“Pensamento político brasileiro”: um exemplo de pluralidade na academia

Poucos temas deveriam interessar mais a um conservadorismo que se preze que o entendimento das raízes e aspectos da própria comunidade política em que se vive, da realidade com que se dialoga. Desnecessário enfatizar mais a relevância de conhecer a trajetória das ideias políticas e sociais no Brasil.

Lançamento da Appris Editora e organizado pelos acadêmicos Christian Lynch, Elizeu Santiago e Paulo Henrique Paschoeto, Pensamento político brasileiro: Temas, problemas e perspectivas é peça singular no universo acadêmico nacional, porque é um livro que representa tudo que esse meio sempre deveria ser. Sua maior qualidade se define numa palavra: pluralidade.

Nada da massa quase indistinguível de tons de esquerda com que estamos acostumados. O livro tem artigos de esquerdistas, desenvolvimentistas, sem dúvida; mas também tem textos de pesquisadores que, em suas perspectivas pessoais, são liberais sociais, conservadores ou até monarquistas. Podem acreditar! São todos intelectuais universitários, a maioria com alguma conexão com o Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ, particularmente com o Laboratório de Teoria Política e Pensamento Político Brasileiro.

O mais interessante é que os artigos que constituem os capítulos, em sua maioria, não denunciam a orientação ideológica dos seus autores. Todos eles, com pensamentos diferentes, participaram de um mesmo projeto, construindo um interessante e amplo painel das principais questões e ideias que perfizeram a história do pensamento político nacional. Demonstrar que isso é possível é o maior mérito do trabalho, justificando a sua divulgação.

É inviável oferecer detalhes aprofundados sobre cada texto, tantos são os temas desenvolvidos. Parece oportuno, porém, provar o que aqui se afirma com uma visão panorâmica do conteúdo. O livro se inicia com uma introdução escrita pelo organizador Christian Lynch, em que ele situa os principais aspectos observados no pensamento político nacional. Em destaque, Lynch observa que a grande maioria dos nossos autores enxerga o Brasil sob lentes exageradamente influenciadas pela experiência de “três ou quatro países vanguardeiros do Atlântico Norte”, convidando a que as reflexões não neguem a universalidade de certos conceitos, mas sejam capazes de reconhecer que há uma “universalidade complexa”, receptiva a especificidades do contexto brasileiro.

“O pensamento político periférico desdobra-se num esforço concomitante de natureza político-institucional, destinado a acompanhar os avanços civilizacionais dos países modelares, e de natureza sociológica, encarregado de produzir conhecimento sobre si mesmo”, colidindo “frequentemente a necessidade de acompanhar as instituições cêntricas com sua adequação ao efetivo estado socioeconômico do país”, sintetiza Lynch.

Sua conclusão é de que, tendo por anseio-chave a ideia da busca por uma “modernização”, o pensamento brasileiro está sempre voltado a construir um discurso sobre si mesmo, sobre a identidade nacional, a composição social e sua consistência, ao mesmo tempo em que procura adequar a isso instituições que pretendem modernizar os padrões de comportamento da sociedade brasileira. Os diferentes encaminhamentos que foram dados a esses problemas constituem a diversidade dos pensares políticos no país. “O pensamento político brasileiro pode oferecer um conjunto de instrumentos teóricos para a compreensão dos desafios e disputas em torno da constituição da democracia no Brasil”, explica, conceituando o campo em estudo, sendo tópicos como “a constituição das linguagens políticas em contexto periférico, a formação da nação e das instituições representativas e jurídicas, a formação de um pensamento internacional sobre o Brasil, a disputa por modelos de modernização política e econômica e a emergência de novos grupos e ideologias políticas” tratados como um campo interno à Ciência Política, mas “em debate constante com a História, a Filosofia, o Direito, as Relações Internacionais e a Literatura”.

O primeiro capítulo trata das linguagens do liberalismo político e sua percepção da opinião pública a partir de um dos exemplos mais icônicos do século XIX, que o professor Lynch me surpreendeu ao dizer ser pouco estudado na academia: Evaristo da Veiga, líder dos chamados “liberais moderados” que assumiram o poder na Regência e construíram a “ortodoxia política”, por assim dizer, do Segundo Reinado. Delineia com clareza a importância da força da imprensa e do Parlamento na construção daquilo que Veiga chamava de “opinião pública” como elemento essencial na fiscalização e contenção do poder, mas lembra que o autor nega a identificação entre o “povo” em geral e essa opinião pública, que precisaria ainda ser exercida como uma influência pedagógica sobre o tecido social.

O segundo capítulo, do excelente Luiz Carlos Ramiro Junior, é um estudo da presença do ultramontanismo no Brasil do século XIX como uma corrente católica antiliberal que se chocava tanto com os conservadores do Império, os saquaremas, que aderiam à institucionalidade liberal, quanto com os luzias, os chamados “liberais” propriamente ditos, descrevendo a concepção de civilização para essas três macro correntes do debate público da época. Em seguida, apresentam-se o pensamento de um saquarema que foi importante na literatura nacional, o Visconde de Taunay, e a transformação das ideias acerca dos Estados Unidos de um dos mais grandiosos luzias, Joaquim Nabuco.

Segue-se no quinto capítulo uma apreciação minuciosa e casuística da atuação do Supremo Tribunal Federal, por vezes subordinada aos interesses das oligarquias a que os ministros se vinculavam, durante a Primeira República. O sexto artigo traz uma análise das consequências autoritárias da primeira edição do clássico Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, nos anos 30, como a única saída para equacionar a difícil relação da formação social brasileira com a impessoalidade, tornando inviável, na concepção então exposta pelo autor, o Estado liberal-democrático no país.

O sétimo capítulo constrói um raio-X do desenvolvimentismo no Brasil, assentado na defesa de um projeto nacional de corte nacionalista, baseado na industrialização e no intervencionismo do Estado, a partir do pensamento de Azevedo Amaral, também atuante ideólogo do autoritarismo da década de 30, em plena atividade durante a ditadura do Estado Novo. Aproveitando para apresentar brevemente o pensamento de outros autores influentes sobre o autoritarismo daquela época, como Alberto Torres e Oliveira Viana, o oitavo capítulo desenvolve as ideias de esquerda de Alberto Guerreiro Ramos e Nelson Werneck Sodré, o primeiro um nacionalista à esquerda mais alheio ao Marxismo propriamente dito e o segundo mais identificado com esta última filosofia, em suas aproximações e afastamentos.

Ainda construindo o contexto do autoritarismo da década de 30, há um artigo sobre a inspiração do cientista político Hélio Jaguaribe no unificador alemão Otto von Bismarck para sustentar um desenvolvimentismo que se antecipasse a uma ameaça comunista. O décimo capítulo esboça a relação construída entre os ideais do tenentismo e o Partido Comunista do Brasil, a partir sobretudo de figuras como Luiz Carlos Prestes, promovendo um casamento brasileiro entre o Marxismo e as heranças da influência do Positivismo de Augusto Comte sobre a formação dos militares brasileiros.

O décimo primeiro capítulo é uma abordagem farta e descritiva da mentalidade da Escola Superior de Guerra e sua influência na política externa brasileira, especialmente sob a égide de Golbery do Couto e Silva na presidência de Ernesto Geisel, seguindo-se um excelente resumo do especialista Kaio Felipe sobre o pensamento social liberal de José Guilherme Merquior e suas aplicações ao contexto brasileiro. Encerra a obra um capítulo que nos diz respeito diretamente: um texto sobre a “nova direita” brasileira, que emerge após a crise dos governos do PT. Os autores são evidentemente de esquerda e é o texto a que teríamos mais críticas, mas nem por isso deixaríamos de reconhecer que houve uma pesquisa prévia à sua redação e não apenas invencionices.

Pela exposição resumida dos temas, percebe-se claramente que toda uma imensa fauna de correntes e perspectivas da história do pensamento político brasileiro é contemplada, por especialistas com as diversas visões imagináveis. Para quem quer efetivamente conhecer melhor o Brasil e como chegamos às questões que hoje permeiam nosso debate público, o livro é um excelente caminho introdutório e uma homenagem à boa e aberta perquirição intelectual, alheia a cegueiras fanáticas e silenciamento dos divergentes.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Lucas Berlanza é carioca, editor dos sites “Sentinela Lacerdista” e “Boletim da Liberdade” e autor do livro “Guia Bibliográfico da Nova Direita – 39 livros para compreender o fenômeno brasileiro”.

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