Os desfiles de carnaval mudam, mas a intolerância religiosa é a mesma

Ano de 2019. O desfile das escolas de samba de São Paulo contou com um enredo da Gaviões da Fiel, onde Jesus Cristo era esbofeteado e humilhado por um demônio. Ampla discussão, visões de dois lados. Em 2020, a pauta religiosa voltou aos sambódromos, com novas agressões a ícones religiosos. Jesus apresentado em várias “versões” politizadas, Maria Madalena LGBT, foram algumas das imagens impactantes e chocantes dos desfiles.

 

Em tempos de corona vírus tomando totalmente a pauta de assuntos em todos os veículos nem permitiu uma discussão mais ampla deste tema – sempre recorrente – este verdadeiro vírus ideológico de tentar solapar imagens assentadas no inconsciente coletivo que são profundamente enraizadas pelo elemento da veneração. A religião secular se apoia em aparelhos culturais para educar o povo, desconstruindo valores e recolocando outros, como sabemos. Mas, como estamos atentos, não podemos deixar passar assim mesmo, temos de vocalizar aquilo que é certo e denunciar aquilo que é errado.

 

A razão pela qual tais caricaturas do sagrado são uma ofensa ao sentimento religioso está obviamente ligada à dignidade da pessoa humana como fundamento de nossa sociedade. Este fundamento respeita as instituições que existem antes do próprio Estado, e são reconhecidas como direitos naturais aos quais devem todos estrita subordinação. Por conta disso é que a dignidade conta como um dos fundamentos constitucionais da república brasileira (art. 1º, III, da Constituição de 1988). Sempre de novo, assim como aquela gripe que precisa de uma vacina para se debelar uma infecção generalizada, precisamos explicar, sob a ótica do Direito Religioso, que a arte não goza de liberdade absoluta, assim como nenhum outro direito fundamental.

 

Rememoramos aqui o que vivemos na cidade de Campina Grande (PB), no evento Consciência Cristã 2020, onde tivemos a alegria de palestrar novamente, apresentando o 2º Seminário de Direito Religioso. Ali, a reunião de pessoas, a coletividade, não estava interferindo, muito menos zombando, do direito de outras pessoas que não são crentes. O evento era uma expressão da preferência de milhares pessoas, que se reuniram para ouvir pregações, trocar experiências e usar seu tempo de festas para crescer intelectual e espiritualmente. Como seria, porém, se usassem o púlpito de pregação para tecer comentários depreciativos a outras expressões religiosas, ofendendo líderes, vandalizando imagens, zombando de ateus, ou usando expressões artísticas para promover a intolerância com outros grupos?

 

Ao usar a palavra sentimento, vamos ao sentido original do termo que significa uma expressão de afeição ou um modo de se comportar definido pelo afeto. Aquilo em que cremos e que decidimos que faça parte da nossa vida como princípio basilar das nossas relações e decisões, deve ser respeitado. A figura ao qual um fiel submete sua vida, acredita e ama não deve jamais ser objeto de escárnio. 

 

A Declaração das Nações Unidas sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e de discriminação baseadas em religião ou crença é um tratado internacional que “ainda não foi internalizado pelo governo brasileiro na forma estabelecida pela Constituição Brasileira, artigo 5º, parágrafos 2º e 3º, todavia não pode ser esquecido como importante axioma em tema de liberdade e tolerância religiosa.” (VIEIRA, Thiago Rafael. REGINA, Jean Marques. Direito Religioso: Questões Práticas e Teóricas. 3ª Ed. Revisa e ampliada. São Paulo: Vida Nova, 2020. p. 204).

 

A lição presente no art. 2º, §2º é essencial para entender os motivos aos quais, nem o carnaval, nem qualquer outro evento, têm passe livre para escarnecer da religião de alguém, o que configura um meio de discriminação pela convicção religiosa em foco: 

 

[…] entende-se por “intolerância e discriminação baseadas na religião ou nas convicções” toda a distinção, exclusão, restrição ou preferência fundada na religião ou nas convicções e cujo fim ou efeito seja a abolição ou o fim do reconhecimento, o gozo e o exercício em igualdade dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. 

 

O motivo pelo qual fazemos questão de falar sobre essa pauta todos os anos, é incutir nos crentes a consciência de que nosso ordenamento jurídico está estruturado de tal forma que não permite ações como as que ocorrem no período de carnaval e em outras apresentações de cunho [pseudo] artístico que fazem uma “crítica social” que está mais para desqualificação da fé. 

 

Para além de citarmos artigos de leis para nossos amigos, ou tentarmos criar um outro STF – Supremo Tribunal do Facebook, busquemos mostrar aos discordantes que existe um princípio basilar de convivência: além daquilo que um grupo deseje ou pense a respeito da vida, do mundo ou de como as coisas devem acontecer, a nossa história civilizatória levou o Brasil, um país fundado em valores judaico-cristãos, a adotar o fundamento da dignidade da pessoa humana como valor absoluto, a rocha sobre a qual tudo se fundamenta ou contra a qual nada subsiste. Respeitar a religião é parte deste fundamento; ouvir opiniões respeitosas discordantes também. Ofender, não; é antiético, pecado, e crime.

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As posições expressas em artigos por nossos colunistas, revelam, a priori, as suas próprias crenças e opiniões; e não necessariamente as opiniões e crenças do Burke Instituto Conservador. Para conhecer as nossas opiniões se atente aos editoriais e vídeos institucionais

Thiago Rafael Vieira & Jean Marques Regina

Thiago Rafael Vieira & Jean Marques Regina

Co-autor da obra: Direito Religioso: questões práticas e teóricas e de outras obras em coletâneas. Advogado desde 2004, professor, escritor e ensaísta. Graduado pela Universidade Luterana do Brasil - ULBRA (2004). Membro da OAB/RS, inscrito sob o n.º 58.257 (2004), membro da OAB/SC inscrito sob o n.º 38.669-A e membro da OAB/PR inscrito sob o n.º 71.141, especialista em Direito do Estado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS (2005). Pós-graduado em Estado Constitucional e Liberdade Religiosa pela Universidade Mackenzie, em parceria com a Universidade de Oxford (Regent’s Park College) e pela Universidade de Coimbra (Ius Gentium Conimbrigae/Centro de Direitos Humanos) (2017). Pós-graduado em Teologia e Bíblia pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Professor visitante da ULBRA e em diversos cursos de Dieito Religioso. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião – IBDR. Colunista dos blogs “Voltemos ao Evangelho” e “Gospel Prime”. Articulista na Revista de Teologia Brasileira / Vida Nova, Burke Instituto Conservador, Mensageiro Luterano e Instituto Liberal. Ensaísta colaborador da Gazeta do Povo. Vice-presidente do Instituto Cultural e Artístico Filadélfia – ICAF e atualmente é Conselheiro Fiscal da Igreja Batista Filadélfia de Canoas/RS. Esposa da Keilla e pai da Sophia Vieira.

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