por meio de decretos municipais, pegando diretamente no pé da gente. Nessa ânsia de querer dominar o vírus, acabam dominando também as pessoas, aplicando lockdown, que consiste em suspender direitos individuais, como o de ir e vir. Essa a medida mais severa imposta pelo Estado, antes vindo a quarentena e o isolamento social. No lockdown, comércios são fechados, igrejas são fechadas, limitados os números de consumidores ou de participantes de cultos. As pessoas são obrigadas a ficar em suas casas para não se contaminarem ou propagarem a doença por aí. O foco de proteção aqui é o outro (ao menos em tese). Mesmo que digam para você ficar em casa para não se contaminar, verdadeiramente, é o outro que eles querem proteger.

Vamos pensar um pouco aqui. A medida que parece mais óbvia para conter o avanço de um vírus mortal parece, de fato, ser o isolamento das pessoas. Ao menos é o que pensam as cabeças dos governantes mais, digamos, sensíveis ao outro.

No campo do imaginário surgem algumas teses sobre como lidar com a pandemia. Vêm conselhos domésticos como chás mais conhecidos (cânfora, erva doce), a tratamentos de ozonioterapia. O ponto máximo de ajuda ao próximo, que vem de um governo afetuoso, é lockdown. Enfim, uns são contrários a medidas severas e isolacionistas, outros pensam em fazer o contrário. Mas parece que, enquanto aqueles que rejeitam medidas governamentais isolacionistas são negacionistas e só pensam em si, os outros são os virtuosos e austeros, pensam no outro. Esse é o espírito maledicente de jornalistas e políticos engajados numa causa do “bem”, que tem o outro como o sujeito de direito e quase objeto de desejo. Um fetiche.

Este pensamento voltado ao outro se funda num passado histórico. A história conta um pouco do germe que fundou este olhar, essa alteridade. Se o objetivo desse olhar é realmente beneficiar o outro, aí é questão que ainda não estou pisando nela. 

Platão queria que todos fossem iguais, inclusive dividindo bens, filhos, mulher, marido, casa, tudo. Tomás Morus o imitou. 

Os habitantes da polis grega seguiam as regras éticas não por amor ao próximo, mas como regra de comportamento baseada na pura razão. A vontade, no agir ético e social, era ignorada. Não se exigia sinceridade e autêntica vontade de ajudar. A sabedoria grega vinha do intelecto, não do coração. E, para eles, ao contrário de hoje, quanto mais intelecto mais sábio.

Assim, antes de Cristo pensava-se o homem, não no homem. Homem era uma categoria filosófica dentro de uma busca pela essência, por primeiras causas, próprias para o saber. Cristo começou a pensar no homem. Cristo provou que o Espírito Santo é quem dá o conhecimento da virtude. Não adianta ser sábio. De fato, como adverte John Adams, citado naquela obra de Kirk, “Não há conexão necessária entre o conhecimento e a virtude”… e “A simples inteligência não está associada à moralidade

A partir do momento renascentista o mundo virou de cabeça para baixo (alguns alérgicos ao medievo diriam que ele renasceu das cinzas). 

Mais especificamente entre meados do século XVI e fim do século XVII, a ciência passa a ganhar seu lugar ao sol. O homem se descobriu, se emancipou, ficou sabendo que não nasceu apenas para adorar deuses. Agora, quer ganhar o mundo. A revolução copernicana (que, na prática, significou a Terra se humilhando para o Sol) fez o homem descer de seu salto também, trazendo-lhe a consciência de que não é o centro de tudo. Mais tarde (hoje, na verdade), vemos que mais gente quer direitos.

Para o novo homem, o tempo divino (aqui me refiro à Idade Média, esculachadamente vista como “trevas”) foi um pesadelo. Quando a América e os americanos foram descobertos, o homem “universal” grego perdeu seu posto de “Rei Sol”, dividindo a coroa com um habitante de outras terras (quem sabe um novo irmão, em Cristo ou não). Novos “bárbaros” ou “selvagens”. Surgiu o espírito da diversidade. Em meio ao espírito pagão renascentista uma centelha santa em mentes iluminadas, com um novo questionamento: então somos, realmente, descendentes de Adão e Eva? Temos irmãos espalhados por aí?

Vejam bem. Um novo espírito, o da diversidade, mas ainda não o do amor. O espírito do amor só surgiu depois.

No século IV antes de Cristo existiam os sofistas, os quais não chegaram a ser verdadeiros filósofos, apenas pensadores retóricos que visavam o lucro. O problema destes sofistas, além de uma “filosofia” meramente retórica deles, é que eles desencadearam o problema do relativismo moral e cultural. E uma vantagem desses sofistas, como advertem os professores Dario Antiseri e Giovanni Reale, é que deles vieram Platão e Aristóteles, filósofos genuínos, que criticavam o uso da retórica como simples competição de quem é o melhor argumentador. E também que eles deram oportunidade para o surgimento de uma certa uma dialética. Razões e contrarrazões. O contraditório. Um olhar para os lados, digamos.

Mas, parece que o apanágio da política é sempre o foco no outro como única demonstração de virtuosidade e de bondade. O “eu” é ignorado como juízo também a ser levado em consideração no debate da moralidade, da política e da justiça concreta. 

Falando em intenções, quem muito é questionado sobre as suas, sobre a sua própria verdade, são os conservadores. Não que eles sejam indagados o tempo todo para darem suas explicações, para desmentirem o que dizem dele por aí. Eles até fazem, mas por conta própria, porque, se dependessem do regime democrático atual eles jamais conseguiriam. Ninguém quer ouví-los. Ainda mais em tempos de pandemia, quando o outro mais ainda precisa de proteção, conservadores são insensíveis, negacionistas, fascistas, dizem.

Mas esse é um problema de excesso de democracia. Todos são afetados. Mais conservadores são afetados, verdade, mas ele é geral.

Se as explicações conservadoras têm seu lugar de fala (principalmente depois da obra de Roger Scruton, O que é conservadorismo, onde ele tapa a boca de quem os difama, os calunia, trazendo uma obra de dogmática do conservadorismo), digo que conservadores não são nem um pouco individualistas, insensíveis, egoístas, materialistas, primos-irmãos dos liberais, corresponsáveis, assim, pela avareza no mundo.

Russel Kirk deixa bem claro em Breve manual do conservadorismo. Quando se fala em olhar para o outro, ajudar o próximo, o conservadorismo entende de uma forma bem diferente do que entendem progressistas, o contrário, na verdade. Poderemos dizer que progressistas são o avesso do amor verdadeiro. Eles sim pensam apenas em si mesmos, ou, quando muito, no coletivo, que dá no mesmo.

É mera cobiça, vaidade, um senso errôneo de justiça social. Como adverte Russel Kirk, em Breve manual do conservadorismo, de que adianta uma boa consciência pública e uma falha consciência moral privada? Parafraseando-o, pergunto: de que adiantam políticas compulsórias de amor ao próximo sem a consciência individual deste amor?

Jesus, que não era um mero profeta ou filósofo, foi quem trouxe um olhar sincero e autêntico para um ser humano concreto e individualizado. O amor divino do cristianismo baseia-se numa palavra de “doação”. O amor cristão é o doar-se ao outro.

Conservadores são contra o coletivismo, não contra o altruísmo. É o que, com outras palavras, fala Kirk, ao dizer que a sociedade moderna precisa urgentemente de um conceito de uma verdadeira comunidade, aquela que, segundo ele, é disciplinada na caridade e no amor. Uma sociedade que não aceita que estes dons divinos inatos sejam objeto de compulsão. Nas palavras de Kirk, “A consciência é de domínio particular: não existe “consciência pública” ou um “Estado de consciência”.

O conservador tem consciência de si, e ela é bem diferente desta caricatura de malvadão que desenharam contra ele. Além disso, não aceita ser insultado. Russel Kirk dá as devidas explicações em Breve manual do conservadorismo. Além disso, conservadores não levantam aquela bandeira do “cada um por si e Deus por todos”.

Não estou dizendo para ignorar o outro. Ele não deve ser, usando aqui uma expressão antiga, sempre e sempre, a “medida de todas as coisas”, como diziam os sofistas gregos, expressão usada aqui apenas na sua literalidade (antigamente ela significava inexistência de verdades absolutas, como se viu).

Não digo para ignorar o outro, a não ser quando ele começa a ficar muito chato, ou até mesmo insuportável, como diz Pondé. Luis Felipe Pondé, em Uma filosofia politicamente incorreta, não receia em dizer que conviver com o diferente em uma sociedade como a nossa é essencial, mas daí a dizer que o outro é sempre lindo é uma falácia e impede uma sociedade sincera (mesmo que resolva os seus problemas a tapas). 

Será que pensar no outro, durante uma pandemia, não seria também deixá-lo livre para conseguir o seu próprio alimento? Ou será que as pessoas só estão morrendo de coronavírus?

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Sergio Renato de Mello

Sergio Renato de Mello

Sergio Renato de Mello, brasileiro, casado, Defensor Público de Santa Catarina, residente em Rio do Sul, Santa Catarina.

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