O cético homem conservador

Todo conservador é uma pessoa cética, é o que o britânico — e um dos mais louváveis pensadores conservadores do século passado — Michael Oakeshott (1901 – 1990) nos transmite em sua filosofia política. Mas esse ceticismo conservador não é exatamente um ceticismo ateu, ou seja, uma descrença num Ser transcendente pura e simplesmente. Pode ser também, é claro, mas não necessariamente. O principal ceticismo daqueles que eram chamados de “céticos científicos” nos séculos XVII e XVIII, não era exatamente um ceticismo de caráter religioso — na verdade, muitos não opinavam diretamente sobre a existência ou inexistência de um ser supremo fora do tempo e do espaço, pois julgavam que um Ser assim sequer poderia ser sondado e perscrutado pela mente humana.

E é justamente por essa percepção de falha no entendimento humano, da inerente incapacidade dos homens, que os defensores dessa escola são céticos. O ceticismo filosófico, principalmente o de matriz humeniana (advindo de David Hume [1711 – 1776]), irrigará uma das características modernas do pensamento conservador. Mas para entender essa característica de maneira mais acurada, devemos antes revisitar algumas questões históricas e filosóficas que as sucitaram.

 

Dominando a Natureza:

Um daqueles que melhor explicou a origem do pensar ideológico-religioso das vertentes políticas modernas, foi Isaiah Berlin (1909 – 1997); em um longo trecho de seu ensaio: The crooked timber of humanity: chapters in the history of ideas o filósofo aponta duas escolas modernas como sendo o marco, a origem para o pensamento ideológico moderno:

“Os racionalistas do século XVII entendiam que as respostas poderiam ser encontradas por uma espécie de insight metafísico, uma aplicação particular da luz da razão da qual todo homem gozava. Os empíricos do século XVIII, maravilhados com as vastas áreas do conhecimento descortinadas pelas ciências naturais calcadas nas técnicas matemáticas — as quais dissiparam tantos erros, superstições, dogmatismos sem sentido —, perguntavam-se, como o fez Sócrates, por que os mesmos métodos não poderiam também funcionar na construção de leis irrefutáveis no campo das relações humanas. Tendo em mãos os novos métodos descobertos pelas ciências naturais, uma ordem também poderia ser introduzida na esfera social — uniformidades poderiam ser observadas, hipóteses, formuladas e comprovadas por meio de experimentos; sobre elas se baseariam leis, e posteriormente essas mesmas leis levariam a leis mais específicas em campos ainda mais circunscritos; por sua vez, essas leis específicas seriam ramificações de outras mais gerais e por aí em diante, até que um sistema completo e harmonioso, todos interconectado por elos lógicos inquebrantáveis e passíveis de serem elaborados em termos precisos — ou seja, matemáticos —, pudesse ser erigido”. (BERLIN, 2018, p. 22-23)

Berlin afirma que o racionalismo e o empirismo são as origens dos pensamentos político-ideológicos que seriam adotados com extremo vigor no século XX. E desse mesmo racionalismo e empirismo, surgiria o famigerado “cientificismo” no início do século XIX; tal confiança na capacidade da razão humana levaria à criação de sistemas de estudos e aferições de verdades científicas, isto é, a comprovação empírica do conhecimento, e disso, sem muita demora, à criação de diversos métodos que se proponham universais na busca do que é verdadeiro. Os métodos de investigações e as comprovações científicas não ficariam no campo da experimentação laboratorial, logo invadiriam também as ciências humanas, tentando carregar para o seu cerne as mesmas certezas incontestes que encontravam nas moléculas, fórmulas químicas e padrões lunares. As ideias políticas da Revolução Francesa, por exemplo, tinham caráter de certezas supremas; quem negasse seus princípios era considerado indigno e irracional.

Cada vez mais o homem acreditava que a sua razão não fora feita somente para entender e contemplar a realidade feita por Deus, mas também para conhecer sem escrúpulos e dominar sem demora. O homem, por fim, pensou ser possível dominar a Natureza do mundo (cosmos) e a natureza humana (essência); as ideologias políticas nascem, pois, dessa euforia, dessa certeza de que o homem pode moldar com as próprias mãos o paraíso aqui na terra. Foi tal euforia e certeza que catapultaram os jacobinos franceses e tantas outras turbas ao redor do Globo numa ânsia de revoluções e perfeccionismos sociais. O homem era capaz de tudo, nada fugia de suas perícias.

Basta perceber que ideologias, como a marxista, se denominavam “científicas”: o socialismo cientifico (ou Marxismo científico), por exemplo, expunha uma ânsia metodológica em suas ideias, suas doutrinas arrogavam uma exatidão quase matemática. Seguindo-se as premissas da ideologia — diziam os ideólogos comunistas —, inevitavelmente se chegaria às certezas que a visão ideológica arrogava possuir sobre o fim último da história. Pois é, como afirma John Gray: “A ciência foi lançada contra à ciência e tornou-se um canal para a magia”. (GRAY, 2011, p. 11)

No fim, não importava mais o conteúdo da visão política, mas sim o fato de que ela fornecia um motivo para se abraçar as ideias ali contidas; e o que era para ser uma crença racional e deliberadamente científica, se torna puramente magia, uma nova religião, só que agora uma religião-política. No lugar de certezas provadas pelo esgotamento das premissas; temos os dogmas que esgotam a vitalidade das sociedades que abarcam.

 

O espírito dos homens perfeitos:

Criar uma sociedade perfeita, agora que a origem da razão é o próprio homem (cogito, ergo sum), agora que a humanidade está em posse dos dados e dos métodos adequados para domar o cosmos e a natureza humana, é somente uma questão de ajustes e encaixes das engrenagens para, enfim, criarmos a política do impossível. O homem é capaz — sim senhor — de criar uma sociedade perfeita, diziam os iluministas, os jacobinos, os comunistas, os positivistas e os fascistas. Mas, por outro lado, dizia nos Isaiah Berlin: “a receita para a perfeição me parece a fórmula para o derramamento de sangue, ainda que receitada pelo maior dos idealistas, com o mais puro dos corações” (BERLIN, 2018, p. 52).

O cético filosófico olha para essas inferências e, apesar de abraçar o empirismo e o pragmatismo como métodos de conhecimento, rechaça veementemente os devaneios de perfeições utópicas dos enamorados da razão. Os conservadores, seja por uma consciência metafísica da queda do homem, seja pela consciência descrente nas capacidades de perfeição dos indivíduos, rechaçam a ideia de que as premissas políticas têm caráter científico, inerrante e perfeita. Um homem sensato sabe que, apesar de seremos capazes de bondades e até heroísmos, é certo que a falibilidade de nossas escolhas, cedo ou tarde, darão as caras.

Ser um conservador cético, nas palavras de Oakeshott:

“é, pois, preferir o familiar ao estranho, preferir o que já foi tentado a experimentar, o fato ao mistério, o concreto ao possível, o limitado ao infinito, o que está perto ao distante, o suficiente ao abundante, o conveniente ao perfeito, a risada momentânea à felicidade eterna” (OAKESHOTT, 2016, p. 137).

O conservador é aquele que olha para a história como uma colcha de retalhos feito a mil mãos; uma colcha que não é bonita, frondosa e, por vezes, nem mesmo funcional, mas é a colcha que temos; e se ela não serve bem para tapar todo o frio que nos rodeia, para afastar todos os perigos que nos cercam, sabe o homem prudente, porém, que é melhor tê-la do que ficar nu na escuridão gélida.

 

O ateu de homens:

O revolucionário, ao contrário, é aquele que confia tanto em sua capacidade mental e criativa, que num devaneio de autoconfiança diz que começará a construir a sua casa pelo telhado; e quando não consegue tal feito insano, culpa os conservadores de serem opressores e retrógrados pelo simples fato desses confiarem mais na sabedoria que diz ser pelo arrimo que se começa uma construção. Assim como o conservador do século XVIII se manteve cético ante a euforia assassina dos jacobinos na França, quando esses diziam que construiriam uma sociedade livre, igual e fraternal — somente porque assim eles queriam, somente porque assim eles julgavam ser o adequado —, não importando os meios utilizados e nem quantos cadáveres deixariam como espólio; da mesma forma o conservador hoje nega qualquer investida social baseada tão somente na pura vontade de evoluir, revolucionar, de repaginar a história e desconstruir nossas essências em nome de moralidades e éticas laboratoriais. “O terror é doravante um sistema de governo; ou melhor, uma parte essencial do governo revolucionário. Seu braço” (FURET; OZOUF, 1989, p. 149).

O conservador ainda se mantém o mesmo cético quando vê algum socialista vindo falar de igualdade de gêneros, por exemplo; quando liberais vêm falar de uma liberdade desmedida e sem nenhuma coerção moral que a balize; quando universitários vêm pregar a paz mundial sendo que nem em suas casas eles conseguem mantê-la. Russell Kirk (1918 – 1994), um dos maiores intelectuais americanos do século passado, afirma:

“A natureza humana sofre irremediavelmente com certas falhas, sabem os conservadores. Por ser o homem imperfeito, uma ordem social perfeita jamais pode ser criada. (KIRK, 2014 p. 108).

O conservador, por fim, é o cara chato que lembra a todos os viajantes que a realidade é mais forte que os nossos sonhos; que a terra que pisamos, mesmo sendo ela suja e fétida, é melhor do que pisar em nuvens de “faz de conta”; que uma hora devemos largar nossos devaneios e olhar com pragmaticidade para a realidade. Não à toa o conservador é considerado, por muitos, o chato da turma; mas se ser chato significa estar certo, nós suportamos com felicidade a pecha.

 

Conclusão:

O homem prudente é aquele que vive em um eterno meio-termo, o homem que não quer voltar para um passado idílico, e nem forçar uma utopia social; sabe que, sempre que o homem sonhou com paraísos terrenos, muitos corpos foram amontoados em nome de uma escatologia vadia.

Por isso que o conservador jamais poderá ser defensor de uma ideologia, pois a ideologia nasce da compreensão de que o homem pode fazer da política um espaço de messianismos e religiões sociais. E assim como um bom padre negaria qualquer outra fé que não a no Cristo, o conservador cético negará qualquer outra crença que não fosse na própria realidade.

 

Referências:

BERLIN, Isaiah. Uma mensagem para o século XXI, 2ª Edição, Âyiné: Belo Horizonte/Veneza, 2018.

FURET, François; OZOUF, Mona. Dicionário crítico da Revolução Francesa, Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1989.

GRAY, John. A busca pela imortalidade: A obsessão humana em ludibriar a morte, Editora Record: Rio de Janeiro, 2011.

KIRK, Russell, Edmund Burke: redescobrindo um gênio, É realizações: São Paulo, 2016.

OAKESHOTT, Michael. Conservadorismo, Âyiné: Belo Hrizonte, 2016.

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As posições expressas em artigos por nossos colunistas, revelam, a priori, as suas próprias crenças e opiniões; e não necessariamente as opiniões e crenças do Burke Instituto Conservador. Para conhecer as nossas opiniões se atente aos editoriais e vídeos institucionais

Pedro Henrique Alves

Pedro Henrique Alves

Filósofo, colunista do Instituto Liberal, colaborador do Jornal Gazeta do Povo, ensaísta e editor chefe do acervo de artigos do Burke Instituto Conservador.

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