REFLEXÕES SOBRE O CONTO “O ANÃO AMARELO”.

No “Fabuloso livro azul”, parte da coleção dos Fabulosos livros coloridos, organizada pelo folclorista Andrew Lang, está inserido o conto de fadas “O Anão Amarelo”, por Countess d’Aulnoy, contista francesa do século XVII. Esse conto, particularmente, chamou a minha atenção devido um trecho cujos elementos e sucessões de fatos, além da interpretação superficial que tive – a qual no meu entender já é interessante –, oferecem um entendimento mais profundo se utilizarmos o método de interpretação do psicólogo Paul Diel.

O método parte de uma tradução dos símbolos inseridos nas estórias (mitos, contos e fábulas) criadas pelos povos em suas diversas culturas desde a Antiguidade. Essas narrativas, quando analisadas, digamos, por um estudo comparativo, ao fim apontam alguns elementos comuns, ao exemplo das três instâncias atribuídas à composição da psique humana: o supraconsciente (espírito), consciente (inteligência humana) e o subconsciente (imaginação exaltadora ou repressora) (DIEL, 1991, p. 39). Essas instâncias, segundo o autor, são comumente personificadas e idealizadas nas diversas estórias que transmitem o conflito interior do ser humano na busca pelo sentido da vida, ou seja, na busca por ser alguém melhor, pela espiritualização (nas palavras de Paul Diel), a qual, entendo ser a busca histórica das pessoas pela Verdade. Não quero me aprofundar sobre cada instância, mas, somente aplicá-las à tradução simbólica do conto, até porque, sendo sincera, meu conhecimento sobre o assunto é limitado.

Importa mencionar que as interpretações foram dadas segundo o contexto da narrativa, pois determinados símbolos têm mais de um significado, às vezes benéfico, às vezes maléfico. Sobre certos símbolos serem de origem pagã, reconheço, meu objetivo é levantar os elementos que nos ensinam sobre as características históricas permanentes do ser humano. Nesse sentido, cito o autor Don Richardson, autor de O fator Melquisedeque, onde menciona Eclesiastes 3:11: “Tudo fez Deus formoso no seu devido tempo. Também pôs a eternidade no coração do homem, sem que este possa descobrir as obras que Deus fez desde o princípio até ao fim”. A minha intenção é sobrepujar o que pertence ao eterno e os traços humanos da luta contra os vícios na busca pela Verdade.

O conto (primeira parte; pp. 65-69)

A estória fala sobre a princesa Belíssima, filha de uma rainha que havia tido muitos filhos, mas, como restara apenas Belíssima, esta tinha o valor de mil filhos. Por isso, desde a morte do rei, passou a dedicar todos seus cuidados à filha, mimando-a em demasia ao ponto de nunca tentar corrigir os seus defeitos. Tal educação resultou numa pessoa que, estando certa de sua beleza – e realmente era muito bela – e de um dia ser rainha, passou a desprezar todas as outras pessoas, inclusive seus pretendentes, os quais se submetiam a situações humilhantes, implorando por uma atenção da princesa.

 A rainha, já bastante preocupada pelo desprezo dado aos moços, quando decidiu alertar sua filha viu, diante de si, claramente, a estupidez e frivolidade que dominavam a alma de Belíssima:

– Belíssima – dizia ela – queria que não fosses tão orgulhosa. O que te faz desprezar todos esses adoráveis reis? Gostaria que te casasses com um deles, e não tentas me agradar.

– Sou tão feliz! – respondia Belíssima. – Deixa-me em paz, senhora. Não quero me envolver com ninguém.

– Mas tu ficarias muito feliz com qualquer desses príncipes – argumentava a Rainha – e vou ficar muito zangada se te apaixonares por alguém que não seja digno de ti (p. 66).

            Sem saída, a rainha julgou ser bom buscar ajuda de certa feiticeira, a Maga do Deserto, mas, havia um problema: a maga era guardada por terríveis leões que devoravam quem quer que fosse procurar por ela. Para que isso não acontecesse, preparou um bolo, pois havia escutado que se alguém o lançasse às feras, estas o comeriam, ficando desse modo distraídas e, assim, a pessoa conseguiria seguir em frente para encontrar-se com a feiticeira.

            Tendo feito o bolo, colocou-o numa cesta e partiu em busca da maga, percorrendo um longo caminho, porém, não estando acostumada, cansou-se e vendo uma árvore, decidiu ali parar e descansar por pouco tempo. Exausta, pegou num sono e, quando despertou, viu que o seu bolo, a única esperança de livrá-la da morte, desaparecera. Sabemos pela narrativa como o bolo sumiu: foi roubado e comido pelo Anão Amarelo, morador da árvore (um pé de laranjeira).

É aí que começa a árdua trajetória do ser para se libertar do seu algoz. A rainha não sabia que havia um morador naquela árvore, julgando ser seguro ali parar e descansar, porém, quando despertou, rapidamente viu-se numa situação complicada. O que fazer? As bestas-feras já estavam correndo na sua direção para devorá-la, quando, cega devido ao nervosismo causado pela situação complexa, não viu outra saída a não ser firmar um pacto funesto com o anão, prometendo sua filha Belíssima em casamento ao monstrengo.

            Sem me ater aos detalhes desse trecho, menciono que o anão a livrou das feras, permitindo que entrasse dentro da sua morada, a árvore, abrindo uma portinha no tronco. Lá dentro foi transportada para outro lugar: a casa do anão, onde conhecemos alguns elementos que nos informam simbolicamente do que se trata a vida e mundo do antagonista, os quais serão explicados ao fim do artigo.

A interpretação

Quando a rainha vê nitidamente a errância empreendida pela filha e a alerta, trata-se da consciência (alma) de um ser que, ao ter um despertar de lucidez, aponta para si os vícios praticados. O despertar que ilumina o ser com sinceridade e reconhece o que é preciso ser corrigido (DIEL, 1991, p.96-97). Mas, como lemos, Belíssima estava indisposta para isso, julgando-se feliz com o estado de coisas no qual vivia, chegando a menosprezar, até de modo um tanto jocoso, o conselho de sua mãe.

Não é fácil sair dos vícios, ou, segundo Paul Diel, da perversão da imaginação ou da banalização, que podem ser entendidas como a exaltação, o desequilíbrio, das três pulsões (ou pelo menos uma delas) existentes em cada pessoa, a saber: vaidade, perversão social, perversão sexual (DIEL, 199, p. 85). No entanto, como mencionado, por mais que o ser consiga ver conscientemente seus erros é preciso esforço tanto para admiti-los como, também, para elevar-se, de modo sadio, intelectualmente na direção do supraconsciente (espírito); sair do vulgo, da mediocridade, ou mesmo da monstruosidade, para ser uma pessoa mais equilibrada, isto é, que tem disciplina na ação e harmonia dos desejos (DIEL, 1991, p. 18).

No entanto, mencionando sobre erros, qual o erro central de Belíssima ou desse ser representado em todo o conto? Lendo O simbolismo na mitologia grega, entendo tratar-se da banalização da pulsão social seguindo por seu recalcamento, ocasionando assim a banalização nervosa, isso porque Diel (1991, p. 140) tece considerações a respeito de dois símbolos essenciais para essa descoberta: o primeiro, a filha (princesa) por ser a herdeira do trono de sua mãe, tende a ter fraqueza pela dominação social – o poder, expresso por diversas vertentes –, afinal, de acordo com o autor, tal fraqueza é historicamente comum em narrativas que discorrem sobre heróis “(…) frequentemente filhos de reis destinados a governar” (DIEL, 1991, p. 140). O segundo símbolo são os leões, animais que remetem à dominação, a qual, dependendo do contexto, pode ser nobre ou maléfica. Logo, não é absurdo concluir que a narrativa fale sobre a importância da humildade, da caridade e do controle de si com constância, mesmo a pessoa estando em posição de destaque.

Depois do alerta dado pela consciência, o ser estando tão habituado à zona de conforto, vivendo num círculo vicioso, nega o chamado pelo arrependimento. Belíssima sentia-se bem daquela maneira e estava por demais orgulhosa para admitir a razão de sua mãe. Para tanto, só havia um jeito, ao menos nesse estágio, de dobrar, corrigir essa banalização: procurar reconhecer a culpa e sublimá-la a fim de recomeçar a vida.

Infelizmente, de acordo com a narrativa, não foi isso que a rainha fez; pelo contrário, tentou de alguma maneira disfarçar a sua culpa quando preparou o bolo para oferecer às feras; isto é, em lugar de vencê-las, matando-as, intentou acalmá-las para ter acesso à Maga do Deserto, com o objetivo de conseguir um bom casamento para a princesa. Ou seja, prosseguiu por subterfúgios, e não por merecimento, a fim de conseguir algo mui desejado, conforme ensina Diel (1991, p. 133) no mito de Jasão, o qual adormece o dragão para ter acesso ao tesouro. Nesse caso, interpreto como sendo uma maneira insensata de intelectualizar-se, de crescer enquanto ser humano, pois se trata da busca por casamento para sua filha sem passar pelos estágios imprescindíveis para tanto.

 Mas, por que matar as bestas-feras? Porque elas significam tanto o tamanho da culpa (que, se não controlada, devora o ser) quanto o tipo de perversão dominante. Não somente é preciso admitir o erro quando a personagem, ou o herói, depara com dado monstro, por exemplo, um dragão, mas também é preciso lutar contra ele, matando-o, e não fazê-lo dormir, porque a qualquer momento ele pode acordar.

Ao ler a parte na qual a rainha pensa em buscar ajuda com a feiticeira, temos duas interpretações: uma imediata, pela qual nos diz que ela foi precipitada em buscar pela Maga do Deserto; e a segunda interpretação, por sua vez, diz que a consciência se angustiou ao se ver sem possibilidades de prosseguir praticando determinados erros, porque descobriu a loucura que eram na realidade.

 Todavia, estando profundamente angustiada, não pôde pensar com lucidez porque a angústia é um estado em que o desejo não tem mais saída; perde sua própria essência, sua razão de ser, sua esperança, e desespera-se, torna-se angústia. A angústia é o desejo sob forma negativa.

A angústia é um estado convulsivo porque se compõe de duas atitudes diametralmente opostas: a exaltação desejante e a inibição temerosa. Esta situação psíquica de natureza contraditória é atribuída à perturbação de não saber mais de que maneira reagir (DIEL, 1991, p. 33).

Desorientada, caminhou pela via errada quando decidiu ir à procura da Maga do Deserto, símbolo das coisas terrenas, sem qualidades benéficas; nesse caso é ainda pior porque ela reside no deserto, onde não há água, símbolo do espírito, dos assuntos mais elevados. O que esperar de consequências e fatos a partir desse destino e objetivo, senão uma árvore cujo dono é o Anão Amarelo? Isto é, uma árvore que, dentre tantos significados –positivos e negativos –, neste conto em particular interpreto como sendo uma distração terrena para o ser representado, que luta mas que deita e dorme no mundo das coisas fúteis e passageiras, deixando de vigiar (DIEL, 1991, pp. 69, 129).

Tal sono não pode ter outra consequência a não ser a perda do bolo preparado, roubado pelo espírito/intelectual decaído –representado pelo anão – e a sua autodescoberta pelo próprio despreparo para lutar contra as feras, ou seja, a culpa que vem devorá-la. Aliás, a primeira interpretação que tive ao ler esse trecho foi de tratar-se da rainha representando alguém que em dado momento crucial para a sua vida – ou para outras pessoas – foge da responsabilidade. Ainda com a interpretação dada por Diel, de certa maneira, a mensagem continua a mesma: a fuga da responsabilidade de conhecer a si, domar-se, dominar suas ações e ordenar os desejos.

Toda essa trajetória do ser é muito difícil e complexa porque os fatos, ideias, ações e efeitos muitas vezes acontecem ao mesmo tempo, por isso que é preciso não julgar aqueles que sentem dificuldades de sair do mundo terreno e buscar pela verdade.

As sucessões de erros e poucos acertos no conto nos indicam que, há muitos anos, a humanidade vive essa luta interna. O momento da contrição, introspecção sobre seus erros e possíveis decisões pelo certo é uma caminhada desgastante, como a percorrida pela rainha, representado a alma que não suporta mais o fardo do pecado. Porém, infelizmente se vê impotente de sublimar a culpabilidade e para evitar ser devorada pela culpa voraz (o remorso) não enxerga outra saída a não ser denegá-la, recalcando-a no subconsciente.

Uma vez denegada, a narradora informa que o anão abre uma portinha no tronco da árvore por onde ela rapidamente entra, fugindo da morte. É justamente ali dentro da árvore, na casa do anão, que ela vê nitidamente o estado da sua alma: uma casinha de palha – fragilidade, impossível de resistir às adversidades da vida –, campo de cardos e urtigas cercado por um fosso lamacento, isto é, água maculada; caráter sujo. O fosso lamacento e o lodo remetem frequentemente ao estado de luxúria (perversão da pulsão sexual) em maior ou menor grau (DIEL, 1991).

Compreende-se, por meio dos elementos narrados até esse ponto, que a estória fala sobre um ser que é afetado por um desejo irrefreado de dominação social e, também, cercado pela luxúria (DIEL, 1991, pp. 131 e 143). Justamente, é esse quadro de horror com que a consciência depara ao recalcar a culpa e tentar conviver com seus erros.

Depois de algumas palavras do anão, a rainha desperta em sua cama pensando, num minuto, que tudo tinha sido mero sonho, porém, um elemento a fez ter certeza de que tudo foi real: a touca de renda na sua cabeça, ou seja, o peso na consciência. Não é possível conviver com a denegação da culpabilidade porque não é da natureza legítima do ser humano permanecer decaído – isso enquanto ainda resta uma centelha de lucidez. Mais para frente, Belíssima, vendo sua mãe triste, decide percorrer o mesmo trajeto e acaba caindo na armadilha do anão, desta vez oferecendo-se ela mesma por casamento; temos aí a confirmação. O ser ficou pesaroso com sua situação, mas ainda não teve a força de vontade necessária para quebrar o círculo vicioso.

 A princesa também sente nojo ao se ver prometida àquele ser deplorável e tenta mudar o seu destino, dando-se em casamento ao Rei das Minas de Ouro, símbolo da intelectualidade legítima, mas, infelizmente, no momento do casamento, o anão e a maga invadem a festa para cobrar o pacto firmado. Claro, o bem não pode conviver com o mal. Não é possível o erro recalcado aceitar a sublimação sem alguma batalha interior. Um dos dois precisa vencer o outro e dominar a alma; ou um ou o outro.

O anão e o rei decidem lutar pela conquista de Belíssima, mas ocorrem contratempos que impedem o desfecho. Assim, seguem-se vários fatos cheios de elementos interessantes, como quando o rei está aprisionado pela maga, que, muito apaixonada por ele, transfigura-se numa moça ainda mais bonita que Belíssima, porém, os seus pés não mudam; continuam feios. Interessante, os pés representam o estado da alma. Não adianta maquiar o mal com a aparência de bem se a alma ainda é feia (DIEL, 1991; pp. 145-146).

Portanto, entende-se que o conto trata de um ser inconstante, que vive entre altos e baixos, elevação e queda – que lembra Tântalo –, encontrando muita dificuldade em se equilibrar. Paul Diel, por meio da análise psicológica do mito de Tântalo, disserta que uma pessoa inconstante pode sinalizar que possui uma força vital grande e, por isso mesmo, enfrenta maiores dificuldades em domá-la. A partir dessa exposição de Diel, deduz-se que se essa pessoa conseguisse dominar a força de vida que tem, possivelmente produziria obras e ideias de igual força e qualidade para si e demais convivas, ou mesmo à sociedade.

Outro entendimento é que uma das intenções consiste em comunicar a importância em permanecermos sempre vigilantes e termos coragem de fazer sacrifícios no sentido de sermos melhores. Penso que Paul Diel, pelo estudo desenvolvido, conseguiu entender a idealização personificada da psique humana constante nos mitos e, consequentemente, nos contos e fábulas inventados pelas diversas culturas. Dessa maneira, temos condições de compreender melhor a vida pela leitura dos clássicos. Sempre, em algum ponto, nas obras humanas – as mais qualitativas – há algo a ensinar sobre como vivermos da melhor maneira possíve

Espero que este artigo tenha contribuído de alguma maneira para a sua vida, pelo menos para incentivá-lo(a) nessa estrada. Caso você, caro(a) leitor(a), souber de algum significado pertinente a essa estória, por favor, compartilhe-o para somar à nossa reflexão.

REFERÊNCIAS

DIEL, Paul. O Simbolismo na mitologia grega. Tradução Roberto Cacuro e Marcos Martinho dos Santos. São Paulo: Attar, 1991.

LANG, Andrew, 1844-1912. O Fabuloso Livro Azul. Edição de Renan Santos. – Porto Alegre, RS: Concreta, 2016.

RICHARDSON, Don. O fator Melquisedeque: o testemunho de Deus nas culturas por todo o mundo. Tradução Neide Siqueira. 3. Edição. São Paulo: Vida Nova, 2008.

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