Quando Caim e Abel encontram um Terceiro

Na tentativa de imaginar o que está por vir,

estude o que já aconteceu, pois a História é surpreendentemente repetitiva.

Quem mais ganha numa luta de boxe? O vencedor? Não. Seria aquele que comanda a luta o que ganha. A casa. Quem controla as apostas. Recentemente observei um fenômeno recorrente na História: o Terceiro. Temos em nosso imaginário coletivo uma chamada dualidade: Certo e errado, ordem e caos, bem e o mal. Corriqueiramente estereotipamos esses elementos opostos e isso é importante para a formação do indivíduo moral e socialmente. Porém quando levado ao extremo formamos ordens de Caim’s e Abel’s, antagonizados em seu elemento de crença. E mais, nos surpreendemos quando um terceiro elemento surge ao nosso olhar – sendo que sempre esteve ali com características próximas aos dois polos às vezes- e, é claro, não sabemos lidar com ele.

Uma posição que o Terceiro ocupa que sempre me causou estranheza foi a neutralidade. A Suíça na Segunda Guerra Mundial é outro exemplo típico. Numa primeira fase da guerra, enquanto ela se mantinha dentro do cenário europeu, com Inglaterra liderando um lado e a Alemanha Nazista o outro, a neutralidade suíça fez com que ela fosse cenário de espionagens mil. Sua prosperidade histórica com seus bancos famosos, de acúmulos de capital que remontam à época das cruzadas, fizeram com que, mais ainda, o país lucrasse e soubesse assistir e intermediar os tratos e estratégias da guerra, levando vantagem sobre isso é claro. Os Estados Unidos da América souberam se manter neutros também na Primeira Guerra Mundial, se engajando decisivamente somente ao final desta para terminá-la. Após a 1ª GM os EUA haviam se consolidado como potência mundial com seus capitais em Wall Street a pleno vapor. Nesta neutralidade que o Terceiro ocupa observamos que um distanciamento dos principais atores pode favorecer um hábil ator para crescer enquanto outros se desgastam em suas disputas. Algo que foge à primeira análise é o fato de que o país neutro tem condições de manter a sua neutralidade, senão seria facilmente submetido à vontade de outras unidades políticas. Às vezes o mais forte dos lutadores se abstêm de lutar.

Outro cenário que vejo é quando o Terceiro é um contendedor mútuo. A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a URSS, soube guiar a balança de poder a seu favor na 2ª GM em dois momentos. Em um primeiro momento com o Pacto Ribbentrop-Molotov (1939), o tratado de não agressão entre russos e nazistas, dividia-se a Polônia entre esses dois países e atendia a uma intenção russa oculta de enfraquecimento alemão. Raymond Aron, em Paz e Guerra entre as Nações, nos expõe:

Havia um interesse comum entre a União Soviética e as democracias ocidentais: impedir o Terceiro Reich de fortalecer –se a ponto de sobrepujar sozinho algum dos blocos hostis. Mas evitar a guerra era interesse da França e da Inglaterra, não necessariamente da União Soviética. Desviar para oeste a primeira agressão alemã correspondia ao interesse soviético (…) Assim o pacto germânico-soviético não se distanciava do maquiavelismo tradicional.

Em um segundo momento, já com a Alemanha em declínio e com os EUA liderando os aliados, A URSS se virou contra os alemães, após uma agressão nazista. Ainda nas palavras de Raymond Aron:

Se, em última análise, Stálin jogou com astúcia, ninguém ousa atribuir esse mérito a seu gênio. Uma vez eliminada a Alemanha, nenhum obstáculo levantava-se à penetração soviética na Europa. Bastaria que os Estados Unidos tivessem consciência, em 1942, da contradição entre os interesses soviéticos e os interesses norte-americanos para que o líder soviético tivesse pela frente uma partida difícil. Mas não foi o que aconteceu. Convidado a dar o golpe de misericórdia no Japão e decidido a ocupar a Europa oriental até o centro da Alemanha, Stálin aceitou sem hesitar o que lhe era graciosamente oferecido.

O resultado foi uma bipolarização no mundo inteiro: a Guerra Fria. O Terceiro tornara-se assim um novo Caim.

Um posicionamento interessante que o Terceiro pode assumir é o de falso messias. Esse nome por si só é um piada em relação ao exemplo que darei mas é o que define melhor. Na idade média, o avanço do cristianismo sobre a Europa foi, no mínimo, notável, mas outro avanço se sucedeu: o Islã. Talvez aproveitando da queda do Império Romano, que descentralizou o poder em um sistema feudal, que tinha por sua vez um poder religioso constituindo a única unidade europeia; ou pelo próprio crescimento dos grandes califados, rebatidos e rechaçados pelas Cruzadas e pelas Guerras de Reconquista na Península Ibérica. De fato houve uma tentativa de islamização da Europa. As guerras do fim da Era Medieval e as Grandes Navegações deram um escape para o mundo ocidental a outros cantos do mundo, antes desconhecidos.

Com a formação dos Estados-nações e a Reforma protestante, o elo invisível da religião católica, chefiada pelo Vaticano, começou a se partir e o cristianismo entrou em uma fase entrópica, que culminou na Guerra dos Trinta Anos, terminada com a Paz de Westfália. Daí por diante foram guerras atrás de guerras – até porque a humanidade parece adorar um conflito. O item religioso meio que foi retirado do seu lugar devido e em seu lugar o próprio homem, refletido na política e no nacionalismo, foi colocado. Um ateísmo humanista foi ganhando força. Sob vários nomes, religiões políticas foram formando o mundo que conhecemos hoje. E tiramos Deus de nosso modo de ser, pelo menos da forma com que antes lidávamos. Mas nem todos fizeram isso.

Nas últimas décadas – na verdade desde a Primeira Guerra – um barril de pólvora se acendeu em um canto do mundo de onde se originaram as três religiões principais de hoje: Oriente Médio. Francamente belicoso, esse mundo a parte regido pelo Islã, em contínuo combate à Nação de Israel, alçou vôos mais altos. Seja por interferência russa ou americana, nações islâmicas cresceram em poder no balanço geral do mundo. Com podemos esquecer o atentado às Torres Gêmeas em Nova York de 11 de setembro de 2001? O petróleo abundante nessa região às fez mexer até mesmo com o nosso sistema econômico em vários momentos. Resultado: países riquíssimos baseados em uma fé que tentou por meio da força dominar a Europa há mais de dez séculos. Mas agora a estratégia é outra, lhes apresento o falso messias: o Islã.

Similar à obra 1984, em que George Orwell retratou um cenário onde a aplicação do totalitarismo se põe em prática, Submissão, de Mihel Houellebecq, conjetura um cenário, não distante, onde a crescente população islâmica na França ganha representação política e chega ao governo. O narrador e personagem principal mostra algumas coisas interessantes sobre mídia, mas vou deixar que o leitor descubra isso sozinho lendo o livro, que recomendo de forma acintosa.

O cenário inicial do livro é de um governo de centro-direita (UMP), que historicamente reveza o poder com um partido de centro-esquerda (PS), ambos pró Europa como federação aos moldes da União Européia. Um novo partido começa a chamar atenção, a Fraternidade Muçulmana, que resolve lançar um candidato à presidência: Mohammed Ben Abbes, personagem moderado, um islâmico “água com açúcar”. Dissidentes nacionalistas dos antigos partidos formam também um partido, a Frente Nacional, que tem caráter extremista e identitário, sempre pró-franceses em detrimento de imigrantes. As eleições ocorrem com um primeiro turno conturbado com um resultado surpreendente:

“É um terremoto”, ele anunciou de cara, quando apareceram os primeiros números. A Frente Nacional chegava amplamente na dianteira, com 34,1% dos votos válidos, (…) Com 12,1% dos votos, o candidato da direita estava fora do páreo. (…) Foi só um pouco depois da meia-noite, na hora em que eu terminava minha segunda garrafa de Rully, que anunciaram os resultados definitivos: Mohammed Ben Abbes, candidato da Fraternidade Muçulmana, chegava em segundo lugar, com 22.3% dos votos. Com 21,9%, O candidato socialista eliminado.

Com a temida Frente Nacional junto com a Fraternidade Muçulmana no segundo turno das eleições, a tradicional dualidade direita-esquerda­ – originalmente inspirada na Revolução Francesa de 1789 – entra em colapso. O medo da FN chegar ao poder faz florescer uma aura de salvador em Ben Abbes, com uma terceira opção menos drástica. Caim e Abel se juntam ao Terceiro, para que este os salvasse. Todavia isso seria a morte dos dois irmãos.

A notícia estourou, na verdade, pouco depois das duas da tarde: a UMP, a UDI e o PS tinham se entendido para fechar um acordo de governo, uma “frente ampla republicana”, e se aliavam ao candidato da Fraternidade Muçulmana. (…)

“É uma ideia genial, Bayrou, absolutamente genial!…” exclamou Alain Tanneur assim que me viu, literalmente trepidando de entusiasmo. “Confesso que nunca teria pensado nisso; ele é realmente muit bom esse Ben Abbes…”(…)

“Os católicos tinham praticamente desaparecido da França”, ele prosseguiu, “mas continuavam parecer envoltos numa espécie de magistério moral; em todo caso, Ben Abbes fez tudo, desde o início, para cair em suas boas graças: ano passado, fora nada menos do que três vezes ao Vaticano.”

“Mas ainda assim, é um muçulmano…” retruquei, confuso.

“Sim! E daí?…” Ele me observou, radioso. “É um muçulmano moderado, este é o ponto central: ele mesmo o afirma constantemente, e é verdade.”

Ben Abbes é eleito e o leitor pode imaginar que as coisas mudam no novo califado francês dessa distopia. E o que mais incomodou é que na ficção, assim como na França do mundo real, o aumento da população muçulmana e as imaginadas mudanças sócias oriundas de uma tomada o poder, na contramão do que fizeram os cruzados em tempos passados, são aceitas e incorporadas de maneira dócil e submissa. A explicação para isso – muito plausível até – foi dada no relato de um dos personagens da trama, Robert Rediger, reitor da universidade onde o protagonista lecionava, que se mostrou a mim como um retrato arquetípico da Europa. Um europeu convertido ao Islã, casado com uma mulher de quarenta anos, que fazia as vezes de governanta da casa, e com uma jovem de quinze anos, que devia desempenhar outros papéis de esposa.

“Todo o debate intelectual do século XX se resumira a uma oposição entre o comunismo – digamos, a variante hard do humanismo – e a democracia liberal – sua variante suave; era, ainda assim, extremamente redutor. O retorno do religioso, de que então se começava a se falar, eu já sabia, creio que desde os meus quinze anos, que era inelutável. Minha família era bastante católica – bem, isso já era algo meio distante, meus avós eram católicos -, então, naturalmente, eu me virei em primeiro lugar para o catolicismo. E desde meu primeiro ano de universidade me aproximei do movimento identitário.” (…)

“Nunca escondi meus engajamentos de juventude…”, prosseguiu. “E meus novos amigos muçulmanos jamais pensaram em me censurar; parecia a eles perfeitamente normal que, em minha busca por um caminho para sair do humanismo ateu, eu me voltasse em primeiro lugar para minha tradição de origem. Aliás, não éramos racistas nem facistas – bem, sim, para ser totalmente honesto, certos identitários não estavam muito longe disso; mas eu, em nenhuma hipóteses, nunca. Os facismos sempre me pareceram uma tentativa espectral, uma visão de pesadelo, falsa, para tornar a da vida a nações mortas; sem a cristandade as nações europeias não eram mais que corpos sem alma – zumbis. Por fim: a cristandade conseguiria reviver? Acreditei que sim, acreditei nisso alguns anos – com dúvidas crescentes, pois estava cada vez mais marcado pelo pensamento de Toynbee, por sua ideia de que as civilizações não morrem assassinadas, mas se suicidam. E depois, tudo desmoronou em um dia – para ser mais preciso, no dia 30 de março de 2013; lembro que era o fim de semana de Páscoa. Na época eu vivia em Bruxelas, e ia de ve em quando tomar uma bebida no bar do Métropole. (…) Na manhã de 30 de março, eu por acaso passava em frente dali e vi um pequeno cartaz anunciando que o bar do Métropole fecharia definitivamente naquela noite. (…) Pensar que até então era possível pedir sanduíches e cervejas, chocolates vienenses e doces cremosos naquela obra-prima absoluta de arte decorativa, que era possível viver a vida cotidiana cercado pela beleza e que tudo aquilo ia desaparecer, de uma só vez, em pleno coração da Europa! … Sim, foi nesse momento que entendi: a Europa já cometera seu suicídio.”

(…)

“Essa Europa que estava no auge da civilização humana realmente se suicidou, no espaço e alguns decênios”, continuou Rediger com tristeza; (…) “Houve em toda a Europa os movimentos anarquistas e niilistas, o apelo à violência, a negação de qualquer lei moral. E depois, algunsanos mais tarde, tudo terminou por essa loucura injustificável da Primeira Guerra Mundial. Freud não se enganou, Thomas Mann também não: se a França e a Alemanha, as duas nações mais avançadas, mais civilizadas o mundo, eram capazes de se entregar a essa carnificina insensata, então era porque a Europa estava morta. Portanto, passei aquela última noite no Métropole, até seu fechamento. (…) No dia seguinte fui ver um imã em Zaventem. E no outro dia – segunda-feira de Páscoa -, em presença de umas dez testemunhas, pronunciei a fórmula ritual da conversão ao islã.”

 Enquanto esquerda e direita, comunismo e capitalismo, brincam de gato e rato através da história, outros atores estão se movimentando. Na ficção apresentada, duas facções, eternamente antagônicas, que perderam com o passar dos séculos o elemento transcendental de sua fé e depositaram tudo em si mesmos, foram engolidos por quem não esqueceu as suas raízes.

No posfácio da 3ª edição de O Jardim das Aflições de Olavo de Carvalho é apresentada uma conversa entre Silvio Grimaldo e o autor do livro, em comemoração aos vinte anos da obra. Uma das perguntas e respostas entrou em consonância com o assunto deste texto e da obra distópica de Houellebecq, a saber:

S.G. – Mas nesse período não foi apenas a sua percepção dos fundamentos culturais da sociedade americana que mudou, mas sua própria teoria de o Império evoluiu. No debate com o Alexandre Dugin, você defende a tese de que hoje existem pelo menos três projetos de governo global em disputa. Ainda que nem todos os três sejam reencarnações do Império Romano, são projetos claramente imperiais.

O. de C. – Embora a interpretação que apresentei sobre a história a ideia de Império em O Jardim das Aflições esteja certa, ela está incompleta no que diz respeito aos EUA. E foi justamente pensando nessa lacuna que me pareceu necessário remapear todo o conjunto da análise, porque, naquela época, eu estava interessado apenas na evolução histórica do Ocidente como sucessivos renascimentos do Império Romano. Eu precisava ampliar o quadro e foi então me surgiu a teoria dos três blocos globalistas: o anglo-saxônico ocidental, o comunista russo-chinês e o islâmico.

Tanto o bloco o globalismo ocidental quanto o bloco comunista se inspiram no Império Romano. Já o bloco islâmico não compartilha essa inspiração, pois acredita que o Islam já superou Roma. O que é o Império Romano perto o Califado Universal? Nada! Além disso, o bloco islâmico tem sua fonte própria, o Corão.

E onde ficam os conservadores cristãos americanos? Eles estão fora desse jogo. Eles não são uma voz presente no mundo. Eles poderiam ser se houvesse, ao lado desses três projetos globais, um globalismo cristão, mas isso não existe.

Olhar somente sob a ótica da tradicional dualidade em assuntos complexos é com andar usano um tapa olho. Surpresas por vezes desagradáveis podem vir. Afinal, se em um único indivíduo existem milhões de possibilidades, esperar que unidades políticas, povos e partidos sejam facilmente classificados em um dos lados do ringue é um erro. Esteja sempre atento a todos os movimentos, principalmente agora. Enquanto o Ocidente livre e o Oriente Totalitário se degladiam querendo ser o mais capaz no combate à pandemia do COVID, eu me pergunto: Como estão e o que estão fazendo os Países Islâmicos?

Se o islã não é político, não é nada.

Aiatolá Khomeini

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