Cristo demonizado

Alguns juízes, promotores, defensores públicos e policiais mandaram uma carta ao Senado Federal brasileiro contra a indicação de André Mendonça, o atual Advogado-Geral da União, para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal. Está vaga a cadeira de Marco Aurélio Mello, que se aposentou agora há pouco. 

Parcela de profissionais das categorias profissionais acima referidas se insurgiu por meio de suas respectivas entidades ou órgãos de classe. Ou seja, nem todos são contra André Mendonça. Nem todos são niilistas, materialistas, portanto, naqueles meios judiciários. Ainda há uma esperança. Há luz no fim do túnel. Por outro lado, não existe, aqui, então, unanimidade para repetir que “a unanimidade é burra”, frase conhecida de Nelson Rodrigues.

Citando um a um os remetentes da carta, temos as seguintes entidades: Associação Juízes para a Democracia – AJD, Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD; Associação Advogadas e Advogados Públicas para a Democracia – APD; Associação de Advogados e Advogadas pela Democracia, Justiça e Cidadania – ADJC; Coletivo por um Ministério Público Transformador – Transforma MP; Coletivo Defensoras e Defensores Públicos pela Democracia; Instituto de Pesquisa e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho – IPEATRA e Movimento Policiais Antifascismo.

Não quero analisar os pressupostos para a ocupação da vaga de ministro do STF. Essas questões já se acham amplamente discutidas em mídias confiáveis (como esta matéria https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/cronicas-de-um-estado-laico/resposta-a-carta-de-rejeicao-ao-dr-andre-mendonca/). Vou mais a fundo um pouco. A corda sempre arrebenta do lado mais “fraco”. É Cristo sendo Cristo.

Uma carta, no linguajar de hoje, cristófoba, em benefício de um certo cinismo democrático. Medo do que fala o Presidente da República em suas aparições informais, como, por exemplo, querer colocar um ministro “terrivelmente evangélico”. Se isso magoa, imaginem o que fizeram autênticos fascistas e comunistas ao negar o cristianismo escancaradamente. 

A carta menciona, ainda no seu início, que tais entidades “possuem entre suas finalidades e objetivos essenciais a defesa do estado democrático de direito, do equilíbrio de poderes e da independência do Poder Judiciário”. Pois bem.

Política e religião sempre andaram juntas: na Pré-história, na Antiguidade, desde sempre e até hoje, mesmo que sob formas não tão evidentes.” (Luis Felipe Pondé, Política no cotidiano: a ironia como método de sobrevivência). 

A missiva fala sobre Estado laico. Será que o Estado laico sofre atentado por obra de Mendonça no Supremo? Vejamos os fundamentos da carta, se há esse risco.

A carta fala que a indicação presidencial foi preponderantemente por conta de Mendonça ser religioso, por “professar a fé como pastor da igreja presbiteriana.”, relevando-se os demais requisitos constitucionais. 

Em complemento, esta fala do Presidente foi utilizada:

Muitos tentam nos deixar de lado dizendo que o Estado é laico. O Estado é laico, mas nós somos cristãos […]. Nós somos terrivelmente cristãos. E esse espírito deve estar presente em todos os poderes. Por isso, o meu compromisso: poderei indicar dois ministros para o Supremo Tribunal Federal [STF]. Um deles será terrivelmente evangélico”.

E, mais, repudiam o elegível por sua defesa mais religiosa do que jurídica quando da discussão sobre permissão de cultos religiosos durante a pandemia; por sua agradecimento fervoroso a Deus pela indicação presidencial em sua pessoa; por suas opiniões sobre temas sensíveis à religião (aborto, homossexualismo e drogas).

E por “tudo isso”, acreditam os remetentes da carta que Mendonça seria um “religioso fundamentalista”.

Dizem que a sua conduta e reputação não são ilibadas por ceder aos caprichos do Presidente da República. 

Qual o problema de assumir um ministro que professa uma fé religiosa? Ora, a negativa se baseia num esquema de troca de fés. Ou se é cristão ou não-cristão. Recusando Mendonça, a fé assumida continuará sendo a mantida hoje, a estabelecida, o ateísmo materialista. É essa fé que eles não querem que seja retirada.

Ou seja, em manifesta opção de crença, há clara disposição por não oxigenação na corte, mantendo um mesmo padrão ateísta e materialista nas cadeiras.  

Se, ao contrário do que o pensamento corrente crê, entre política e religião há uma simbiose, o mesmo não pode falar de Estado e religião. O Estado que se desvincula de Deus ou de deuses é chamado de Estado laico, separado da fé. Separam-se razão e fé, dois caminhos distintos e por vezes antagônicos. Houve tempo (no medievo) em que a discussão filosófica girava muito em torno dessa (a) sintonia entre transcendência e imanência, razão e fé. Fé, religião, Deus, são sobreviventes firmes e heróicos a todos os espancamentos racionais e espirituais, tanto que até hoje assuntos sobrenaturais ainda têm o seus fiéis seguidores. Eu sou um deles. E não me envergonho nem um pouco disso. Aliás, me orgulho da crença, já que ela não é para qualquer um. Enfim, se há necessidade de separação entre Estado e fé é porque a crença ainda sobrevive. E, pelo jeito, assustando muito gente que tem mais medo da luz do que da escuridão (John Lennox disse uma vez: “O ateísmo é um conto de fadas para quem tem medo da luz”).

Este medo da luz que vitima ateus, fenomenologicamente, ganhou um nome moderno para representar a aversão que gente “inteligente” tem ao cristianismo e ao conservadorismo: cristofobia. Cristofobia pura, ou melhor, uma cristofobia cínica, que, disfarçadamente, defende um laicismo que mais mascara um niilismo como modo de vida político (universalizando a “crença” no ateísmo). O Deus cristão, Jesus, sofre novo atentado depois do fenômeno que lhe deu veracidade como messias. Ressuscitou para apanhar novamente, desta vez como algoz de sofrimento de novas minorias oprimidas. Homossexuais, negros, mulheres, enfim, tutti quanti reclame para si o domínio de algum direito de crédito por dívida social antiga supostamente ainda não solvida e a nós imputada de geração em geração, como se a culpa fosse algo que pudesse ser passada por testamento ou herança.

O desprezo pela religião é patente. Aliás, isso não é novidade no cenário jurídico e judiciário brasileiro. A discriminação em relação a Mendonça também, assim como aos próprios evangélicos. Quanto a este aspecto, veja-se a Constituição Federal: “Art. 5º, VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”.

A carta é antidemocrática e cínica. Cinismo é, na sua forma bruta, toda aversão a valores ou esconde alguma dissimulação. Quem a escreveu bem sabe que o risco de acontecer o que temem é diminuto ou inexistente. O arranjo narrativo não sustenta uma fundamentação séria para a aceitação do pedido.

Sobre cinismo, vale o dito: “Você sempre será a presa ou o brinquedo dos demônios e dos tolos do mundo, se espera vê-los por aí com chifres ou tinindo os seus sinos. E seria bom ter em mente que, nas interações com outros, as pessoas são como a lua: mostram-lhe apenas uma de suas faces. Cada homem tem um talento inato para […] criar uma máscara a partir da sua fisionomia, de forma a sempre parecer que são de fato o que fingem ser […] e a consequência disso é extremamente ilusória. Ele veste a máscara sempre que tem como objetivo conquistar, com elogios a si mesmo, a opinião favorável de alguém; e você pode prestar tanta atenção à máscara como se fosse feita de cera ou papelão.” (Arthur Schopenhauer, citado por Robert Green, em As leis da natureza humana).

Sobre este teatro humano, Shakespeare: “O mundo é um palco,/os homens e as mulheres, meros artistas;/que entram nele e saem,/Muitos papéis cada um tem no seu tempo.” (Robert Greene, As leis…).

O cinismo está em todo o lugar. Enfim, é um espírito de nosso tempo.

As entidades escreveram a carta sabendo quem é Deus e o seu lugar nas consciências de cada um e do todo. Mesmo sabendo disso, continuaram derramando tinta “democrática” sob o papel. Por outro lado, o Estado é laico com ou sem André Mendonça no cargo. Só deixará de ser laico se o pedido contido no carta, de rejeitar Mendonça, for atendido, já que não se pode rejeitar alguém por conta de sua crença religiosa. E, pelo própria narrativa da missiva, não se vê qualquer ação de Mendonça contra o Estado laico. Ou seja, pura vigarice, cinismo mesmo. “É nesse sentido que Sloterdijk pode dizer que, no cinismo, “eles sabem o que fazem, e continuam a fazê-lo”. Como se houvesse uma profunda distorção performativa no cerne dos usos cínicos da linguagem.” (Vladimir Pinheiro Safatle. Cinismo e falência da crítica).

O cinismo antigo usava o corpo como manifestação de soberania consciencial. Este era um cinismo autêntico, de mais nobreza do que o nosso. A não ser episódios “malacabados” de usar cabeça de presidente como bola de futebol, defecar sobre o seu nome, o cinismo está sem representatividade brasileira. Não tem ninguém com a coragem de Diógenes, com sua ousadia, de viver para o cinismo como viviam os antigos gregos. Hoje é só conversa mole de idiotas que mal sabem o que fazem. A consciência dos novos cínicos se restringe ao pertencimento de um grupo político e social semântico, geralmente chamado de “esquerda”.

Já não fazem mais cínicos como antigamente. Caricaturas de cinismo, orgulhosos de suas insinceridades, irreverências, sarcasmos, tudo sem qualquer sentido. Falsas figuras de um cinismo raso. Um falso consciente. 

Alexandre, O Grande, se orgulhava da sinceridade de Diógenes, o patriarca do cinismo grego, disposto a largar o bem-estar do mundo alienado por uma vida natural e livre. Não sei se Cristo poderia dizer a mesma coisa da tal carta “democrática” aos representantes dos Estados brasileiros (Senado), pelos motivos até agora expostos. Será que Jesus falaria “Pai, perdoa-lhes, pois eles não sabem o que fazem?”. 

Acho que não, porque vejam a resposta: “O cinismo aparece assim como elemento maior do diagnóstico de uma época na qual o poder não teme a crítica que desvela o mecanismo ideológico. Até porque, como veremos, neste ínterim, o poder aprendeu a rir de si mesmo, o que lhe permitiu “revelar o segredo de seu funcionamento e continuar a funcionar como tal” (Slavoj Zizek, “Fétichisme et subjectivation interpassive”, Actuei Marx, Paris, PUF, n. 34, 2003, p- 100, in Vladimir Pinheiro Safatle, Cinismo e falência da crítica).

Diógenes expandiu seu discipulado para além da Grécia. 

São, na verdade, materialistas, e querem que todos o sejam também, embarquem no mesmo barco à deriva, na mesma canoa furada. 

Ordenar a própria alma torna-se um dever de sobrevivência em meio ao caos. Um dever e um direito. Existem duas portas, a larga e a estreita. Na porta larga passa boiada. Quem aceita entrar na largueza da entrada entra numa polis desordenada como reflexo massivo do caos do interior da alma. 

Quanto ao dever, “Ninguém é obrigado a tomar parte na crise espiritual de uma sociedade; pelo contrário, cada um é obrigado a evitar esta loucura e viver sua vida em ordem (Eric Voegelin, Ciência, Política e Gnose). Para John Stuart Mill, em seu ensaio Sobre a religião, datado de 1874, a fé é uma esperança. E ele faz a pergunta: “Por que não nos deixarmos guiar pela imaginação a uma esperança, mesmo se da sua realização jamais se poderá produzir uma razão provável?”.

Outras entidades também enviaram uma carta ao Senado para aceitação do nome de Mendonça, e são em número bem maior, como se pode ver aqui (https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/entidade-religiosas-apoiam-indicacao-andre-mendonca-stf/).

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Sergio Renato de Mello

Sergio Renato de Mello

Sergio Renato de Mello, brasileiro, casado, Defensor Público de Santa Catarina, residente em Rio do Sul, Santa Catarina.

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