Sirva-se de boa cultura

ALIMENTAÇÃO CULTURAL

ALIMENTAÇÃO CULTURAL:

Receitas de primeira de A.-D. Sertillanges  

Bruno Cabral Celestino

19 de outubro de 2020

Existe hoje em dia uma preocupação, justificada porém exacerbada, com o que se deve comer. “Tenha uma alimentação saudável e balanceada” eles dizem. Não quero aqui ganhar a eterna inimizade dos nutricionistas de plantão. Entendo que algumas disfunções dietéticas podem causar doenças sérias como obesidade, hipertensão ou diabetes, assim como a própria falta de alimento pode causar anemia, entre outros, até mesmo atrair outras mazelas pela baixa da imunidade. Não é esse o meu intento.

O que vim discutir foi que assim como o corpo deve receber alimento de forma controlada e balanceada, o nosso espírito precisa de sustento em nutrientes. Nutrientes esses não são vitaminas, aminoácidos ou carboidratos, mas são letras, palavras e frases, dispostas de maneira tal a provocar um significado que irá lhe marcar. E mais, será seu alimento para criar novas e novas escritas – ou então pra cuspir marimbondos e xingamentos, isso depende do alimento ingerido.

Já há algum tempo eu criei essa preocupação para com a minha pessoa e meus entes queridos, de maneira que envidei esforços para escrever tortas linhas como estas. O resultado inicial foi abaixo do aceitável. Estava eu desnutrido intelectualmente, fruto de uma vida pregressa me alimentando de obras com baixo teor cultural. Obras que nem mesmo lia. Muitas delas eram transmitidas a mim via televisão e dessa forma eu não me encontrava como que em um restaurante, onde podia analisar cada pormenor do menu e emitir o pedido. Era mais semelhante a um refeitório escolar ou prisional, onde me era servido o alimento sem questionamento, ou como um bebê, a esperar a colher cheia de papinha vir, para que só precise abrir a boca. Quantos de nós cresceram diante de uma televisão de tubo, de onde emanavam programas de auditório e as, tão conhecidas por nós brasileiros, novelas? A essas iguarias também se seguiam os desenhos e minisséries. A qualidade destes pratos do refeitório cultural nem sempre era alta, tampouco o efeito nutritivo que eles proporcionavam. A partir disso nossas cabeças criaram vários estereótipos advindos da vila do chaves e da novela das oito e nem sempre isso nos foi saudável.

Expondo dessa maneira parece que somos bem pobres em referências culturais em relação a outras gerações, que recitavam e conversavam sobre Shakespeare, Dante e outros talentos das artes. Existem, ao meu ver, dois motivos que explicam essa diferença entre Tolstói e Manuel Carlos.

O primeiro motivo é a “evolução dos tempos”. Não é só uma questão de uma geração ser mais culta que outra, mas sim pelo veículo por onde eram trazidas as novelas. O próprio termo “novela” é o nome de um gênero literário que passou às telas. Que os antigos liam mais do que nós não há dúvida, mas eles não tinham outra alternativa. A leitura era a forma de emissão dessas histórias. Não havia televisão ou rádio. E outra, não eram todas as pessoas que sabiam ler, muito era passado pela pura oralidade. E, lógico, o teatro era mais forte do que hoje, haja vista que hoje ele está quase supérfluo, pois com a internet podemos assistir a uma peça do conforto do nosso sofá. Essas são razões práticas pelo que abandonamos a cada dia os veículos culturais mais tradicionais.

Mas o segundo motivo, que se origina no primeiro, é a consequência de toda essa praticidade, ficamos “acomodados”. Nos acostumamos a receber tudo isso de forma cada vez mais fácil. Hoje em dia, dificilmente uma pessoa não possui um celular que lhe dá acesso a quase tudo. Existem profissões que são exercidas em casa através da internet sem que os colegas de trabalho nunca nem tenham se visto. Isso gera consequências. A facilidade com que estamos acostumados por vezes nos enfraquece.

Porque o poder do Homem de torná-lo aquilo que ele quiser na verdade significa, como vimos, o poder de alguns homens de fazer o que eles quiserem de outros homens.

Nesse trecho, C.S. Lewis define como a evolução do poder do homem pode ser o seu declínio. Quando nos acomodamos pela facilidade da atualidade, não estamos somente deixando de usar, por exemplo, o nosso poder de escolha, mas estamos abrindo mão dele e entregando a outrem. Quando se diz que o homem inventou o rádio, na verdade apenas um homem realizou o feito; a partir disso um grupo de homens, uma parcela de todos os homens, passou a controlar esse veículo de informação e cultura. Ao passo que, os outros homens, desobrigados de buscar por si mesmos uma ocupação para suas cabeças, deixaram por ser servidos com, digamos, a comida que tinha no refeitório. Assim se dá o declínio pela ascensão. Voltamos então à condição de bebês, alimentados por um provedor, sem preocupação, mas também sem controle.

Um pouco de dificuldade talvez lhe dê uma certa recompensa. Primero pela escolha, que deve ser retomada. Os tais algoritmos de busca nos desfavorecem nisso. Quando menos esperamos estamos em uma bola de neve de assuntos comuns, como que nos mantendo constantes em estado atual, em situação estanque, nos impedindo de ascender, mas não de regredir. Saiba escolher o que se procura. Se surgiu um interesse em algum assunto, procure-o. Daí também pode ser explorado o paradoxo informacional que ora vivemos, em que a geração que mais tem acesso à informação não sabe interpretá-la em prol da verdade. O vício em notícias é o mais comum; acumula-se os fatos, mas não se tem conclusão alguma.

…mas tome cuidado para que a “atualidade não esgote todas a suas possibilidades para o trabalho e, em vez de leva-lo adiante, paralise-o.

Essa continuidade em algo sem ter um porquê pode ser chamada de tara, inclusive na leitura, aos que se aventuram.

A “paixão” pela leitura, que muitos honram como uma preciosa qualidade intelectual, é na verdade uma tara; não difere em nada das outras paixões que devoram a alma, trazem-lhe perturbações, lançam e entrecruzam nela confusas correntes e esgotam suas forças.

Temos que ler inteligentemente, e não apaixonadamente.

O que Sertillanges alerta é o próprio ato do automatismo. É uma problema paralelo ao poder de escolha. É cena comum uma sala com a televisão ligada sem ninguém assintindo, ou aquela pessoa que fica vidrado no celular somente para passar o tempo, sem prestar atenção em nada, cansando sua visão e audição em vão. Algumas coisas são gravadas em nossa mente assim, mas sequer entendemos elas corretamente. É interessante exercitar a atenção seletiva, saber o que se está fazendo, para início de conversa.

Na leitura, que é foco deste artigo, esse cuidado é maior. A.-D. Sertillganges recomenda que se tenha critério tanto no tipo quanto na escolha. A tipologia é definida em quatro espécies. Na leitura de fundo, que é a de formação, “os autores consultados para esse fim devem antes serem acreditados que criticados” e deve-se estar em um estado de receptividade – talvez seja onde a escolha deva ser mais criteriosa, sendo um ponto deveras crítico, são como os alimentos mais importantes e corriqueiros a exemplo do arroz e feijão. Existem também as leituras de ocasião que lhe fornecem informação de maneira tal que “a obra consultada está a seu serviço” em atitude consultiva – uma experiência que complementa a anterior; é a carne que varia em seu prato, tomando uma alternância que lhe agrada sem ser o alimento comum. Passando ao terceiro tipo, existem as obras de estímulo ou edificação, nas quais a escolha “deve levar em conta a experiência de cada um” – são os seus pratos favoritos – que lhe trarão conforto em horas desagradáveis. E como a mente tem um limite, existem as obras de repouso, que lhe distrairão e lhe trarão descanso – é a sobremesa, o brigadeiro de colher.

Essas recomendações não servem só para livros, mas para filmes, revistas, blogs, programas de rádio e televisão e na internet. Se almejamos um dia produzir cultura, devemos também consumir dela. O produto é obra de seus fatores, assim como uma vida saudável é proveniente da tal alimentação rica e balanceada. Esses conselhos me ajudaram e espero eu que ajudem o leitor. Para todos os efeitos eu recomendo uma mente mais iluminada que a minha, a do próprio Sertillanges em A Vida Intelectual.

Um homem inteligente encontra em tudo a inteligência, um tolo projeta por todos os lados a sombra de sua fronte estreita e inerte.

O momento que se apresenta é, de certo modo, ilustrativo quanto a esses assuntos. Nos estranhamos quando os resultados não são os esperados, sem notarmos que são apenas fruto das ações que plantamos em nosso cotidiano. O tempo em que gastei neste texto traz a luz não só uma correção de critérios, mas também uma percepção de causalidade. Como abordei no terceiro parágrafo, o resultado inicial do meu crescimento pessoal foi baixo. Isso porque eu buscava as causas erradas dos meus problemas. O cerne desta alimentação cultural parte da premissa que a origem de nossas atitudes, ideias e afins, a semente disso tudo, não esteja amparada em uma remediação tardia, que pode apontar as arestas, mas não farão nascer e florescer árvores frondosas de conhecimento, com raízes tão profundas que permanecerão ali por tempo indeterminado.

Para encerrar, deixo a seguinte reflexão ao leitor: estamos no caminho certo? Estamos mesmo sendo conservadores em nosso âmago? – já que essa é a bandeira deste instituto – Ou somente temos uma nova roupagem acreditando que a essa nova imagem, como o tempo, se assomará à nossa pele?

Eles são homens da tarde, nas árvores veem as sombras, as folhas, os troncos, os frutos.

Nunca se lembram das sementes.

. Mário Ferreira dos Santos .

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