O Nó de Víboras

O comportamento social que talvez mais me provoque repulsa é o fingimento, principalmente nos casos em que se manifesta como fingimento de escândalo. Creio que ele seja o responsável por corromper na base tanto o seu próprio exame de consciência quanto a compaixão para com o próximo. Isso por causa da negação em querer enxergar uma alma humana quando ela se apresenta em toda a sua imundície decorrente de um lampejo de sinceridade, independente de quem seja ou de que cargo ocupe.

François Mauriac parece contornar esse embuste quando atribui à sua função de romancista o dever de expor, nas almas mais elevadas, aqueles impulsos baixos contra os quais elas ainda lutam, e na almas mais toscas, aqueles lampejos de grandiosidade que vêm à tona quase que involuntariamente.

Esses dois aspectos de personalidades entram em contato direto numa breve passagem de O Nó de Víboras, quando o protagonista, sujeito ruim até as vísceras e cuja vida inteira foi perfeitamente corresponde à sua baixeza espiritual, ouve a confissão constrangedora de um padre amigo da família. E então, diante das vergonhas ali expostas que o padre muito embaraçoso confessava, não rasgou as vestes fingindo escândalo, não constrangeu o padre com repreensões morais nem tampouco o submeteu a punições. Antes, demonstrou um verdadeiro desdém pelo que ouvira. E assim, inesperadamente, ouviu do padre coisa que jamais tinha ouvido de ninguém e que, por contrastar tanto com a vida que vinha levando, jamais conseguiria pensar de si mesmo: “o senhor é muito bom”.

O drama de “O Nó de Víboras” se passa todo sob a perspectiva da morte. É por ter plena consciência de que em breve irá morrer que Luis começa a escrever a carta que dá corpo ao romance. E ele o faz num último arremedo de raiva e crueldade, comportamentos que foram a base de toda a sua vida. Antes de partir deste mundo, ele se vingaria da mulher e dos filhos desabafando numa carta póstuma todas as intrigas que viveram em comum. Mas acontece uma reviravolta súbita – diferente do que havia planejado, não foi ele quem morreu primeiro mas sim a esposa. E é diante do túmulo dela que se inicia a via de arrependimento e redenção de Luis. É diante da morte da esposa que Luis repensa de novo toda a vida que levou, mas dessa vez não com a intenção de despejar misérias sobre os outros e justificar sua própria crueldade, mas para admitir sua parte da culpa e então desatar o nó de víboras em que havia se transformado o seu coração.

E é a partir daí que Luis, que antes estava no mesmo patamar que seus familiares, se torna maior que eles, a ponto de pela primeira vez ser capaz de enxergar uma brecha de bondade num sujeito que todos já haviam condenado como culpado. Transcendendo-os e abarcando-os, Luis passa a compreender o coração dos filhos e dos outros e ser inevitavelmente incompreendido por eles. Ninguém do seu convívio conseguiu perceber o que havia se passado com ele, presos que estavam nas suas velhas formas. Consideravam que ele estava apenas doido ou, baseados na vida que havia levado, enganando a todos novamente. Antes, enquanto estava contaminado pelas intrigas familiares, ele tinha de certa forma a companhia daqueles que estavam na lama junto com ele. Mas agora, tendo-se elevado acima da mediocridade ao redor, ele estava sozinho e incompreendido. Mas, diferente de antes, quando ele olhava para os outros com desprezo e rancor, agora ele os olha com compaixão. A única que chegou perto de compreender o que se passou com Luis foi sua neta a quem ele acudiu e consolou num momento de desolação.

Ele, que não era oficialmente um católico (só mais tarde, pouco antes da morte, viria a receber os sacramentos), já havia conseguido alinhar sua alma com a espiritualidade cristã e quando tenta incutir na compreensão da neta desiludida a profundidade da fé, ela, que era católica mas só compreendia disso as formalidades ritualísticas, não conseguiu entender do que o avô estava falando. Mas apesar dessa incompreensão, a neta foi a única a perceber que havia algo de diferente no avô, algo que nem ela nem os outros podiam abarcar. Ela percebeu que o avô havia alcançado um patamar muito acima daqueles meros hábitos externos dos ritos religiosos. Não chegou a ser um santo, evidentemente, mas – nas próprias palavras dela – foi “o único homem verdadeiramente religioso que eu já conheci”.

“O Nó de Víboras” destrincha a desorientação do espírito até encontrar ali dentro o que há de mais elevado, e a partir dessa brecha, por ínfima que seja, recuperar uma alma que estava prestes a se perder. Mostra uma alma humana de forma sincera mergulhada em dramas da vida cotidiana em vez de pintar uma caricatura grotesca de modelo de santidade fingida. François Mauriac acaba de se tornar um dos meus romancistas favoritos. Em breve irei atrás de seus outros livros.

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