Tirania do verbo e Forças Armadas

Não só armas têm poder. O verbo também tem. A palavra tem poder, podendo ela poder ser usada tanto para o bem e para o mal. A Bíblia diz que no início era o verbo. Deus deu toda a matéria-prima de que precisamos por meio dele. De fato. E afirmo que no fim também continua sendo o verbo. O verbo é o começo e o fim.

O logos, identificado com o Verbo, tem em Fílon de Alexandria a sua primeira formulação. Disse Fílon: “A sombra de Deus é o seu logos.; servindo-se dele como seu instrumento, Deus criou o mundo…”. Pela Palavra Sagrada, referindo-se ao início de tudo: “Aquele que é a Palavra tornou-se carne e viveu entre nós…”. Ou “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós…”.

Ressurgiu nos debates polarizados a discussão sobre o uso das Forças Armadas. O artigo 142 da Constituição Federal permite o tal do Poder Moderador?

O artigo que fala das Forças Armadas no texto constitucional é o 142, que tem a seguinte redação: 

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”.

O pano de fundo é o cenário político da atualidade brasileira em 2021. Parece que exércitos bolsonaristas e antibolsonaristas estão a postos antes mesmo do enfrentamento final que vai ser as eleições de 2022. A polarização neste tema é a seguinte: bolsonaristas entendem que existe Poder Moderador nas Forças Armadas; e o time adversário, logicamente, quer conter o aparente e suposto, porém erroneamente presumido, poder de fogo presidencial. Parece o que ficou consagrado na cultura brasileira: um “Fla x Flu”.

 Além disso, um outro incremento fático a este cenário se impõe. 

O PDT ajuizou uma ação no Supremo Tribunal Federal para questionar a lei que regulamenta o artigo 142 da Constituição Federal. Em suma, quer que o STF explique sobre a hierarquia presidencial nas armas e, além disso, que elas se restrinjam a Estado de Defesa, Estado de Sítio e garantia do livre exercício dos poderes nas Unidades da Federação. Ou seja, com receio de um golpe presidencial armado, perguntam ao supremo atirador o que é o quê naquele artigo.

O vice-presidente do Supremo, Luiz Fux, deu o seu primeiro tiro, concedeu liminar. Para o ministro, a missão institucional das Forças Armadas na defesa da Pátria, na garantia dos poderes constitucionais e na garantia da lei e da ordem não abarca o exercício de poder moderador entre os poderes. Esta decisão liminar de Fux ainda não foi apreciada pelo plenário da corte, pendente agora de marcação de data para julgamento. Ao que tudo indica, ela vai agora ao plenário. Justamente agora?

Destaco que, para Fux, o Poder Moderador brasileiro e salvador da pátria é adivinhem quem? O Supremo Tribunal Federal. Se Luis Roberto Barroso se autoproclama iluminista (como se isso representasse inteligência pura), Fux mostra que vive um eterno caso de amor com a natureza humana, um Rousseau da pós-modernidade acreditando na higidez democrática brasileira, na bondade e no bom senso. Direito com coerção, com armas, para quê? Deixa que o Supremo dá conta.

Eu entendo o que ele quer dizer. Só disse que o STF é intérprete máximo e último da Constituição. Tem que esgotar os recursos jurídicos no STF. Esgotar antes do uso da força? Isso ele não disse. Se é assim, Rui Barbosa tinha e ainda tem razão quando disse que a pior ditadura é a do judiciário. Rui Barbosa foi profeta: e se o STF contrariar o texto constitucional? 

No curso da história, vemos o Poder Moderador originalmente em Benjamin Constant (1767-1830), decorrente do Espírito das leis de Montesquieu (1689-1755). Montesquieu trouxe à política a divisão de poderes, enquanto Benjamin Constant enxergou que isso não resolveria o problema do desequilíbrio no exercício de um poder, pensando, então, num poder acima dos demais para conter os excessos e restabelecer a normalidade.

No Brasil, o Poder Moderador veio com a Constituição de 1824,  promulgada pelo imperador Pedro I. Ao Poder Moderador competia a organização política do império, função privativa do monarca. O artigo 101 da Constituição  daquela época conferia o exercício desse poder, destacando-se a competência para prorrogar ou adiar a Assembleia Geral ou dissolver a Câmara dos deputados, bem como a de nomear Senadores e Ministros de Estado. Ele perdurou até 1889 quando, proclamada a República, foi extinto.

O que restou para o Brasil de hoje? Como ajustar os excessos de um poder sobre o outro?

O Poder Moderador, no Brasil de hoje, não é o sistema de freios e contrapesos. Freios e contrapesos brasileiro é politicagem, é dar pitaco com um poder de retorno. Um eterno retorno a respeito do qual falarei mais adiante.

Se fosse falar assim, todos os poderes poderiam ser moderadores uns dos outros. O Poder Moderador é um poder por assim dizer acima dos outros três, com o objetivo de conter os desequilíbrios cometidos e ajustar as coisas para normalidade constitucional e democrática. Logo, o Poder Moderador não tem vontade própria, não se destinando a tomar o poder ou fazer alguma revolução.

Ao contrário de Fux, que diminui a importância das Forças Armadas (sei, entendi a decisão – elas não servem para golpe), se elas não são um Poder Moderador, ao menos então que sejam um poder arrumador.

Uma das vozes no sentido de que as Forças Armadas podem exercer o Poder Moderador vem de Ives Gandra da Silva Martins, que já escreveu:

Minha interpretação, há 31 anos, manifestada para alunos da universidade, em livros, conferências, artigos jornalísticos, rádio e televisão é que NO CAPÍTULO PARA A DEFESA DA DEMOCRACIA, DO ESTADO E DE SUAS INSTITUIÇÕES, se um Poder sentir-se atropelado por outro, poderá solicitar às Forças Armadas que ajam como Poder Moderador para repor, NAQUELE PONTO, A LEI E A ORDEM, se esta, realmente, tiver sido ferida pelo Poder em conflito com o postulante.”.

Sobre o artigo 142 da Constituição Federal, com aquele mesmo cuidado que manifestei no primeiro parágrafo, cito trecho de Ives:

O dispositivo jamais albergaria qualquer possibilidade de intervenção política, golpe de Estado, assunção do Poder pelas Forças Armadas.”.

Por estas e outras razões, e ao contrário do que quer fazer acreditar o ministro Fux, as coisas constitucionais não estão claras. O iluminado artigo 142 não tem o esclarecimento que pretende o ministro. 

Se é assim (o judiciário é o último reduto de poder), não estamos em democracia. É aquilo que Aristóteles falou em A política sobre as formas de governo. No caso do Brasil, um governo tirânico. É muita vontade de ser “agente político” (são eles, magistrados, impuníveis como os demais agentes públicos, pela doutrina de Direito Administrativo, mas não passa disso).

Retornamos ao verbo. O verbo do caos. O verbo constitucional. O verbo da ditadura. Saímos de uma e voltamos para outra. E outra pior. Quem dará jeito nela? O STF acredita em ditados como este: “O mundo dá voltas”.

Voltamos também ao direito de o Rei errar (“The King can do no wrong”)?

Segundo uma certa doutrina antiga de explicação de mundo natural, o mundo sempre retorna depois de um certo tempo ao mesmo caos primitivo. Começamos com o verbo (lembram, no começo tudo era verbo?). E agora retornamos a ele. 

Modernamente, Nietzsche voltou reafirmando o retorno, com essas palavras:

O mundo afirma-se por si também na sua uniformidade que permanece a mesma no decurso dos anos, bendiz-se por si mesmo, porque é aquilo que deve voltar eternamente, porque é o devir que não conhece saciedade, tédio nem fadiga.”.

O que importa, então, não é mais quem deve governar, e sim como governar e como tirar o governo do poder caso ele seja tirano (Karl R. Popper). “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”? Esse é um dos textos que mais sofreu a ação da tirania do verbo. Foi ele um instrumento da democracia literalmente aplicado. Isso faz tempo!

Eu falei verbo?

Coitada da nossa Constituição! Por acaso ela, que veio com vocação democrática contra as armas e estabelecer uma nova república, além de ser indevidamente retalhada pela democracia do martelo, ainda assim é obrigada a expiar  os pecados supremos?

E uma última observação.

Escrevo estas linhas em 23 de agosto de 2021, quando ainda não vigente a nova Lei de Segurança Nacional (o Projeto de Lei n. 2108, de 2021, aprovado pelo Senado Federal em 10.08.2021, ainda está pendente de sanção presidencial). Esta nova lei traz o crime de incitação ao crime, punindo quem incita publicamente animosidade entre as Forças Armadas, ou delas contra os poderes constitucionais, as instituições civis ou a sociedade.Logo logo, então, a nova lei pegará de surpresa, como um ladrão, quem, segundo o entendimento do STF, se atrever a dar show de pirotecnia, principalmente se for para celebrar o nosso “Estado Democrático de Direito”.

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Sergio Renato de Mello

Sergio Renato de Mello

Sergio Renato de Mello, brasileiro, casado, Defensor Público de Santa Catarina, residente em Rio do Sul, Santa Catarina.

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